boa
e velha amizade do seu camarada Guilherme Gomes Coelho deve o nosso
director literário o precioso mimo que oferecemos aos leitores dos
Serões. Sobrinho do chorado romancista, que escreveu As Pupilas
do senhor Reitor e A Morgadinha dos Canaviais, presenteou-nos
ele com dois inéditos dessa pena sugestiva e sincera. O alvoroço em que
ficámos é simples prólogo do alvoroço com que os leitores vão devorar
esses dois trechos. Em ambos se espalha por igual a alma dulcíssima de
Júlio Diniz. O primeiro, contudo, que, para conservar intacta a comoção
intensa que o ditou, segue publicado em fac-símile, é um documento
autobiográfico de transcendente valor. É a carta em que o futuro
romancista, depois de doutorado na Escola Médica, comunica a seu pai a
sua nomeação para demonstrador da mesma Escola. Para bem se alcançar
toda a significação afectiva desse documento, convém conhecer algumas
particularidades do viver íntimo de Júlio Diniz, durante a sua infância
e a sua adolescência, as quais colhemos das piedosas reminiscências de
seu sobrinho.
O
pai de Júlio Diniz, o Dr. José Joaquim Gomes Coelho, era dotado de um
temperamento concentrado e excêntrico, ríspido na aparência e bondoso no
fundo, o original em suma daquele Richard Whitestone que seu filho
admiravelmente delineou na Família Inglesa, porventura o mais
realista ou, como hoje é uso dizer, o mais vivido dos seus romances. As
relações entre pai e filho tiveram sempre uma certa tensão, não devida a
quaisquer conflagrações que o mútuo amor não consentiria, mas
proveniente do conflito permanente de dois temperamentos igualmente
reservados, austero no primeiro, melindroso no segundo. Raro trocavam
palavras que não fossem de mera saudação quotidiana. Quando o velho
doutor julgava urgente alguma comunicação a seu filho, fazia-a
geralmente por uma carta ou nota que lhe deixava no quarto, quando o
sabia ausente. Exactamente o que se reproduz no romance aludido, entre o
fleumático comerciante inglês e seu filho Carlos.
Vem a pêlo uma anedota, perfeitamente ilustrativa desse
aparente alheamento daqueles dois espíritos que se estremeciam. Em Março
de 1866 começou a aparecer em folhetins, num jornal do Porto, o belo
romance As Pupilas do senhor Reitor, que desde o começo produziu por
toda / SERÕES N.º 14 – FOL. I –
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a parte um movimento de alvoraçada simpatia e de viva curiosidade. Quem
seria aquele brilhante espírito, aquele émulo português de Dickens, que
se ocultava sob o modesto pseudónimo de Júlio Diniz? Nas ruas, nos
cafés, no seio das famílias, aventavam-se hipóteses, formulavam-se
alvitres, e pouca era a gente, ainda entre a mais avessa a assuntos de
ordem intelectual, que se desinteressava do palpitante problema. O
próprio Dr. Gomes Coelho trazia das cavaqueiras com os amigos ideias e
sugestões, que, vencendo a sua habitual frieza, irrompiam aos farrapos à
mesa da família. Calado o escutava Joaquim Guilherme, a esse tempo já
demonstrador da secção médica na Escola do Porto, e apenas, quando
instado, respondia com monossílabos ou frases vagas às perguntas ou
presunções de seu pai.
Eis senão quando este, um belo dia, entrando acaso no
quarto do filho, onde o levava provavelmente alguma comunicação escrita
que precisava deixar-lhe, ficou surpreendido de ver na secretária uns
quartos avulsos, para impressão, sobre os quais lançou maquinalmente os
olhos. Surgiam lhe os nomes das personagens, cuja história fabulada
comovia ao tempo o Porto inteiro. Aguçado pela curiosidade, leu e
compreendeu tudo. E o orgulho paterno não lhe permitiu guardar segredo.
Revelou-o aos amigos. E foi assim que o Porto soube, e que o país
inteiro veio a saber, quem era o novel romancista, e identificou com uma
criatura viva e contingente o nome que devia ser uma das mais puras
glórias da literatura nacional.
Mas voltemos ao nosso estudante de medicina, intimidado e
perplexo sempre ante a visagem severa do pai doutor.
A fina sensibilidade do seu espírito não o enganava; ele
bem sabia que sob aquele aspecto carrancudo se escondia uma alma
amorável e cheia de dedicação extremosa. O seu olhar sereno bem via
transluzindo sob uma máscara férrea, os júbilos que inspiravam seus
triunfos escolares, os tácitos desvelos pela sua saúde sempre combalida,
as apreensões que revolviam o espírito paterno, solícito pelo futuro dos
filhos. Em 1861, Joaquim Guilherme concluíra distintamente o curso.
Quatro anos depois, era despachado, em virtude de concurso, demonstrador
da secção médica da mesma Escola em que se formara. E foi então que,
talvez pela primeira vez na vida, deu largas aos ímpetos de gratidão e
de ternura, que o atiravam aos braços daquele velho ríspido e amorável,
que era seu pai, a quem devera mais do que a vida, a educação e uma
situação desafogada no mundo.
É a expressão eloquente e espontânea desses sentimentos
que forma o conteúdo da carta, dada em fac-simile. Só uma bela
alma pode sentir assim, só um delicado espírito, como o de Júlio Diniz,
pode encontrar as palavras comovidas e quentes que traduzam plenamente
esse sentir. É uma jóia inestimável essa carta; de futuro constituirá
porventura um desses exemplares clássicos de epistolografia que andam
pelas mãos da infância. Ao calor desse afecto e à pura beleza dessa
linguagem se educarão com efeito as almas das crianças, habituando-se a
não ter em menos conta as finezas do coração do que os primores do
génio.
*
* *
Outro inédito de Júlio Diniz publicam
/
93 / os Serões. Esse pertence à fase
dolorosa da vida do grande romancista. A herança mórbida materna, que já
prostrara seus oito irmãos, ameaçava-o implacavelmente. Aos primeiros
rebates da tuberculose, envidaram-se esforços para travar a roda da
Fatalidade. Esgotados os primeiros recursos, ocorreu naturalmente a
ideia da Madeira, então, mais do que talvez agora, apregoado refúgio
cosmopolita de tísicos. Em 1868, para lá foi passar uns meses Júlio
Diniz. Em 1870, para lá voltou «à procura do ideal que se chama saúde»,
diz ele próprio. A carta, que pela vez primeira publicam os Serões,
colige as impressões fugidias e lampejantes de um grande espírito,
ameaçado de morte, perante o espectáculo assombroso da Natureza e da
Vida. É um documento de alto interesse biográfico e literário.
Em duas casas habitou Júlio Diniz, que saibamos, durante
a sua estada na Madeira. Uma delas, aquela cuja fachada publicamos, era
na rua da Carreira, no Funchal. Devemos estas informações e a fotografia
ao nosso insigne colega Reis Gomes, redactor do Heraldo, do
Funchal, o qual acrescenta, referindo-se à casa: «Hoje está ligeiramente
modificada no seu aspecto exterior, isto é, mais remoçada, conservando a
mesma disposição: cinco janelas no primeiro andar e uma no alto... Eram
donas da casa as senhoras D. Romana e D. Josefina Pio, duas irmãs...
A sua sobrinha, senhora D. Olímpia Pio Fernandes,
professora no Porto, é actualmente a sua parenta mais próxima».
Antes de residir nesta casa, morou Júlio Diniz pouco
tempo nos Ilhéus, numa Vila onde actualmente reside o Doutor Nuno
Ferreira Jardim (informação dada igualmente pelo sr. Reis Gomes, a quem
cordialmente agradecemos estas notas interessantíssimas, e cremos que
inéditas, para a biografia do grande romancista).
Como a primeira carta, esta do Funchal, posto que
indubitavelmente destinada à circulação literária, revela a amorosa
individualidade de Júlio Diniz, que nem as cruéis apreensões de
valetudinário conseguem obscurecer. A saudade entristece-o, o
espectáculo do oceano acabrunha-o, mas, quando a seus olhos a Madeira
surge, em toda a sua magia deslumbrante, os primeiros júbilos adejam em
torno da alma esmorecida do poeta. Mas a tristeza volta de novo, ao
divisar a sombra da Morte pairando sobre o risonho Funchal, como sobre
um sanatório cosmopolita de condenados... É preciso sair da cidade para
que essa visão fatídica se desvaneça, e então, que hino de contentamento
e de admiração brota da pena comovida do artista! E a sua alma aquece-se
de gratidão, perante a misericordiosa simpatia que vê em todos os olhos.
E porventura, nos últimos períodos da carta, transparece
alguma coisa mais: um doce sentimento, quiçá partilhado, que um formoso
rosto feminino houvesse feito desabrochar no coração melancólico do
romancista...
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