Chamava-se Aurélia, Aurélia de Souza. Era uma senhora maravilhosa que
apareceu um dia para visitar os meus pais. Vinha num carro de modelo
antigo, cheio de cromados fulgentes e ainda não tinha desligado o motor
quando nos tirou a fotografia. A minha mãe, que não sabia quem era nem
quem deixava de ser, assustou-se com aquilo, pegou em mim à pressa,
depois de ter chamado o meu irmão e levou-nos para dentro da toca, sem
me dar sequer tempo de pegar no baldinho com que eu estava a brincar.
É a
única fotografia que temos. Naquele tempo ninguém tinha máquinas
fotográficas e mesmo os que as tinham não se interessavam por famílias
como a nossa, que vivessem como nós vivíamos, nos arredores, em luras
limpinhas mas sem luxos nenhuns. Eu próprio me surpreendo sempre que me
ponho a olhar para ela e sinto, sinto sempre, uma enorme nostalgia dos
dias tão breves mas felizes da minha infância. Lá estava o meu pai a ler
o jornal, um jornal que talvez lhe tivessem oferecido ou que ele tivesse
encontrado em qualquer sítio. Sempre que apanhava um lia-o de fio a
pavio, para depois comentar com os outros coelhos da floresta o que se
passava nos nossos montes e nos montes vizinhos. A minha mãe embirrava
com aquilo mas ele fazia ouvidos de mercador e nunca deixava de ler,
sobretudo as notícias agrícolas e a previsão do tempo. Assim sabia
sempre que culturas se iam fazer e se haveria ou não inundações que nos
pusessem a casa em perigo. Penso que a minha mãe terá compreendido as
vantagens de saber tudo isso ou, então, pura e simplesmente cansou-se de
pregar no deserto e passou a deixá-lo em paz com o seu jornal. E ele lá
estava, o meu pai, de jornal aberto a ler artigos de repolhos ou de
nuvens, indiferente às nossas brincadeiras que nunca iam para além do
pátio.
Às
vezes, quando andávamos a brincar, ouvíamos o chilrear da passarada e
também víamos passar as nossas primas, as lebres, que nunca se
aproximaram de nós, sempre muito senhoras do seu nariz, como se tivessem
o rei na barriga. Não se metiam na nossa vida nem nós na delas e assim é
que estava bem.
Não
sei qual foi o destino do meu irmão. Sei apenas que emigrou. Talvez um
dia o volte a ver, a falar com sotaque e cheio de ouros... se calhar
barrigudo e com brincos nas orelhas. Nem sei se o reconhecerei!
Olhando agora melhor para a minha mãe percebo que ela já trazia uma
barriga grande com mais irmãos que não cheguei a conhecer. Como éramos
pobres e tínhamos sempre o perigo e as doenças a bater-nos à porta,
éramos sempre muito numerosos. Foi sempre o nosso trunfo e a nossa
defesa. Como os cardumes dos peixes...Uma ocasião, saltitava eu pela
floresta preparando o meu futuro conforme as lições dos meus pais,
quando descobri um local de sonho. Dei um pulinho até às raízes duma
velha árvore para ver melhor mas logo me dei conta que era demasiado bom
para ser verdade. Já lá vivia uma família inteirinha de velhos parentes.
Cirandavam dum lado para o outro, uns cofiavam os bigodes, outros faziam
equilibrismo, tudo na boa-vai-ela. Nisto aparece uma raposa e foi o caos
no arraial. Só visto! Cada um fugia por onde podia. A raposa devia estar
deslumbrada com a fartura porque correu para um lado, saltou dum lado
para outro e não sei se terá conseguido apanhar algum porque eu
aproveitei a confusão geral para me pisgar.
Eram
tempos difíceis, esses. Quando se descobria uma horta cheia de legumes
fresquinhos era certo e sabido que havia por ali armadilhas de ferro; os
carreiras pelo mato, quanto mais jeitosos pareciam mais perigosos eram
por causa dos laços de aço. Poucos, muito poucos eram os que chegavam a
velhos.
Não
sei se os meus pais ficaram por ali muito mais tempo. Também eu tive que
partir, de me fazer ao mundo. Na altura custou-me muito, sofri muito com
a separação. Depois, quando deambulava pelos matos, compreendi que tinha
que ser assim. Quando o cortiço está cheio a abarrotar de mel e de
abelhas, a rainha velha forma um enxame e partem à procura duma morada
nova onde recomeçam, onde renovam a vida, deixando espaço às que
ficaram. Que terá sido feito deles? Mesmo a memória da casa só me
aparece agora nítida na fotografia porque um fogo, um grande incêndio
reduziu quanto o olhar abrangia a negras cinzas sem deixar uma erva.
Nessa altura já eu vivia longe dali, num silvado velho que me protegia
dos cães de caça, das corujas e do que calhava. Nunca pude saber nada. A
morte dos bichos é sempre uma morte anónima. Desaparecem. Apenas. Qual
terá sido o destino do velho que lia o jornal? E minha mãe, ainda usará
o mesmo avental?
Portanto a minha casa ficava num silvado. Talvez não fosse lá grande
sítio mas sempre era mais seguro. Por entre o labirinto de espinhos vi
as brincadeiras dos meus filhos, vi -os crescer e comecei a temer a vida
por eles. A vida de qualquer coelho é demasiado frágil e eu não podia
deixar de viver, assim, com o coração na boca. Gola de casaco, ou chapéu
elegante, ou petisco de labrego, ou troféu de caçador, qualquer sorte
nos pode calhar. Mesmo os de chocolate que em vez de pelo têm uma pele
brilhante e colorida têm existência breve. Há sempre um papo ou uma
barriga à espera das nossas doenças ou infelicidades. Numa madrugada em
que o sol estendia pelos campos os primeiros raios ensonados e todos os
membros da família coelho deviam regressar às suas tocas, a minha mulher
não apareceu. Fiquei completamente desnorteado e corri tudo para a
tentar encontrar. Pus anúncios nos jornais e fui andando à aventura por
outros montes procurando um pequeno sinal que fosse. Demasiado me
afastei e, quando desisti, já não tinha forças para voltar.
Com a
ajuda de amigos arranjei este emprego. Não apareceu melhor mas, digam-me
lá, que empregos é que há para um coelho viúvo? Não tenho morada certa e
tanto estou numa feira como estou num teatro ou num casino. A única
coisa que me custa é quando o mago me puxa pelas orelhas para me tirar
da cartola mas, logo a seguir, os olhos dos miúdos arregalam-se de
espanto e eu fico barrigudo de vaidade. Depois volto para a cartola e
saio de cena. Desapareço. Apenas. E o espectáculo, a seguir continua... |