Dois
mil e oito ficará decerto para a história como um marco. O ano I da
primeira grande crise sistémica global do modelo político-económico
dominante no mundo. Marcará também certamente o início da tomada de
consciência colectiva de que algo terá que mudar no estilo de vida de
todos nós. Uma mudança dos hábitos de consumismo e desperdício, para uma
nova era de racionalidade e poupança.
Tal
mudança terá certamente reflexos em matéria de ambiente, da utilização
dos recursos estratégicos naturais e do ordenamento do território. Mas
tal não será fácil. Os poderes instituídos tudo farão para manter os
modelos que tão bons resultados lhes trouxeram, mesmo que à custa de uma
ainda maior degradação da vida sobre a Terra. As soluções que trazem
para resolver os problemas que criaram acabam por ser mais do mesmo. Não
fazem portanto parte da solução porque eles são parte do problema.
Compete
a todos nós obrigar à verdadeira mudança. Sob pena de assistirmos ao
liquidar definitivo do que resta deste já tão acanhado e semi-destruído
planeta.
Em
questões de ambiente, o ano passado ficou marcado pelas polémicas
declarações do Sr. Al Gore, reduzindo as causas do aquecimento global ao
excesso de produção de CO2. Naturalmente que as soluções que
propõe, apenas destinadas a combater este excesso, se resumem a soluções
de carácter tecnológico.
Nem por
uma só vez, se refere às causas profundas: o sistema politico e / 32 /
económico dominante. Mais cedo do que muitos esperavam a realidade
encarregou-se de corrigir o Sr. Al Gore. O sistema rebenta pelas
costuras e revela-nos as manchas negras do enriquecimento fácil obtido à
custa do roubo e esbanjamento dos recursos de todos por uma minoria.
Quando
no artigo do ano passado chamámos a atenção para estes factos, já alguns
especialistas pressentiam a crise que se aproximava. Já vinham alertando
para que as suas causas eram estruturais e duradouras e não conjunturais
e passageiras como nas crises anteriores.
Os
poderes públicos, implicados nessas causas até ao âmago pelas nas suas
opções de décadas, tudo fizeram e continuam a fazer para as desvalorizar
e contornar. Dois mil e oito começou com a grande maioria das pessoas
pelo mundo fora totalmente desprevenida e longe de imaginar que estes
assuntos também lhes diziam respeito.
Primeiro foram as notícias sobre o rebentamento de uma tal "bolha
imobiliária" norte-americana, lançando milhares de famílias para o
número dos sem abrigo. Depois, mais bolhas começaram a estoirar em
várias partes do mundo, como Portugal, onde a produção de casas nunca
poderia ser absorvida pelas famílias endividadas, como resultante
natural da política dominante de baixos salários e deslocalização de
empresas.
Logo em
seguida com a cavalgada descontrolada e especulativa do preço do
petróleo, surgiram os brutais aumentos dos preços dos combustíveis a
meio do ano, mexendo directamente na bolsa do consumidor. A visão
inédita dos bens de consumo básico a desaparecerem das prateleiras dos
hipermercados, veio assustar ainda mais o cidadão comum e confirmar que
algo de muito grave estava a acontecer.
Finalmente, com o reconhecimento do pico petrolífero, ou seja, de que a
partir de agora as reservas de petróleo conhecidas estão em
decrescimento, a procura de soluções energéticas alternativas tornou-se
um assunto de debate alargado e obrigatório mesmo para aqueles a quem
não interessava.
Mas
naturalmente as divergências entre os poderes instituídos e os
administrados tornaram-se mais notórias.
As
soluções para a crise energética, na perspectiva dos senhores da
indústria, apenas poderiam ser novos produtos tecnológicos, novamente
gastadores de energia e de dinheiro. Enquanto que no lado oposto, muitos
especialistas afirmavam que tal não constituía solução, antes levaria ao
agravamento da situação.
As
verdadeiras soluções passariam por poupar, reduzir os desperdícios e
procurar alternativas baratas nas fontes inesgotáveis (à escala humana)
de energia como o sol e os seus derivados: o vento, as ondas, as marés,
etc. Como não poderia deixar de ser os / 33 / governantes de Portugal
alinharam de imediato ao lado destes "inovadores" e o governo pôs em
marcha algumas das suas orientações. Pesem embora as piedosas intenções
e promessas ao pequeno consumidor, apenas as grandes empresas privadas
foram até agora beneficiadas. Prosseguiu a estratégia de cedência à
iniciativa privada dos recursos naturais do país, alienando ainda mais o
poder político e económico.
A sanha
privatizadora é tanta que se prevê que a própria gestão das áreas
protegidas se passe a fazer por privados.
É o
caso da captação e distribuição de água e do tratamento das águas
residuais e do saneamento básico, com a anunciada privatização das Águas
de Portugal e o novo Plano Estratégico de Abastecimento de Água e
Saneamento.
A nível
da política de novas energias, é o caso a instalação e produção dos
novos parques eólicos, espalhados um pouco por todo o país, que apenas
beneficia os grandes empresários, mantendo-se a micro-produção a níveis
muito reduzidos. É o caso da central fotovoltaica de Serpa, considerada
a maior da Europa, construída (e explorada?) por norte-americanos. É o
caso da proposta da CIP (Confederação da Indústria Portuguesa) afirmando
que há que substituir o petróleo, mas pelo nuclear. É o caso da
encomenda de automóveis eléctricos a empresas japonesas, ainda que a
nossa energia eléctrica seja maioritariamente importada.
Ou
seja, um leque de soluções das mais complexas e exigentes de capitais e
financiadores. As medidas relativas ao ordenamento do território não
foram em geral de melhor sentido, continuando também aí a política de
entrega das decisões aos grandes interesses privados. Cedendo aos
grandes proprietários e empresários da especulação imobiliária, o
governo elaborou uma lei que, na prática, permite construir dentro das
áreas de reserva, desde que demonstrado o interesse público (?) do
empreendimento. São os chamados PIN, Projectos de Interesse Nacional.
Será certamente o que irá acontecer á Costa Alentejana até hoje
relativamente preservada, que fica assim aberta à especulação
imobiliária.
Também
a fuga sistemática ao planeamento urbanístico e a opção por loteamentos
privados, complementados pela privatização e alienação de solos e
equipamentos públicos, continuam bem firmes no pensamento dos
responsáveis políticos. A densificação desordenada parece ainda ser uma
linha de rumo dos empreendedores, acarinhada pelos mesmos responsáveis,
indiferentes aos fenómenos de superprodução do imobiliário.
Sem
mostrar ter aprendido o que quer que seja com a crise actual prefere-se
continuar a crescer, tendo em vista o negócio, em lugar de reabilitar e
requalificar para satisfazer as necessidades / 34 / constitucionais de
habitação.
Outro
exemplo dessa subserviência está nas grandes obras públicas, bem
ilustrado na alteração da localização do novo aeroporto de Lisboa,
apenas concedida quando as associações patronais "falaram grosso". E
isto apesar de, neste momento, em muitas partes do mundo, se começar a
ponderar seriamente a conveniência de novos grandes aeroportos. É também
o caso da duvidosa insistência em construir uma nova ponte no estuário
do Tejo, seja lá onde for, mesmo que esse gesto implique pagar
indemnizações aos exploradores das actuais pontes. É finalmente a
teimosia na construção do elefante branco chamado TGV.
A crise
que se abateu sobre o chamado mundo global parece não ser mais uma das
habituais crises cíclicas do sistema capitalista. Para muitos ela já é a
mãe de todas as crises. Ela representa o início notório da falência de
um sistema que vem há muito arruinando e esgotando os recursos do
planeta, numa mistura explosiva de ganância, arrogância e ignorância por
parte de uma minoria. Tudo aponta para que os próximos anos sejam de
viragem radical.
As
soluções futuras passarão sem dúvida pela utilização de alternativas
energéticas mais baratas e menos dependentes dos combustíveis fósseis,
incluindo provavelmente a nuclear. Passarão também e muito, pela redução
drástica dos consumos e do desperdício.
Mas
terão de passar sobretudo pela alteração das mentalidades, e pela
mudança radical do modelo político-económico dominante no mundo,
substituindo o consumo desenfreado, predador e irracional, assente no
lucro, pela racionalidade e por uma maior atenção ao homem e ao planeta. |