A padaria do meu avô cozia o pão num grande forno de lenha. Fornos
eléctricos a havê-los só se fosse em Lisboa, no Porto e noutras cidades
mais despachadas. Os que havia pelas casas de lavoura, sendo
naturalmente de reduzidas dimensões, rezavam a mesma missa. Coziam o pão
mas, estando quentes, aproveitava-se o seu calor para assar uma carne,
fazer um arroz... até umas sardinhas numa telha lá podiam ir
experimentar uma nesga do inferno.
O aquecimento dos fornos obrigava à apanha de lenha, de caruma, à
limpeza dos pinhais. E, porque nada se podia desperdiçar, todo o brasido
era abafado para servir de carvão nos mais dias da semana.
No meu livro O Antuã no seu Acabar, Fevereiro 2007, escrevi isto:
«Aí
por 1956 ou 57, nos meus 6 ou 7 anos de idade, acordei uma noite
sobressaltado: meu avô não estava na cama onde ambos dormíamos na sua casa próxima da Escola Conde de Ferreira. Há imagens de infância que perduram pela vida e lembro-me de ter ido, às
escuras, pela casa fora, à procura dele. Fui encontrar o meu velho avô
na cozinha, onde também havia uma grande masseira e o forno onde cozia o
célebre pão de oito dias e as padas (oitenta e oito) de muita fama. O
meu avô estava no meio da cozinha, um leitão metido num
ferro (ainda conservo esse ferro facetado) sobre uns cavaletes de madeira, a esfregar a pele já dourada do bicho com um naco enorme de
toucinho.
O leitão voltou docilmente para o forno mas eu só a muito custo é que
voltei para a cama! Na manhã seguinte fomos para a festa da Senhora da
Ribeira...»
Um leitão assava-se por grande festança, quando um bácoro era
deficiente, por ninhada numerosa com dificuldades de venda, enfim...
Como se designava o bicho? Leitão assado. Hoje, por todo o lado é leitão
da Bairrada...
Todas as aldeias, todas as terras deste santo país, são sempre as mais
belas e as mais perfeitas, mesmo que tudo o desdiga. E, se por lá houver
uns silvados eriçados, toca, e depressinha, a registar a confraria das
amoras e a enaltecer o tugúrio. Eu, como entendo as confrarias disto e
daquilo como o que os brasileiros chamariam de vernis-sages, foguetórios
para inglês ver
–
diríamos nós
–
basto-me com leitão assado, com ou sem
recheio. Não é preciso pôr mais na carta. Um piadão tem um amigo meu,
natural de Pardilhó, que vestiu a farda branca
dos cozinheiros (barrete incluído...) e que tudo quanto faz é sempre
rotulado de "à moda de Pardilhó". A ironia também requer os seus
temperos...
Quando se assa o leitão sem recheio
–
coisa que pessoalmente não
aconselho, embora o recheio me faça sempre mal à couve-flor...
–
aproveitam-se os miúdos para um prato muito interessante, a cabidela de
leitão. Nesses anos em que o meu avô assava um leitão para uma
festarola, quase toda a gente criava o seu porquito e galinhas. Tinham, pois, saída os bacorinhos e era raro o que se destinava ao
forno. No meu livro A Feira de St.o Amaro, publicitei uma fotografia
do Prof. Dr. Egas Moniz, fotografia de dois leitões e escrevi, como legenda:
leitão de Janeiro, vai com a mãe ao fumeiro. A feira de St.º
Amaro
acontece, como se sabe, a 15 de Janeiro e as matanças apenas se faziam
em pleno Inverno. Fácil é perceber que um leitão demorava cerca de um
ano a ser criado para poder ir com a mãe ao fumeiro, sendo que esta
também não tirava o ano para dar catequese à ninhada...
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Foto cedida pelo Manuel Sagarra. |
Hoje (tirando as casas de lavradores e algumas mais
–
raras
–
onde sobraram velhos currais e alguma teimosia) pouca gente cria porcos
um ano inteiro e, menos ainda, faz criação. "Vendem-se Leitões", vê-se
às vezes por aí, nalguns portões. E destinam-se aos fornos, sim, mas os
fornos que a isso se dedicam, alimentam-se essencialmente da criação
intensa, de animais exclusivamente alimentados com rações e assim
amamentam, para além dos próprios bacorinhos também a trincarem à tripa
forra. Como os leitões têm que estar sempre disponíveis, congelam-se
maciçamente. A juntar à festa
–
para
não falar de algumas habilidades
–
usam os tais fornos eléctricos. No
final, para quem não sabe ou para quem não pode, Ita Missa Est e vai
toda a gente em paz, está tudo certo, tudo como manda a lei e tudo é
bom. Quanto a mim, aprecio (de longe em longe) uma refeição de leitão,
caprichando nas portas a que bato e sujeitando-me a pagar os desejos um
pouco mais caros. Se correr por minha conta. Não o sendo (a cavalo
dado...) dou ao dente mas já me têm saído muitos duques e algumas senas
tristes, para usar uma linguagem grata aos jogadores de cartas. Nessas
ocasiões, falo em silêncio com o meu avô:
–
Avô Raul, tu esfregavas o bacorinho com carne gorda porque ele era magro, não era? Diz-me, usarias vinho branco se ele fosse
gordo?
Mas o meu velho avô já não me pode ensinar. Mesmo sem querer, a Maria
muitas vezes lá tem que ir com as outras e ficar-lhe-á menos bem não
gabar o leitão à Bairrada, mas pior fará ainda se se deixar tentar pelo
incendiado recheio e o comer com destravada gula. |