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«Entre o Barroco do Guiso e o Lameiro da Boa Erva, dorme uma rica
mula de oiro. Quem a desencante pode, com ela, comprar Portugal e
Castela.»
Nuno de Montemor
(Quadrazais 16/12/1881 – Lisboa 4/1/1961)
MARIA MIM |
Há muitos, muitos anos que toda a gente sabe que, entre o Barroco do
Guiso e o Lameiro da Boa Erva, na aldeia beirã que se enfeita com o nome
de Quadrazais, dorme uma rica mula de ouro. É a famosa mula encantada da
Lameira, que eternamente espera que a desencantem em manhã de S. João.
Quem alcançar tal proeza, ficará com fortuna bastante para comprar
Portugal e Castela, nadará em dinheiro e será para sempre famoso como os
antigos Senhores do Nada.
Ao contrário do que se chegou a pensar, a mula da Lameira não entrou no
Sabugal primitivo, a que Quadrazais pertence, trazida por moleiros
árabes, senhores de encantos e prodígios. É muito mais antiga a sua
existência. Sabe-se, hoje, por inconfidências do vento, por muito se ter
ouvido o seu dialecto em noites de temporal, que os seus primeiros donos
foram povos muito remotos, os Vetões, de origem celta, que foram
descendo das montanhas frias do norte da Península e construindo povos e
urbes, como a bela cidade onde corre manso o rio Águeda, Cidade Rodrigo,
presumindo-se que fosse um símbolo religioso, uma divindade que esses
povos adoravam.
Quando os romanos tomaram pela força os povos da região, provavelmente
assustada pelas guerras que então se travaram, a mula terá fugido e
encontrado refúgio e alimentos no Lameiro da Boa Erva, onde ficou
encantada.
Em 12 de Setembro de 1297, foi celebrado o Tratado de Alcanizes entre o
Rei de Portugal, D. Dinis, e o Rei de Leão e Castela, D. Fernando IV.
Até essa data, todas aquelas terras pertenciam ao reino de Castela e só
então, mercê do tratado, passaram a ser portuguesas, com tudo o que
nelas estava, pessoas e bichos, tudo.
Desde o tempo dos Vetões, dos Romanos e dos aventureiros árabes, haviam
já passado alguns séculos, quer dizer, demasiados anos na vida de uma
pobre mula. Um pouco por todo o lado se tinham construído e reconstruído
castelos; e as pessoas também iam erguendo as suas casas com o granito e
o xisto dos montes, lançando assim as sementes de todas as aldeias.
Sabia-se da passagem do Rei pelos emissários. A notícia foi de alcaide
em alcaide, chegou ao poderoso Bispo e aos párocos e espalhou-se como
fogo pelos montes até chegar aos pastores. Toda a região ficou em
alvoroço, porque ninguém queria perder o momento singular da passagem do
Rei e de todo o seu séquito de fidalgos e vassalos, o cortejo de muitos
ginetes com as suas lanças e adagas reluzentes e o bramir das trompas.
Há muito já que os espanhóis que ocupavam e viviam por aqueles termos
sabiam da existência da mula encantada; e quando começou a constar que
aquelas terras que ficavam para riba do Côa passariam a pertencer para
sempre aos portugueses, com todas as suas riquezas, foram asinhos em
busca da desejada que era superior aos bens do Bispo e mais poderosa que
os castelos dos fidalgos. Mas era já o acabar do Verão! Eram já frescas
as noites e frias as madrugadas, pelo que nada puderam encontrar. Junto
ao rio, os sabugos bebiam a frescura em silêncio, os castanheiros e os
robles respiravam numa mudez cúmplice que lhes sonegava o tesouro que as
suas mãos rebuscavam, mãos já com as unhas imundas da crueldade e
ganância de Pizarros por haver. Rebanhos, pequenos bichos-do-mato, gente
rude, foi tudo quanto encontraram, assim partindo, fermentando as suas
raivas e frustrações.
Nos muitos anos que se seguiram, anos cuja memória se podia ler nos
troncos das árvores em círculos, onde se desenhavam os rigores de todas
as estações, a mula do lameiro pairou adormecida nas névoas que enfeitam
as manhãs de S. João e arreganham os ossos quando faz Inverno. Dormia
nos sarcófagos do esquecimento como as múmias sob as escaldantes areias
dos desertos. Contudo, em noites em que o vento arrepiava a crosta dos
telhados ou em que a chuva entumecia os capilares da serra e engrossava
as veias dos lameiros que pulsam em direcção ao Côa, havia sempre um
velho ou uma velha que punha nos olhos sonolentos dos netos os fulgores
dos ramos incandescentes das giestas, falando-lhes da mula encantada,
adormecendo-os entre lençóis de fantasia. Nessas noites, a mula renascia
como se Midas respirasse naqueles pobres lares e ficava a boiar pelos
lameiros do sonho.
Desta maneira, conseguiram chegar notícias da sua existência aos
alvores do século dezanove. Então, por todas as terras de Riba-Coa, por
toda a raia, as pessoas viviam conforme as leis d’ O Livro (Ganharás o
pão com o suor do teu rosto!), cultivando as suas sortes e pastoreando
gados, sem cuidar de maiores desgraças que as que a Natureza urdia. Na
memória dos anciãos nenhuma cinza ficara das escaramuças fronteiriças
dos tempos da Restauração. A vida corria tal como o rio: umas vezes
manso e magro; outras rumoroso e de caudal farto.
Um dia, porém, acordaram do seu pasmo com o tinir dos sabres, as
detonações dos fuzis e a gritaria de quantos se viam atropelados pela
besta napoleónica que varria a Europa inteira. Corria o ano de 1811
quando, a 3 de Abril, se deu o combate do Sabugal. Wellington, o amigo
inglês, vence Reynier e obriga o poderoso Massena a abandonar Portugal.
Vencidos, os franceses fugiam pilhando tudo o que podiam. Nada escapava
à sua cobiça. Igrejas e palácios foram passados a pente fino e
espoliados de ouros, pratas, obras de arte. As tulhas foram esvaziadas e
os animais requisitados. A soldadesca bruta fugia por onde podia,
espalhava-se pelas aldeias e deitava mão aos teres e haveres dos pobres
sem cuidar na miséria que deixava para trás. Cabras, ovelhas, burros ou
galinhas, os pães do forno ou peças de fumeiro, tudo foi arrestado em
nome da besta.
Talvez – sabe-se lá agora! – por alguma copa bebida a mais em qualquer
venda ou por conluio de banditagem, os franceses souberam da mula e
devassaram tudo na sua busca; mas o lameiro ainda não soltava da sua boa
erva o bafo das manhãs de S. João e mais não tinha para dar que pascigo
às cabras. Em 1812, os franceses semeariam de novo o tormento pelas
terras do Sabugal, mas iam já comendo o pão que o diabo tinha amassado
para os servir. O fumo dos mosquetes foi-se dissipando e, por muitos
anos mais, o sossego voltou e o tempo escorreu como os velhos
castanheiras que polvilham todo Quadrazais.
Com o crescimento da população, as sortes e as dobras de todos os
montes, que se entrelaçam na majestosa Malcata, tornaram-se
insuficientes para alimentar tantas bocas e os quadrazenhos lançaram-se
na aventura do contrabando. Por fugidias noites, por sobressaltados
anos, a serra foi deles; e o mundo também.
Peças de bombazina, perfumes ou sedas que traziam da vizinha Espanha,
vendiam-nas depois por longínquos recantos de Portugal. Por onde
passavam, como qualquer pessoa, falavam sempre da sua terra; mas penso
que nenhum desses aventureiros terá alguma vez falado da mula encantada
que, de resto, protegiam como se se tratasse de companheira de aventura.
Uma noite, sentindo-a em tanto perigo como eles próprios estavam,
ouviu-se um sussurro no lameiro:
–
Machina-te que lá vêm as de recto facha...
Mas a guarda passou sem se dar conta de quanto estava por ali.
Ninguém falava da ilusão da infância, nem na bela Lisboa, nem por toda a
sonhada França, para onde agora os mais novos prolongavam a aventura.
Cada um falava apenas da dureza das suas vidas. Ou fechavam-se receosos
das más sombras. O silêncio, entretanto, começou a engrossar pelas ruas
e pelas casas, teceu viscosas teias e infestou os campos, adubando
giestais e mato daninho, que se alimenta desse húmus, e, quando novo
século estralejou nos calendários, os silvados tinham invadido os
barrocos e os lameiros da fantasia e acolitado outras espécies de bichos
que somente se revelam confusamente em noites de pesadelo ou remorso.
A
solidão que enche as almas de sementes más atingiu também o coração da
mula encantada, já envelhecido e marcado pelas cicatrizes da vida. Do
seu esconderijo de névoas, quando começou o tempo do contrabando, a mula
via partir aqueles a quem mais se queria entregar, impacientava-se e
sofria pelos seus destinos. Mas eles voltavam e a sua esperança
renascia. Contudo, com o rolar dos tempos, alguns não mais regressavam e
as sementes negras começaram a germinar. Quando, sob as capas do
segredo, os que restavam partiram a salto para França, o pobre animal
cavalgou desesperadamente por toda a raia, em correrias desordenadas,
deixando em todos os cabeços, em todos os lameiros, crinas de vento que
pudessem ser entrelaçadas por quantos ficassem, galgou uma e outra
margem do Côa, onde segredou às águas que vão para o farto Douro e para
a vastidão do Oceano sinais do seu encanto.
Já não ecoam nas muralhas do castelo das cinco quinas os cascos dos
corcéis reais, mas eu conheço sítios onde os moinhos da ilusão ainda
movem as suas mós com as sementes de ouro que venceram todas as idades.
Passei há dias outra vez por lá. Havia um gato numa soleira e alguns
canitos deambulavam pelas ruas. Duas velhas mulheres vestidas de negro
catavam castanhas entre os ouriços varejados. À minha frente, na boleia
dum tractor, dois ganapos aconchegavam-se a qualquer coisa, para se
protegerem do frio que o ritmo dos grandes pneus espevitava. Perdi-os de
vista em qualquer curva da estrada mas, quando um dia destes os
reencontrar, hei-de falar-lhes da mula encantada. Quero que descubram o
tesouro que eu demasiado tarde soube que existia e que, pelo berço, lhes
pertence. |