Muitos
conhecem as célebres lendas de mouras e mouros encantados, tão
disseminadas por este país fora. São lendas de cariz popular e não
erudito, que pertencem, indiscutivelmente, à tradição oral e não
escrita, e que, segundo as nossas investigações mais recentes,
constituem a memória mais antiga dos nossos longínquos antepassados.
Casos como a lenda da Vila de Moura, por exemplo, terão, talvez, um
fundo histórico e erudito, mas na sua grande maioria, estas lendas são
de raiz mítico-religiosa, própria dos tempos pré-históricos, não
confundível com o povo muçulmano, que aqui habitou do século VIII ao
século XIII.
Haverá,
numa ou noutra lenda, e como é natural, um contágio inevitável e a
própria Igreja medieval, na sua tentativa de expurgar crenças pagãs,
terá fomentado essa confusão, contribuindo para o esquecimento desses
seres míticos primitivos, confundindo-os com o "infiel". Mas, na
verdade, temos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos.
Para
alguns investigadores (ver colecção "Teoria da Continuidade
Paleolítica", Apenas Livros) está completamente fora de questão
confundirem-se estas lendas com o povo muçulmano. Entre outros
argumentos, comprovam a existência da primitiva palavra céltica *MRVOS
(leia-se mroos) – e Celtas teriam sido os primeiros habitantes desta
faixa atlântica da Península Ibérica desde os tempos Paleolíticos –,
para designar 'morto', ou 'ser sobrenatural', qualidade conferida então
aos entes totémicos, os antepassados divinizados das famílias ou clãs.
Como
exemplo, no que se refere ao Alentejo, temos a "Lenda da Quinta do
Fidalgo" e da dama chamada Ana, designação relacionada com o rio
Guadiana e cuja raiz etimológica, 'au', 'an', ou 'av', significa 'avó –
antepassada'. Por outro lado, analisando este fenómeno das lendas das
mouras encantadas, é curioso verificar que uma das estratégias dos
arqueólogos para localizar vestígios pré-históricos é precisamente a
existência persistente deste tipo de lendário em muitas regiões e locais
do país. Coincidências? Ao que parece, foi o que aconteceu no Monte do
Castelinho, em Almodôvar, a propósito da recém-descoberta "pedra
escrita" com caracteres da escrita do sudoeste peninsular. Segundo a
lenda, "uma senhora vivia isolada num casebre do Monte do Castelinho,
quando, a meio da noite, recebeu a visita de uma mulher, que se dizia
vizinha e que lhe pediu lume. Como vizinhos era coisa que nunca tinha
tido, a mulher ficou intrigada e perguntou de onde vinha afinal aquela
mulher misteriosa. A visitante respondeu que vivia ali ao lado, mas
debaixo da terra, acompanhada de um homem lagarto disposto a dar sorte,
ou até um tesouro, a quem se dispusesse / 47 / abraçá-lo." (Jornal
Público, 26 de Setembro de 2008).
Por via
de regra, onde há uma lenda de mouras encantadas, há uma anta, um
megalito, um castro, ou uma gruta utilizada nesses milénios recuados, ou
uma outra qualquer manifestação, como a arte rupestre. Por via de regra,
também, esses mesmos vestígios têm, por coincidência, o nome de "pedra
da moura", "cova da moura", "pala da moura", "casa da moura", "poço da
moura", ou outro semelhante. E a eles se ligam rumores populares,
referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata – de leitura
sugestiva, mas facilmente correlacionada com ambientes pré-históricos –,
ou, mais objectivamente, dizendo que o tesouro é (por coincidência)
pré-histórico, guardado por "cobras-mouras", "bichas-mouras" ou "homens-lagartos".
Não será certamente por acaso que, nas lendas, as mouras são, na maioria
das vezes, meias mulheres, meias serpentes, ou vêm a transformar-se
nesses animais ou noutros, como por exemplo o touro, outro dos ícones
mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre.
Normalmente, nas lendas, esses seres sobrenaturais estão, de facto,
associados à ideia de morte – como acontece, por exemplo, a quem não
cumpra as regras que lhe são impostas para o desencantamento, como é o
caso do homem da lenda "A Tesourinha da Moura", do sítio da Mortilheira,
Mértola (Fernanda Frazão, Lendas Portuguesas da Terra e do Mar, 2004, p.
227-228).
Em
alguns locais, a moura é substituída por um mouro encantado, ou melhor,
um gigante. Na serra da Adiça, por exemplo, o povo acha que as cavidades
abertas no penhasco e a fonte de água frigidíssima fazem parte do
palácio da moura Adiça e que aí se conservam grandes riquezas, à espera
de quem desencante a moura. Dentro das cavidades há um rio, guardado por
uns negros ou gigantes encantados, aonde os que quiserem lograr a
preciosidade desses tesouros têm de experimentar certas aventuras. Tudo
isto é confirmado pela tradição legada dos seus antepassados e as
notícias dadas por um monge que nelas habitava. Este afirmava ouvir
vozes todas as madrugadas que o mandavam acender o fogo e cuidar da sua
obrigação. Cheio de terror, um dia desamparou a cova e veio a falecer
passado pouco tempo. Diz ainda o povo que foi vista recolher às cavernas
da serra uma medonha cobra e que todos os que a ofendiam tinham
experimentado desastrosos sucessos.
É
crença popular que os gigantes, geralmente construtores de megalitos ou
ferreiros – minas e megalitismo são duas das grandes riquezas
alentejanas –, vivem em covas subterrâneas, esse mundo do reino dos
mortos. Nos antigos mitos, são considerados filhos da Mãe-Terra.
Gigantes e mouras encantadas são, assim, os restos populares, visíveis
ainda hoje, do culto mais primitivo da humanidade: o culto dos mortos ou
dos antepassados.
Em Lisboa, a 2 de Outubro de 2008
Gabriela Morais e Fernanda Frazão
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