O ano
passado foi publicado com intensa publicidade na televisão e nos jornais
um Dicionário da Língua Portuguesa, chovendo laudas ao autor que,
na oportunidade, foi agraciado pelo Presidente da República.
Por
referências que vi, eu que ainda não deixei de ter Camilo ou Aquilino à
cabeceira, nem de graça o quero. Contudo, a publicação teve o condão de
me recordar a leitura fascinada que fiz desse livro maravilhoso que se
chama Platero y Yo.
Não
sei se sabem, mas Platero era um burro; e o livro é, a par com o D.
Quixote, emblemático na literatura espanhola (há uma tradução portuguesa
parcial, feita pelo poeta Eugénio de Andrade).
Da
longa conversação entre Juan Jamon Jimenez com o asno Platero, traduzo
este bocadinho:
«O
Dicionário da Real Academia Espanhola da Língua diz: Camarinhas: m.
Arbusto muito comum que se cria em Moguer; província de Huelva.» Muito
comum e só em Moguer, Platero... Como conciliar estas duas coisas? Tu
vês, por isso eu nunca quis ser da Academia e nunca aceitei os seus
insistentes convites, nem na época da monarquia, nem na época da
república, nem na ditadura de Franco. Não compreendes tu a minha enorme
responsabilidade se eu pertencesse à Academia e tivesse que deixar essa
definição tão importante das camarinhas assim escrita? E o tempo que
perderíamos discutindo assunto tão importante para mim, as
camarinhas!...
As
camarinhas, essas pérolas comestíveis que encheram toda a minha
infância. Essas camarinhas brancas e verdes, com a sua semente negrinha
que se vê à transparência, tão redondinhas, tão perfeitinhas, tão
deliciosas no seu sabor agridoce, essas preciosas camarinhas da praia
que só se criam em Moguer; na opinião da Academia, e são todas para ti e
para mim para os carabineiros, faroleiros e para os pobres que vêm de
Sanlucar pelas praias de Castela.
E o
que perdem os outros! Haverá prazer maior que encontrarmos um arbusto de
camarinhas na areia cravejada toda cheia delas, aliás, ricas de toda a
frescura ácida da vida, e desejando entregarem-se só a nós? Porque, se
não formos nós a encontrá-las quem salvaria essas camarinhas, essas
pérolas uvaslágrimasgotas de orvalho?
E tu e
eu sem sabermos que eram apenas nossas, até que o Dicionário da Real
Academia Espanhola no-lo demonstrou.
Vamos,
Platero, vamos agora mesmo à praia de Castela dizer às camarinhas que só
existem aqui em Moguer, na Tartéside e que só nós as comemos, tu e eu,
os carabineiros, os faroleiros, os pobres da praia e, claro, todos os
Tartésios, todos os fenícios, todos os romanos, todos os mouros e todos
os cristãos que como tu e eu as encontravam, quando, então mortos de
sede pelas praias da Barra, e que, sem dúvida, não sabiam, nenhum deles,
como nós dois sabemos, que somente eles as comiam e bebiam.
Além
disso, Platero, dás-te conta que nenhum deles chegou a saber isto tudo
que nós os dois sabemos, graças aos académicos de Madrid?» (Juan Jamon
Jimenez, Platero y Yo, pág. 276/77).
Morreu
há já muitos anos o poeta espanhol. Já não vou a tempo de lhe escrever
para lhe dizer que na minha região também há camarinhas e que também eu
gosto de burros e que estou saturado dos académicos que inundam as
televisões que vejo e os jornais que leio, Mas penso que ele ia gostar
que eu lhe dissesse que, nas matas espontâneas do litoral aveirense, o
pequeno arbusto floresce, e que todos os anos, pelo Verão, no coração da
praia da Torreira, há mulheres a vender copinhos-medida dessas pérolas
uvaslágrimasgotas de orvalho às crianças, que não as compram por terem
gelados e chicletes, e que tão longe das praias andaluzas ainda há quem
fale com Plateros imaginários, para não ter que ouvir outros, para fugir
a comendas.
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