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Sérgio Paulo Silva, História de Coelhos, 1ª ed., Estarreja, Novembro 2005, 12 pp.

 
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História

de

Coelhos


Chamava-se Aurélia, Aurélia de Souza. Era uma senhora maravilhosa que apareceu um dia para visitar os meus pais. Vinha num carro de modelo antigo, cheio de cromados fulgentes e ainda não tinha desligado o motor quando nos tirou a fotografia. A minha mãe, que não sabia quem era nem quem deixava de ser, assustou-se com aquilo, pegou em mim à pressa, depois de ter chamado o meu irmão e levou-nos para dentro da toca, sem me dar sequer tempo de pegar no baldinho com que eu estava a brincar.

É a única fotografia que temos. Naquele tempo ninguém tinha máquinas fotográficas e mesmo os que as tinham não se interessavam por famílias como a nossa, que vivessem como nós vivíamos, nos arredores, em luras limpinhas mas sem luxos nenhuns. Eu próprio me surpreendo sempre que me ponho a olhar para ela e sinto, sinto sempre, uma enorme nostalgia dos dias tão breves mas felizes da minha infância. Lá estava o meu pai a ler o jornal, um jornal que talvez lhe tivessem oferecido ou que ele tivesse encontrado em qualquer sítio. Sempre que apanhava um lia-o de fio a pavio, para depois comentar com os outros coelhos da floresta o que se passava nos nossos montes e nos montes vizinhos. A minha mãe embirrava com aquilo mas ele fazia ouvidos de mercador e nunca deixava de ler, sobretudo as notícias agrícolas e a previsão do tempo. Assim sabia sempre que culturas se iam fazer e se haveria ou não inundações que nos pusessem a casa em perigo. Penso que a minha mãe terá compreendido as vantagens de saber tudo isso ou, então, pura e simplesmente cansou-se de pregar no deserto e passou a deixá-lo em paz com o seu jornal. E ele lá estava, o meu pai, de jornal aberto a ler artigos de repolhos ou de nuvens, indiferente às nossas brincadeiras que nunca iam para além do pátio.

Às vezes, quando andávamos a brincar, ouvíamos o chilrear da passarada e também víamos passar as nossas primas, as lebres, que nunca se aproximaram de nós, sempre muito senhoras do seu nariz, como se tivessem o rei na barriga. Não se metiam na nossa vida nem nós na delas e assim é que estava bem.

Não sei qual foi o destino do meu irmão. Sei apenas que emigrou. Talvez um dia o volte a ver, a falar com sotaque e cheio de ouros... se calhar barrigudo e com brincos nas orelhas. Nem sei se o reconhecerei!

Olhando agora melhor para a minha mãe percebo que ela já trazia uma barriga grande com mais irmãos que não cheguei a conhecer. Como éramos pobres e tínhamos sempre o perigo e as doenças a bater-nos à porta, éramos sempre muito numerosos. Foi sempre o nosso trunfo e a nossa defesa. Como os cardumes dos peixes...Uma ocasião, saltitava eu pela floresta preparando o meu futuro conforme as lições dos meus pais, quando descobri um local de sonho. Dei um pulinho até às raízes duma velha árvore para ver melhor mas logo me dei conta que era demasiado bom para ser verdade. Já lá vivia uma família inteirinha de velhos parentes. Cirandavam dum lado para o outro, uns cofiavam os bigodes, outros faziam equilibrismo, tudo na boa-vai-ela. Nisto aparece uma raposa e foi o caos no arraial. Só visto! Cada um fugia por onde podia. A raposa devia estar deslumbrada com a fartura porque correu para um lado, saltou dum lado para outro e não sei se terá conseguido apanhar algum porque eu aproveitei a confusão geral para me pisgar.

Eram tempos difíceis, esses. Quando se descobria uma horta cheia de legumes fresquinhos era certo e sabido que havia por ali armadilhas de ferro; os carreiras pelo mato, quanto mais jeitosos pareciam mais perigosos eram por causa dos laços de aço. Poucos, muito poucos eram os que chegavam a velhos.

Não sei se os meus pais ficaram por ali muito mais tempo. Também eu tive que partir, de me fazer ao mundo. Na altura custou-me muito, sofri muito com a separação. Depois, quando deambulava pelos matos, compreendi que tinha que ser assim. Quando o cortiço está cheio a abarrotar de mel e de abelhas, a rainha velha forma um enxame e partem à procura duma morada nova onde recomeçam, onde renovam a vida, deixando espaço às que ficaram. Que terá sido feito deles? Mesmo a memória da casa só me aparece agora nítida na fotografia porque um fogo, um grande incêndio reduziu quanto o olhar abrangia a negras cinzas sem deixar uma erva. Nessa altura já eu vivia longe dali, num silvado velho que me protegia dos cães de caça, das corujas e do que calhava. Nunca pude saber nada. A morte dos bichos é sempre uma morte anónima. Desaparecem. Apenas. Qual terá sido o destino do velho que lia o jornal? E minha mãe, ainda usará o mesmo avental?

Portanto a minha casa ficava num silvado. Talvez não fosse lá grande sítio mas sempre era mais seguro. Por entre o labirinto de espinhos vi as brincadeiras dos meus filhos, vi -os crescer e comecei a temer a vida por eles. A vida de qualquer coelho é demasiado frágil e eu não podia deixar de viver, assim, com o coração na boca. Gola de casaco, ou chapéu elegante, ou petisco de labrego, ou troféu de caçador, qualquer sorte nos pode calhar. Mesmo os de chocolate que em vez de pelo têm uma pele brilhante e colorida têm existência breve. Há sempre um papo ou uma barriga à espera das nossas doenças ou infelicidades. Numa madrugada em que o sol estendia pelos campos os primeiros raios ensonados e todos os membros da família coelho deviam regressar às suas tocas, a minha mulher não apareceu. Fiquei completamente desnorteado e corri tudo para a tentar encontrar. Pus anúncios nos jornais e fui andando à aventura por outros montes procurando um pequeno sinal que fosse. Demasiado me afastei e, quando desisti, já não tinha forças para voltar.

Com a ajuda de amigos arranjei este emprego. Não apareceu melhor mas, digam-me lá, que empregos é que há para um coelho viúvo? Não tenho morada certa e tanto estou numa feira como estou num teatro ou num casino. A única coisa que me custa é quando o mago me puxa pelas orelhas para me tirar da cartola mas, logo a seguir, os olhos dos miúdos arregalam-se de espanto e eu fico barrigudo de vaidade. Depois volto para a cartola e saio de cena. Desapareço. Apenas. E o espectáculo, a seguir continua...

 
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