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Sérgio Paulo Silva, Palavras de trazer por casa, 1ª ed., Estarreja, 2007,146 págs.

Camarinhas

O ano passado foi publicado com intensa publicidade na televisão e nos jornais um Dicionário da Língua Portuguesa, chovendo laudas ao autor que, na oportunidade, foi agraciado pelo Presidente da República.

Por referências que vi, eu que ainda não deixei de ter Camilo ou Aquilino à cabeceira, nem de graça o quero. Contudo, a publicação teve o condão de me recordar a leitura fascinada que fiz desse livro mara­vilhoso que se chama Platero y Yo.

Não sei se sabem, mas Platero era um burro; e o livro é, a par com o D. Quixote, emblemático na literatura espanhola (há uma tradução portuguesa parcial, feita pelo poeta Eugénio de Andrade).

Da longa conversação entre Juan Jamon Jimenez com o asno Platero, traduzo este bocadinho:

«O Dicionário da Real Academia Espanhola da Língua diz: Camarinhas: m. Arbusto muito comum que se cria em Moguer; província de Huelva.» Muito comum e só em Moguer, Platero... Como conciliar estas duas coisas? Tu vês, por isso eu nunca quis ser da Academia e nunca aceitei os seus insistentes convites, nem na época da monarquia, nem na época da república, nem na ditadura de Franco. Não compreendes tu a minha enorme responsabilidade se eu pertencesse à Academia e tivesse que deixar essa definição tão importante das camarinhas assim escrita? E o tempo que perderíamos discutindo assunto tão importante para mim, as camarinhas!...

As camarinhas, essas pérolas comestíveis que encheram toda a minha infância. Essas camarinhas brancas e verdes, com a sua semente negrinha que se vê à transparência, tão redondinhas, tão perfeitinhas, tão deliciosas no seu sabor agridoce, essas preciosas camarinhas da praia que só se criam em Moguer; na opinião da Academia, e são todas para ti e para mim para os carabineiros, faroleiros e para os pobres que vêm de Sanlucar pelas praias de Castela.

E o que perdem os outros! Haverá prazer maior que encontrarmos um arbusto de camarinhas na areia cravejada toda cheia delas, aliás, ricas de toda a frescura ácida da vida, e desejando entregarem-se só a nós? Porque, se não formos nós a encontrá-las quem salvaria essas camarinhas, essas pérolas uvaslágrimasgotas de orvalho?

E tu e eu sem sabermos que eram apenas nossas, até que o Dicionário da Real Academia Espanhola no-lo demonstrou.

Vamos, Platero, vamos agora mesmo à praia de Castela dizer às camarinhas que só existem aqui em Moguer, na Tartéside e que só nós as comemos, tu e eu, os carabineiros, os faroleiros, os pobres da praia e, claro, todos os Tartésios, todos os fenícios, todos os romanos, todos os mouros e todos os cristãos que como tu e eu as encontravam, quando, então mortos de sede pelas praias da Barra, e que, sem dúvida, não sabiam, nenhum deles, como nós dois sabemos, que somente eles as comiam e bebiam.

Além disso, Platero, dás-te conta que nenhum deles chegou a saber isto tudo que nós os dois sabemos, graças aos académicos de Madrid?» (Juan Jamon Jimenez, Platero y Yo, pág. 276/77).

Morreu há já muitos anos o poeta espanhol. Já não vou a tempo de lhe escrever para lhe dizer que na minha região também há camarinhas e que também eu gosto de burros e que estou saturado dos académicos que inundam as televisões que vejo e os jornais que leio, Mas penso que ele ia gostar que eu lhe dissesse que, nas matas espontâneas do litoral aveirense, o pequeno arbusto floresce, e que todos os anos, pelo Verão, no coração da praia da Torreira, há mulheres a vender copinhos-medida dessas pérolas uvaslágrimasgotas de orvalho às crianças, que não as compram por terem gelados e chicletes, e que tão longe das praias andaluzas ainda há quem fale com Plateros imaginários, para não ter que ouvir outros, para fugir a comendas.

 

 
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