PANORAMA DA CIDADE DO FUNCHAL

CARTA INÉDITA DE JÚLIO DINIZ

MEU AMIGO

Funchal, Março de 1870

Recordo-me de lhe haver prometido, ao separarmo-nos, escrever-lhe de quando em quando desta ilha, onde pela segunda vez abordei, à procura do ideal que se chama saúde.

Tarde me lembrei do cumprimento da promessa; mas a tempo vai ainda.

Não é uma monografia que eu vou fazer. Deixarei em paz a constituição geológica, a flora, a fauna da ilha e todas as questões médicas, económicas e políticas que se prendem a este torrão fertilíssimo. O meu intento é mais modesto. Quero mostrar-lhe a Madeira através das individualíssimas impressões que o meu espírito recebe nela, e isto sem plano, sem método, sem coordenação didáctica e só conforme a corrente irregular e caprichosa das minhas ideias.

Fazer-lhe esta observação equivale a avisá-lo de que não serão de tintas / 97 / muito vivas os quadros que traçarei. A imaginação de um valetudinário tinge de cores amortecidas as mais ridentes paisagens e as cenas mais pitorescas que observa; para ele o brilho do sol é visto como através de um cristal corado; percebe as gradações de luz, mas sempre sob o tom uniforme e sombrio do cristal, que, neste caso, se chama preocupação.

As viagens, esse sonho doirado que tanto seduz a imaginação da mocidade, ansiosa, como a ave prisioneira, por alargar horizontes e bater asas em demanda de climas novos, transformam-se em amarga proscrição, sempre que as empreendemos, forçados por uma triste necessidade, e partimos levando o espírito assombrado por uma ideia, ou, antes, por um pressentimento doloroso.

Nada então nos compensam as lágrimas da despedida e o cruel confrangimento do coração que responde ao último adeus do amigo, que de olhos húmidos nos acena da gare do caminho-de-ferro ou nos aperta a mão no tombadilho do vapor. Partimos com a alma oprimida e sem aqueles voluptuosos estremecimentos de júbilo, que se misturam às saudades de quem se afasta dos seus, seduzido pelo prazer de viajar.

Quando se perde de vista a terra em que nos ficaram todos os afectos íntimos, parece-nos escutar uma voz interior a perguntar-nos se voltaremos a vê-la.  / 98 /

E não há um clarão de esperança a responder a essa interrogação.

Que tristeza a daquele instante!

Depois o mar, o mar, esse imenso foco de melancolias, acaba de escurecer-nos o pensamento.

Olhar em roda e não avistar um só desses objectos que nos falam do passado, da família, do remanso doméstico! Ver tudo em movimento, tudo em irrequietação, tudo revolto! Ter necessidade para satisfazer a instintiva ânsia de repouso, que sentimos, de elevar os olhos para o céu, como faz o homem desalentado pelo tumultuar das vagas da vida, que considera aquela outra / 99 / pátria como o único lugar de verdadeiro repouso – impressões são estas que não dissipam as nuvens do nosso horizonte, antes mais as carregam.

Apesar da sua grandiosa solenidade, o oceano é um desconsolador companheiro para a alma naquelas disposições.

Por vezes, quando ao amanhecer de um desses dias longos e desoladores se avista além, muito além, no horizonte, uma sombra mal distinta através da qual só o olhar amestrado do marinheiro consegue distinguir a terra demandada, saúda-se essa sombra como uma promessa de redenção.

O ILHÉU

Todos os olhos a procuram com ansiedade e, à medida que ela se ergue e aclara e se contorneia e se colora com as tintas naturais, revelando-se enfim tal qual é, entre o azul do mar e o azul do céu, dissipa-se a mais e mais a cerração de melancolia que nos poisava no coração.

Como a ave extenuada por longa travessia por sobre mares vastíssimos abate o voo a repousar na terra que lhe surge do seio das ondas, assim o espírito, cansado também daquela imensidade e irrequieta agitação das águas, voa a engolfar-se no regaço das verduras, que parece haverem enfim obedecido à invocação das suas nostálgicas, saudades.

Quando a formosa ilha da Madeira, levantando-se da espuma do mar, como a mitológica Citereia, crescia para nós a receber-nos, abrindo o seio benéfico e maternal aos desconfortados que nela só depositavam as suas derradeiras esperanças, sentíamos todos penetrar-nos no coração um desses suaves prazeres, como o que nos produz, no meio de uma turba de estranhos, o encontro de um rosto e de um sorriso de amigo.

Formava um consolador contraste com a tremenda severidade do mar a amena perspectiva da ilha!

Horas depois de a avistar, a marcha rápida do vapor fez-nos dobrar o cabo de S. Lourenço; transportando o amplo pórtico que ele forma com o grupo das penhascosas Desertas, sentira-se uma súbita mudança de clima, como se, de repente, se tivessem vencido muitos graus de latitude.

Afagou-nos as faces a brisa tépida e perfumada da ilha, aspirámos com prazer o hálito acalentador e salutífero desta fada marítima; achávamo-nos sob o seu abençoado encantamento, reconhecíamos enfim a Madeira!

A costa do sul ia passando em revista, com as suas rochas escarpadas, as suas ribeiras profundas, a sua vegetação vigorosa, as suas formidáveis quebradas e os altos picos onde poisam as nuvens, os vales fertilíssimos e as povoações graciosas. Momentos depois, vencida a ponta do Garajão, as casas e as quintas do Funchal iluminadas por um esplêndido sol de Outono, que doirava / 100 / as extensas plantações de cana, saudaram-nos por sua vez.

A magia do espectáculo emudeceu-nos. De um lado o mar, do outro as serras e, entre estas duas grandezas majestosas, a cidade sorrindo, como a criança adormecida entre os pais, que a defendem e acalentam. Dentro em pouco poisávamos pé em terra.

HOSPITAL PRINCESA D. AMÉLIA

Não é grata a impressão recebida ao desembarcar. Costumados aos extensos e alvejantes areais das nossas praias, tão ricas de formosíssimas conchas e em cujas penhas se formam aquários naturais, onde aos raios do sol as actínias matizadas expandem os seus braços gelatinosos, as algas crescem em delicadíssimas arborizações; costumados às praias risonhas, que atraem as mulheres e as crianças com o animado e variadíssimo espectáculo que lhes oferecem e os abundantes tesouros de pedrarias que escondem nas suas móveis areias, afecta-nos tristemente o aspecto desta praia negra, formada de calhaus roliços, cor de lousa, sem mistura de pedras multicores, sem a concha do molusco a adorná-la, sem uma dessas pequenas maravilhas naturais, que são o principal atractivo da beira-mar.

Esta pedra escura parece conservar ainda evidentes os vestígios do cataclismo vulcânico que a arremessou à superfície das águas. Dir-se-ia que ainda está defumada e quente do fogo do imenso forno em que foi fundida.

Ao seu aspecto comprime-se o coração do viajante.

Entramos na cidade. Há um não sei que melancólico no aspecto dela. Por isso mesmo que é a generosa consoladora / 101 / de tantos aflitos, por isso mesmo que acolhe no seio maternal os que sofrem e que de toda a parte do mundo correm a abrigar-se no seu calor salutar, por isso mesmo parece anuviar-lhe os sorrisos aquele ar de piedade e de compaixão, que é, por assim dizer, a alegria da caridade.

Não nos sentimos impelidos a saudá-la com um cântico festivo, com uma aclamação de prazer, mas apenas com uma serena comoção igual àquela com que se beija a mão generosa que se estende a socorrer-nos ou a enxugar-nos as lágrimas.

Ó Funchal! Que tristes dramas se têm passado à luz do teu sol benéfico! Que lutuosos desenlaces de tantas histórias de paixões! Que de lágrimas ardentes caídas no teu solo sequioso que se apressa a escondê-las discreto! E à sombra das tuas árvores, quantas frontes, escaldando de febre, vergaram sob o peso de cruel melancolia! Ilusões desvanecidas, esperanças desfolhadas, sonhos de amor, de glória, de felicidade, dos quais se desperta à beira do tumulo, tudo tens presenciado, ó humanitária cidade, e debaixo dos cedros e ciprestes dos teus cemitérios dormem o último sono muitos mártires, sem que as lágrimas dos que os amaram lhes caiam na campa como tributo!

CASA DO FUNCHAL. ONDE HABITOU CRISTÓVÃO COLOMBO

Daí vem a simpatia e a tristeza que inspiras. As tuas virtudes, como irmã de caridade que consagra os dias ao cumprimento da sua missão cristianíssima, brilham entre cenas e espectáculos de desolação e de dor.

Este carácter da cidade avulta aos primeiros passos dados no interior dela.

O viajante cruza-se a cada momento com certas figuras pálidas, emaciadas, pensativas, marchando lentamente, ou transportadas em redes, encontra-as nos assentos dos passeios, em ociosa meditação, ou fitando melancolicamente as ondas que se sucedem na praia. São ingleses cadavéricos, alemães diáfanos, portugueses descarnados, brasileiros, norte-americanos, russos, são velhos, adultos, crianças, vaporosas belezas femininas de todas as partes do mundo, todos a convencer-nos que entramos na citá dolente, mas no pórtico desta não se vê gravado o dístico / 102 / desesperador que o poeta inscreveu no da região dos tormentos eternos. Pelo contrário, à entrada, aqui, revertem-se de esperança os próprios condenados.

Para que a Madeira nos sorria, para que nos apareça formosa, como a descreve o poeta inglês, e fragrante, como uma verdadeira flor do Oceano, é necessário sair do recinto da cidade, procurar as freguesias rurais, subir as íngremes ladeiras que costeiam os picos e espraiar então a vista pelos formosíssimos vales que vão descobrindo o seio fecundíssimo aos nossos olhos maravilhados.

Que vigor e variedade de vegetação! O verde doirado da cana realça entre as diferentes cambiantes da mesma cor das plantas de todos os climas. A palmeira de África agita a sua fronde graciosa junto dos carvalhos da Europa, a bananeira, vergando ao peso dos seus cachos, cresce cheia de viço nos mesmos pomares onde se enfeitam de flores os pessegueiros e laranjeiras odoríferas. As rosas, as malvas, as madressilvas florescem espontâneas à beira dos caminhos; debruçam-se dos muros as buganvílias, entretecendo os seus cachos roxos com as flores alaranjadas das begónias; tudo tem um ar de festa e alegria; a choça mais humilde tem um jardim à entrada; as flores sorriem à porta dos ricos e dos pobres.

FUNCHAL – CASA ONDE HABITOU JÚLIO DINIS
(É a 1.ª completa à direita.)

   

ENTRADA DO FUNCHAL

E quanto mais nos elevamos, mais se pronuncia este magnífico aspecto dos pais. De um lado vemos aos nossos pés o mar liso corno um espelho, azul como safira, limitado ao longe pelo grupo das Desertas vagamente tingidas do azulado da distância; do outro, as altas serranias, que rompem as nuvens, e cujos cimos tantas vezes tinge a ofuscante alvura das neves, e nos flancos, abertos em fundas quebradas, sulcados em ribeiras pelas torrentes do inverno, uma vegetação exuberante, cheia de vida, encobrindo aqui uma casa isolada, enfeitando / 103 / além uma povoação risonha, que se agrupa em torno de um campanário.

Então sim, então a atmosfera embriaga, o peito aspira com voluptuosidade esse ar balsâmico, o espírito liberta-se de todas as apreensões que nos gelavam os sorrisos nos lábios e goza-se, despreocupado, do mais surpreendente espectáculo que pode imaginar-se.

Mas não é só a natureza que tão afável e acariciadora se mostra aos desesperançados enfermos que se refugiam aqui; impressões igualmente consoladoras lhes vêm de origem diversa. É geral a simpatia que os doentes inspiram à gente da Madeira. Se os doces afectos de família, se os carinhos de uma esposa, de uma mãe ou de uma filha se podem substituir no mundo, é aqui a terra para tentar a experiência.

Sentis que vos rodeia uma atmosfera de simpatia. Pessoas que nunca vos falaram, que não conheceis, seguem passo a passo, com sincero interesse, os progressos das vossas melhoras ou as alternativas do vosso padecimento.

Com o olhar, que a experiência tem amestrado, estudam-vos no semblante as probabilidades do bom ou do mau êxito na luta pertinaz da natureza contra o influxo fatal que vos subjuga. E esse prognóstico é quase sempre infalível.

Rara é a família que, levada por generosa curiosidade, se não informe com o médico que a visita ou com os proprietários dos hotéis, do estado dos estrangeiros doentes.

Nestas vitórias do clima sobre a doença estão empenhados os brios e o principal brasão da terra, e o amor pátrio é um sentimento profundamente entranhado no coração deste povo. Uma cura operada é um triunfo e todos a conservam na tradição gloriosa da terra com simpático e louvável orgulho.

A simpatia vai ainda mais longe, revela-se sob mais cordial manifestação, exerce-se mais eficaz e abençoada ainda. As formosas madeirenses, e quem tendo visitado esta terra não conservará memória delas? Condescendem muita vez em animar a alma desolada dos solitários enfermos com o raio vivificador dos seus olhares magnéticos. Amoráveis, movidas por uma generosa simpatia, exaltadas pelo entusiasmo natural a um coração de rapariga, acalentam muitas vezes esses amores, que elas bem sabem ser sem futuro, e iluminam os últimos dias de uma triste existência com a doce luz do mais casto e imaculado afecto.

FUNCHAL – PONTE CAIS COM ARREBENTAÇÃO DO MAR

Quantos, que morriam longe dos seus com o coração partido de saudades, lhes devem os últimos doces sonhos da sua vida, as derradeiras ilusões e um tributo de lágrimas na campa?

Anjos adoráveis, corações generosos, / 104 / vós concorreis com o tesouro dos vossos afectos para a santa missão que se desempenha aqui. Às vezes, sob a influência do vosso amor, voltam as cores às faces desmaiadas, um sangue novo circula nas veias exauridas e, por um milagre de afecto, renasce para a vida o que a ciência já condenara.

Outros sucumbem, não tendo ao menos nos lábios um nome querido, no pensamento uma imagem e no coração a esperança de que não ficará sem sentido para todos a inscrição funerária que lhe gravarem na lousa.

Abençoadas sejais pelo conforto que tendes dado às almas tristes que sucumbiam, à míngua dele.

Reparo porém agora, meu amigo, no tom elegíaco em que ia tornando a missiva. Será prudente parar aqui, procurando para outra vez ser mais alegre.

Seu do coração

JÚLIO DINIZ
 

 

5-03-2020