Ilustração de César Rossado
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1 –
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Li não sei onde, escrito não sei por quem, que
determinado fulano era o mais Lisboeta de todos os Alentejanos.
Não é verdade. O mais Lisboeta de todos os Alentejanos, se é que
esta qualidade é medível, é, sem sombra de dúvida, o meu
patrício João Tapadas. Embora não o apregoando, considera, à
partida, sem dar nada de barato, Lisboa uma das mais belas
capitais da Europa. Adora o espectáculo das suas colinas vistas
umas das outras a horas diversas, logo, com luz, cheiros e sons
diferentes (aberrações incluídas). |
Delira com os becos, travessas e ruelas dos
bairros históricos, fazendo vista grossa à horrível e absurda
proliferação de espelhos e cromados que enchem as antigas tascas,
esquecendo-se até que a Mouraria já nem tem casas de fado. Considera
a baixa lisboeta uma espécie de largo da sua aldeia, adorando beber
uma ginjinha na Rua (na rua mesmo) das Portas de Santo Antão. Gosta
dos teatros e do seu ambiente, mas quase desistiu de ir ao cinema
porque abomina aquele estúpido e permanente mascar/mastigar/ruminar.
Tem uma especial predilecção pelos templos e museus espalhados pelos
mais inesperados cantos e recantos do burgo, deliciando-se com o
inebriante espectáculo visual, com o silêncio e com os cheiros (no
caso das igrejas, algumas vezes, acaba por sair antes do previsto,
isto é, entra o padre que, para ele, é um corpo estranho entre tanta
paz e beleza). Todos os dias/noites se espanta com o Tejo (muda o
reflexo da lua ou do sol, muda o barco que nele navega, há mareta,
está mar chão, é mais cinzento chumbo ou mais azul...). Adora o
bastião multicultural que é o associativismo regionalista. Boa parte
dos dias almoça, quase como se de um culto se tratasse, com um ou
mais amigos, mais ou menos seleccionados, grande parte deles
Alentejanos, nas antigamente chamadas Casas de Pasto, (agora são
todas restaurantes...) que já começam a ter preços de quem quer
ganhar tudo num só dia e, quase de certeza por isso mesmo, muitas
delas se vão tramando.
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2 –
No Castelo de Lisboa, dito de S. Jorge, sentado numa
grande pedra secular, que beneficia da sombra de uma velha e
ramalhuda árvore, João Tapadas, lia poesia de Antunes da Silva e
Manuel da Fonseca, saltitando de um para o outro, com enorme prazer
(já tinha feito o mesmo, outras vezes, em sítios vários, com outros
autores de características e/ou tendências diferentes entre si).
Num processo mental involuntário e tranquilo/suave,
foi-se transportando para os largos horizontes Alentejanos, não
fazendo qualquer tipo de comparação, era como que se, simplesmente,
tivesse mudado de mundo.
Viveu as quatro estações: visual, táctil e
odoríficamente, entre o Tejo e a ribeira de Odiaxere, do Atlântico à
fronteira, como que num filme estranhamente real.
Viu serras, barrocais, charnecas e castelos envoltos na
neblina das madrugadas de inverno. Viu extensas planícies
reverdecerem, e em Abril cobrirem-se de milhares de cores de outras
tantas árvores, flores e ervas. Viu vilas e aldeias de casas baixas,
muito brancas, em ruas com estranhos traçados, calcetadas de
basalto, granito ou xisto (quase, insisto no quase, perdoando a
ignorância e falta de sentido estético dos mandantes que
asfaltaram/impermeabilizaram algumas delas...). Viu cidades
cosmopolitas e, ainda, razoavelmente dimensionadas. Viu o ondular
das searas mudando o seu tom de ouro conforme o sentido e a
velocidade do escasso vento. Viu o tremelejo abrasador no pino do
verão, bebendo água, que até parecia fresca, em fontes julgadas
esquecidas. Viu a vindima e a apanha da azeitona, sentindo depois o
cheiro inconfundível das adegas e lagares. Viu monumentos produzidos
pelo homem, certamente em momentos de inspiração rara, de uma beleza
e dimensão extasiantes.
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3 –
Vagueando posteriormente, como consequência de tais
devaneios, pelas ruas de Lisboa e de várias povoações (cidades,
vilas e aldeias) do Alentejo, poisando aqui e ali: em caminhos
rurais, jardins, casas de espectáculos, terraços, tascas,
restaurantes, colectividades e esplanadas, o meu compadre Tapadas,
deu por si a observar atentamente quem estava/passava, estrangeiros
e naturais, e, tristemente, pareceram-lhe todos iguais, tanto no
atavio, como nos sintomas aparentes de contaminação pela praga do
opressor consumismo, como nos gestos e até no conteúdo das
conversas, à excepção de casos pontuais verificados, sobretudo, nos
meios mais pequenos, ou em associações de cariz cultural e/ou
regionalista.
E João sentiu uma dolorosa tristeza. Vai ser este o
fim?... Todos iguais?... Pelo pior, pelo anti-social, pela
desumanização. Sentiu, mais que nunca, que contra esta imbatível
tendência globalizante é fundamental que, pelo menos, cada região
deste pequeníssimo país defenda a especificidade do seu património
cultural, artístico e ambiental. Sem fundamentalismos, mas com os
pés bem assentes no chão, a maior firmeza e coerência.
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4 –
Mas, voltando ao início da conversa, sem dúvidas de
espécie alguma, o meu compadre e amigo João Tapadas, sente-se em
cada troca de ideias que com ele tenhamos, é um homem do Alentejo. É
um homem que lava, não só os olhos, mas também todos os sentidos,
nos grandes espaços da “Pátria Alentejana”.
Todavia, este Alentejano de pensamento vadio é, também,
um bom Lisboeta.
Luís Jordão - Junho/2006 |