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Sérgio Paulo Silva, Palavras de trazer por casa, 1ª ed., Estarreja, 2007,146 págs.

Na morte do Malagueta

Tinha eu onze anos quando fui estudar para Aveiro. Saía de casa com meu irmão mais velho, muito cedo, ao romper do dia, para apanhar o comboio das sete, então ainda a vapor. Era o ano de 1961 e toda a gente ia de comboio, vinda um pouco de toda a parte.

Tive então um companheiro que tinha pombos-correios (na realidade eram do pai) e que, como eu, gostava de caça e de pesca e vivia na permanente magia desse triângulo de paixões. Não foi, pois, empreitada de maior que eu me tornasse a sua sombra e passasse a queimar todo o meu tempo por Cacia, já que o João José, assim se chamava o meu companheiro, era dessa aldeia do Vouga, filho do estimado médico da Celulose, Dr. João Soares. E, talvez por isso, todas as portas se nos abriam no forte meio columbófilo, gerado em torno dessa fábrica.

Desses anos recordam-me as pessoas, recordam-me as cestas de verga em que os pombos partiam de comboio, os calendários das provas, tão dissemelhantes dos hoje praticados, alguns pombos também: o Preto, do Pardinhas, a Lilás, dos Cordeiros... Para meu mal, tive sempre boa memória.

Tornei-me columbófilo como se sempre o tivesse sido. Mesmo sem pombal e sem pombos, eu vivia intensamente toda aquela ambiência. Depois, quando finalmente tive o meu primeiro pombal, corri a mesma Via Sacra de todos, mesmo com os abandonos a que a vida me forçou e os regressos, sempre cheios de novos sonhos e novos entusiasmos.

Tanta, tanta coisa me lembra nesta noite em que escrevo, que a mim mesmo me obrigo a escolher caminhos nas encruzilhadas da memória. Porque há caminhadas que um homem não pode fazer sozinho sem correr o risco de se emocionar e não consigo ser daqueles que sacodem airosamente as sandálias...

Como todos, conheci dias bons e dias maus. Como todos, alimentei, de campanha para campanha, a chama. Talvez um dia, com outro vagar que agora não tenho, com outra disponibilidade emocional, vos fale um pouco disto. Afinal, durante a minha caminhada, conheci e privei de perto com tantos amigos, com tanta gente, que talvez fosse bom acordar algumas cinzas.

Dizia eu que alimentei a chama, de campanha para campanha. E assim foi, de facto. Sempre experimentando novos casais, anilhando novos borrachos que seriam, sempre e simultaneamente – de ano para ano, insisto – os alicerces e o futuro da colónia. Até que a proprietária duma vacaria clandestina ergueu, com a complacência da presidente da Câmara do PSD, um muro de quatro metros diante dos meus pombais. E tudo teve que terminar. A vacaria teve curta duração; e os tribunais deram novos donos ao pesadelo. A presidente foi-se cinzentamente embora. Mas o mal estava feito e sem retrocesso possível. Entretanto, os pombais, fechados é certo, permaneciam lá dentro com vida, com a vida dos meus pombos.

Entre eles estava o Malagueta. O Malagueta ficou a dever o nome a um 10 arrancado num concurso de Málaga com cerca de meia hora de avanço. Já anteriormente se havia classificado por duas vezes na vintena, em provas de Vejer de Ia Frontera, quer como borracho, quer já como adulto. Um mês depois, voltou a ganhar outro 10 e outra vez com mais de meia hora de avanço sobre o segundo, desta vez num concurso de La Gineta, amealhando também a aposta no Grupo Columbófilo de Fundo da Beira Litoral, então no seu zénite.

De cor azul, com pena branca a meio da asa, tinha o N.º 373587 / 84. O pai tinha sido o último filho da famosa Alverca de Alexandre Mendes Gordo, pomba de origem Guy Vinois, e a mãe era descendente duma filha do célebre Olímpico do Germano, de Albergaria, que lhe havia sido ofertado pelo fundista Manuel Bento de Almeida, de Loures.

Do Malagueta poucos irmãos tive, prematuramente perdidos num Zaragoza desastroso. E, como o pai, apesar de me ter custado caríssimo, tinha sido, entretanto, oferecido para o Castelo de S. Jorge, ao Alexandre Mendes Gordo, reservei-o de imediato para a reprodução.

O meu melhor pombo das campanhas de 1988, 89 era filho do Malagueta; e nunca me atrevi a enviá-lo às provas rainhas, com medo de o perder (já não tinha a mãe); mas outros tive que pude arriscar e que, de Espanha, ainda honraram o pai. E talvez que um dia, num futuro em que eu não quero deixar de crer, um descendente me possa dar alguns desses instantes dessa glória efémera com que nós, columbófilos, nos apaziguamos.

Hoje, 2 de Fevereiro de 1998, o Malagueta morreu. E eu estou triste como esta noite triste de invernia o pode estar. Porque, dentro do meu peito, há um cacifo que nunca mais voltará a ser ocupado; e a memória esgana-me, sem piedade, o coração.

 

 
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