Das nossas memórias

 

Como traduzir o óbvio? Para os existencialistas somos sempre "seres em situação". Nasci e cresci em Aveiro. Tantas reminiscências, esta terra não me podia ser indiferente. Há decerto um elemento nostálgico: das vivências, dos percursos, das pessoas que estiveram connosco. De bicicleta pelas ruas da beira-mar, o "adro" das brincadeiras junto dos Bombeiros Novos e da primeira escola, a Feira de Março no Rossio, a antiga lota, saltar para os mercantéis e bateiras no Canal de São Roque. Era uma cidade com uma escala acolhedora.

Como não querer saber ainda mais acerca do nossa identidade colectiva? Seremos menos "cosmopolitas" por essa razão? Claro que não. Em boa verdade todos os sítios do orbe são especiais  pois todos enquadram vivências e concitam as dinâmicas e a afectividade das suas comunidades. Demais, a vontade de participar com maior intimidade, a curiosidade despertada por registos e fragmentos de outras épocas somente enriquece e dimensiona as nossas memórias subjectivas nesta envolvente comum.

Sabemos que por aqui muito património foi destruído pela "lógica do camartelo" e idiossincrasias "modernizadoras": muralhas aterradas, igrejas demolidas, conventos cortados ao meio e outras intervenções questionáveis. Também lemos, aterrorizados, testemunhos de um passado insalubre de assoreamentos, de caprichos da antiga barra natural e de cheias ameaçadoras. A actual artéria principal atravessa um local que já foi um terréu com esteiros, silvados e um tal "ilhote". Ainda recordamos da nossa infância o ritmo das marés e o odor execrável emanado na vazante! As vicissitudes pretéritas somente valorizam o que entretanto se conseguiu. À peculiaridade da geografia e ambiência singulares juntou-se a forte identidade e resiliência de um povo empreendedor na construção de futuros, no desejo de liberdade e no abraçar corajoso de vanguardas políticas (que o devir ratificará).

Pessoas, associações, acontecimentos, e também ruas, casario, escolas, fábricas, lojas e estabelecimentos. É bom caminhar numa rua e reconhecê-la nas suas "layers" diacrónicas. O desafio começa na toponímia (qual "fortuna fluctuosa" ao sabor das conjunturas políticas). Esta abordagem constitui uma experiência enriquecedora que pode e deve materializar o exercício de uma cidadania informada. Sabemos que tudo é transitório e urge questionar sistematicamente, com realismo, o caminho colectivo. Continuaremos a entregar o nosso espaço urbano à rodovia, a viadutos e estacionamentos? Talvez inevitável. A caricatura dos nossos antigos "moliceiros", doravante sem vela, sem "alma" (numa perspectiva freudiana diríamos "castrados"), é solução ética para este património único? E aqueles insuportáveis riquexós motorizados? Mais grave: a gentrificação a que assistimos: é preciso revitalizar sem segregar. Sabemos como a economia é importante. A palavra significa "gerir a casa". Esta é a nossa "casa" comum. Teremos alternativas?

 Voltando ao nosso "Aveiro subjectivo", sabemos que o nosso avô, Abílio João Pinto, guardava coisas efémeras. Revistas, panfletos. Aquelas coisas que habitualmente acabavam no lixo, como hoje se encaminham (idealmente) para a reciclagem. Publicações sem valor imediato eram arquivadas e até encadernadas pelo hábil tipógrafo (trabalhou na Minerva Central e na Gráfica Aveirense). Não o conheci pois faleceu precocemente em 1962. Todavia, o acesso ao seu modesto arquivo consolidou um vínculo e estimulou a curiosidade.

Outros subsídios chegaram igualmente do cadinho familiar. Pais, um tio (César Teixeira) que defendeu as cores de um Beira-Mar primo-divisionário e amiúde nos levava ao velhinho Mário Duarte (adjacente ao Parque Municipal). Outro tio, Manuel Pinto, tomado por um salutar comprometimento com diversas associações da sua terra, com destaque para a corporação conhecida como "Bombeiros Novos". 

E assim, sem intencionalidade ou plano, nos envolvemos numa "demanda" que mais tarde se respalda em alguns textos de notáveis aveirógrafos e em 'arquivos' como este notável "Aveiro e Cultura", confluência de colaborações e memórias "umbilicais".

Em boa hora conheci pessoalmente o seu coordenador: o prestimoso Henrique Oliveira requalificará e divulgará doravante os parcos exemplares da singela colaboração.

Deixo-lhe aqui o protesto da minha elevada consideração. O seu oneroso exercício arquivista é valioso para a nossa comunidade. Somente em linha se chega facilmente a um público "não especializado". Os registos são metodicamente contextualizados e circunstanciados. Existência interpretada na temporalidade acompanhando o pulsar da cidade. A cidade, entidade viva, vivíssima!

"The two offices of memory are collection and distribution."(Samuel Johnson)

Resta referir, num registo independente, a "galeria" apensa. São trabalhos relativamente antigos, principalmente óleos, acrílicos e serigrafias. Experiências ao longo do percurso académico que incluiu as Belas-Artes do Porto. Estivéramos previamente, durante dois anos, na secção de painéis da renomada Fábrica Aleluia, sob a orientação competente do mestre João Calisto.

Entretanto, outras incumbências e o exercício da actividade docente drenaram energia e minimizaram a disponibilidade. Quem sabe se no futuro não voltaremos a esse veículo expressivo, agora que, pela mercê de Deus ("Palavra das palavras", mesmo para um agnóstico!), conseguimos escapar dessa actividade importante mas hoje tão burocratizada e desrespeitada.

Quinta do Picado, 6 de Agosto de 2022

 

 

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