Todos os livros que tenho escrito têm em comum uma coisa: acreditei
sempre estar tudo certo, nada mais haver a acrescentar ou corrigir.
De todos fiquei farto, saturado, sem nenhuma vontade de a eles
voltar. Só que o tempo passa e depois, às vezes alguns anos depois,
quando a eles volto só acho imperfeições, gralhas e lacunas de
bradar aos céus. E fico invariavelmente de mal comigo mesmo e com o
amargo de boca de não ter sabido fazer melhor. |
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Os juvenis das enguias sobem sempre os cursos de água doce e vão até
onde o diabo não sonha. Achei curioso o nome desta aldeia que fica
já pertinho da Covilhã, como curioso é o nome de outra aldeia, Eirol
(junto ao final do Vouga) - Eiró, o mesmo que Enguia... |
Tivesse eu possibilidades financeiras e alguns conheceriam de imediato a
trituradora para darem lugar a uma nova edição. Perfeita? Nem pensar.
Começo a ficar avisado e sempre me acharei defeitos e sempre esperarei,
sobretudo naqueles com interesse local ou regional, que me cheguem ecos
que me corrijam ou que apareça quem os melhore, lhes dê mais valias de
textos ou de imagens, quem os reescreva comigo ou faça melhor para
proveito de todos.
Alguns anos depois de ter publicado o livro Enguias, escrevi a crónica Herodes e o Meixão que viria a incluir noutro livro (Palavras de Trazer
por Casa – 2007). De quanto digo nessa crónica devo ressalvar o esforço
do Capitão Augusto Salgado, do Porto de i\veiro, na luta contra essa
pesca infame dos juvenis das enguias. O resto permanece como o escrevi.
Entretanto caíram-me nas mãos algumas fotos que ajudam à leitura do
livro das enguias.
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Um «minhoqueiro» feito
em casulo bem amarrado na varinha feita duma cana-da-índia. |
A varinha vai
para o fundo e fica à espera... |
Servir-me-iam para elaborar uma segunda edição mas, como de momento não
se justifica pelo número de exemplares ainda existentes, optei por esta
solução, por este caderninho que o complementará junto dos mais
interessados.
O apêndice, espero-o, não tornará a obrinha definitiva. Repito: sempre
espero, sempre esperarei por novos e melhores contributos, para proveito
de todos, para meu particular proveito.
Sérgio Paulo Silva
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Quando a enguia morde no
minhoqueiro a mão sente e com suaves pressas tira-as para dentro do
barco. |
Em
calhando, elas vão caindo e amontoando-se nas cavernas da bateira, à
mistura com os caranguejos que mordem o minhoqueiro. |
Herodes e o Meixão
Se houve episódio na Bíblia que me perturbou na juventude foi o dos
Santos Inocentes, a crueldade de Herodes, a matança cega de crianças.
Disse-o Jorge Luís Borges e já o referi num dos meus livros: o destino
gosta de repetições, das variantes, das simetrias. Talvez por isso fui
conhecendo outros Herodes, de que talvez Hitler e seus sicários tenham
sido os mais apurados: o destino gosta das repetições. Das variantes e
simetrias também.
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Escoando valas para
arranjar para a caldeirada. Aqui em Adeixos ou Remolhas, na Murtosa,
onde hoje só há asfalto. (Por gentileza de António Vaz de Oliveira |
Uma
chincha de poucas braças para trabalhar da borda apenas com recurso
aos braços da família ou numa perninha entre amigos. |
Um dos meus entretimentos de que, para meu desgosto, raras vezes
lanço mão, é o da pesca desportiva à linha na Ria. Faz-me bem ao
espírito estar a oscilar com a marola e a tentar os robalinhos. Fi-lo
sempre. E contabilizava no final a pescaria que se saldava por um
punhado de robaletes, algumas douradinhas e algumas enguias. Só que, de
há uns anos para cá, raríssimas vezes logrei prender uma enguia.
Estranhando o facto pus-me a inquirir junto dos amigos que têm igual
paixão. E também eles não pescam enguias. A explicação é tão fácil
quanto cristalina: a Ria de Aveiro está despovoada de enguias. Não, não
estão extintas mas extremamente rarefeitas. À medida que foram
diminuindo se foram refinando as artes dos que as pescam para negócio.
Os xinxôrros já não pescam isolados. Agora levam uma bateira auxiliar,
com um só homem ao motor, onde prendem uma das cordas da xinxa. Depois
navegam paralelamente largas distâncias, arrastando tudo, rapando tudo
quanto esteja no caminho. Sem piedade e frequentemente em plena luz do
dia, sem temores escusados, sem pudor, sem lei nem Roque. Os resultados
são devastadores embora para eles sejam, paradoxalmente, mais magros de
ano para ano.
Deve-se a estes pescadores a rarefação das enguias na Ria de Aveiro?
Sim, em parte, porque tudo concorre para. Contudo os verdadeiros
criminosos, os verdadeiros Herodes são bem outros, os que pescam o
meixão para alimentar a gula dos espanhóis e os viveiros.
Os que tiveram a gentileza de ler o meu livro "Enguias" sabem o que é
o meixão e como e onde se reproduzem as nossas enguias. Os que não o
leram ou não colheram saber noutras fontes ficam a saber que as enguias
apenas se reproduzem no Mar dos Sargaços, no continente americano onde
Cristóvão Colombo aportou as suas naus. Mal nascem, vogam no oceano como
um pedacinho de pele, uma escama que não se vê e, ao longo da viagem,
vão ficando como uma lente de contacto alongada. Quando atingem a nossa
costa são como lombrigas, na forma, na cor e no tamanho. Nessa forma
lhes chamamos meixão, os espanhóis chamam-lhes angulas e
são apanhadas com redes com uma malha igual às dos reposteiros das
janelas das casas, ou seja, com redes onde não escapa a cabeça de um
alfinete.
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O meixão juvenil de
enguia como chega às nossas águas, após as metamorfoses sofridas
desde o Mar dos Sargaços onde nascem. |
Redes
criminosas para a campanha do meixão apreendidas pela Capitania do
Porto de Aveiro. |
Um quilograma de meixão é vendido (sem dificuldade) a 250 / 300 euros
e por isso se pratica o crime. Um quilograma de enguias adultas não
precisa de muitas e se forem das velhas, daquilo a que nós por cá
chamamos brazinos, duas ou três chegam. Para se conseguir um quilograma
de meixão, um milhar de jovens enguias não chega... É isto que os
Herodes-pescadores fazem. É agora preciso que a nossa inteligência
funcione para perceber que esta matança diminui em cada ano – ao longo
dos anos – o número de exemplares adultos que se vão reproduzir ao Mar
dos Sargaços. E em cada ano será, logicamente, menor a quantidade de
meixão e cada vez mais caro para tentar, como o capote tenta os touros,
os Herodes.
Que faz a nossa Capitania? Que faz a nossa G.N.R.? Que resultados nos
dão das suas intervenções? Que dizem os ambientalistas de
trazer-por-casa? E a Liga de Protecção da Natureza e a Quercos, que
dizem?
Meus amigos: este artigo não passa de conta de um rosário. Vou
enviá-lo para alguns jornais e para alguns conhecidos na vaga esperança
de lhe adicionar outras contas. Quem me tiver lido, se pensar que isto é
um crime que lesa a nossa Ria e o nosso país, que espalhe a notícia pela
Internet ou por onde calhar. Se conseguirmos ser alguns, juntaremos as
contas e ao menos teremos no final um rosário para podermos rezar pela
alma das enguias dentro de escassos anos.
Não sei se Herodes conheceu a justiça dos homens ou a Divina, mas
penso que a pior chaga que se espalhou pelo nosso país e que tudo
atinge, a chaga da impunidade, já era conhecida naqueles tempos. Eu só
escrevi isto para não ir de anjinho na procissão contra minha vontade e
para ver se outros, com mais poder de intervenção que eu, sacodem as
asas.
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O meixão juvenil de
enguia como chega às nossas águas, após as metamorfoses sofridas
desde o Mar dos Sargaços onde nascem.
Redes criminosas
contribuem para a extinção da espécie, apanhando-o ainda jovem, impedindo que as enguias se
desenvolvam, se tornem adultas e possam regressar posteriormente aos locais de reprodução. |
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