Harmónicas, navalhas,
pentes... Numa roda que girava com o fascínio das crianças de todas as
idades.
(Foto Prof. Jorge Gaspar)
Na festa de S. Paio, a grande romaria da gente ribeirinha, a
Ria coalha-se de barcos que provêm de todas as freguesias marginais.
Abundam os moliceiros lindamente embandeirados, com sinais distintivos
para que os tripulantes os reconheçam quando, encostados uns aos outros,
formam, na Torreira, a frota da alegria.
São as famílias e amigos do proprietário do barco que o
enchem de raparigas airosas, de olhos escuros e tez morena, e de rapazes
desempenados e garbosos, tisnados pela maresia. Gente moça, belos tipos
em que há linhas gregas e fenícias de colonizações passadas e músculos
robustos de atletas feitos no trabalho árduo e pesado. Tocam violas e
harmónicas a dar a toada às raparigas que cantam em coro baladas
langorosas e dolentes.
Esteiro de Salreu.
Recuperação de uma bateira de ervagem. De camisa branca, o último dos
Garridos. À sua
direita, mestre Arnaldo. Atente-se na casa grande e no nicho com a
imagem do S. Paio pequenino, desaparecido há muitos anos.
Os barcos seguem não longe uns dos outros e, quando o vento
ajuda, alguns tiram-no com a vela ao que os acompanha, à recaxia, com
protestos raras vezes indignados e por vezes com despiques em cantares
quando a canção ribeirinha da «Caninha verde» pede resposta em verso a
quem desafia. E tudo se compõe, sem ralhos, afastando-se as embarcações
para que o norte dê fôlego a todas as velas e coragem aos arrais e mais
pessoal do manejo náutico.
Por vezes, surge a calmaria e, então, a propulsão faz-se à
vara, forte haste de pinho que de um dos topos se lança ao fundo da Ria.
Os mancebos, fortes e valorosos destas terras, encostam ao peito a outra
extremidade e passeiam o bordo do barco, fazendo-o seguir no sentido
desejado. Dois barqueiros possantes, além do arrais ao leme, são
indispensáveis. Mas mesmo que a embarcação vá bem carregada, nunca deixa
de chegar a seu termo. (...)
Se os pequenos têm pernas para ir aos cordeirinhos, disse
minha mãe, também podem ir à capela de S. Paio. Não deve ser maior
distância. Nisso todos concordaram. Decidiu-se que se iria primeiro à
missa e no regresso se tomaria o banho.
No domingo fomos à capela, perto de meia hora de viagem
através do areal. Foi uma pequena violência que a gente miúda suportou
com coragem.
Ouvida a missa que foi rápida, pois nesse tempo ainda não
havia a prédica do evangelho, e depois de ter retirado a maioria dos
devotos que faziam cauda à porta da capela de exíguas dimensões, ficámos
para ver o S. Paio pequeno, um santinho, de menos de palmo, preto
avermelhado, que estava num altar do lado. Todos os anos pela ocasião da
festa havia promessas de, se as sezões passassem, darem ao infeliz santo
um banho de vinho numa tigela de barro vermelho que depois corria em
redor pela família, para beberem o líquido santificado. Atrás de uns
vinham outros e, nestas libações, de tipo pagão, se passavam horas, Hoje
acabou a prática desses tempos, não sem protestos violentos dos amigos
do santo milagreiro e da bebida dada em redor, havendo quem estivesse
sempre pronto a receber os restos com as respectivas consequências. E lá
se foi a cantiga do meu tempo:
Ó S. Paio da Torreira
Ó milagroso santinho,
Hei-de cá voltar pró ano
Lavar o santo com vinho.
Prof. Dr. Egas Moniz, in "A Nossa Casa"
Romeiros de Canelas numa
rusga. |