Nas
questões ligadas à manutenção da avifauna e ao equilíbrio ambiental em
geral, é determinante a sensibilização (a todos os níveis) para os
problemas que se vão colocando, em consonância com a evolução das
sociedades. Pelo grau de empenhamento na sua resolução, e respectivos
resultados, nos julgarão as gerações vindouras. De súbito, o Chilrear da
passarada e o zumbido dos insectos é abafado pelo ronco estrépito de um
velho motor a gasóleo. O ruído é tal que, em plena ribeira do Torgal,
nos arredores da povoação alentejana do Cercal, se diria que todos os
sons da Natureza se vergam à presença do barulho infernal.
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O
motor ocupa a totalidade da bagageira de um velho jipe branco,
estacionado num apertado trilho de terra batida. Aparentemente, o
fragor esforçado da máquina só não incomoda Daniel Pires e Filipe
Ribeiro – dois biólogos da Faculdade de Ciências de Lisboa (FCL),
especializados em peixes.
Ao
seu lado, enquanto calçam as botas de borracha e o fato de neoprene
típico dos pescadores de rio, estão duas colaboradoras locais, Rita
Brita e Amy Oliver, que dão apoio a esta saída de campo. A azáfama é
grande e a confusão apenas aparente. |
Esticam-se os cabos eléctricos, preparam-se as varas, limpam-se os
camaroeiros e juntam-se os baldes. Em poucos minutos, Daniel, Filipe e
Rita estão prontos a entrar na água fria do riacho para mais uma sessão
de pesca eléctrica. "O princípio é simples", explica Daniel Pires, que
está a trabalhar para o seu doutoramento, "do motor, que gera uma
corrente eléctrica de 300 a 600 watts, saem dois cabos. Um deles, em
cobre, é colocado na água. O outro extremo é ligado a uma vara de pesca.
Os peixes apanhados neste campo eléctrico são atordoados e recolhidos
pelas nossas redes".
O
esforço mais minucioso é feito junto das margens, nas reentrâncias do
terreno, por debaixo dos troncos caídos. Cada vez que um deles cai na
rede, Daniel dá o alerta: "Peixe". De imediato, passa-o para um dos
camaroeiros dos colegas e, daí, segue para o balde.
Claro
que a pesca eléctrica tem os seus custos. Dependendo das condições da
água e do próprio estado físico dos animais, cerca de cinco a dez por
cento dos peixes morrem com o choque eléctrico.
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"Faltam quatro minutos!", alerta Amy, agarrada ao relógio. Os lagostins
americanos passam ao lado dos biólogos. Ninguém dá nada por eles, a não
ser as lontras. Apenas os peixes importam. Por vezes, Daniel apanha um
escalo. Ou, mais à frente, lança a rede a uma enguia. Mas, variando com
a época do ano e do troço do rio, pode capturar bogas do Sudoeste,
barbos do Sul ou esgana gatos. Mas também pode deitar a mão a uns peixes
exóticos, como o gambúzio, a perca-sol ou o achigã.
A
caminhada lenta prossegue. "Trinta segundos" – avisa Amy. Ninguém
responde. Toda a concentração é para a água escura, tentando garantir
que nenhum peixe passará despercebido. A vegetação aquática, de juncos e
lírios, traz dificuldades acrescidas. Como se isso não bastasse, há que
contar com os jogos de luz, que o sol e a sombra constroem na ribeira.
"Três, dois, um!... Posso desligar?", pergunta Amy, dirigindo-se para o
motor.
Daniel
confirma e os três pescadores abandonam a ribeira com o fruto da
pescaria e procuram abrigo na frescura da vegetação exuberante das
margens, constituída por algum carvalho cerquinho e, principalmente, por
freixos, amieiros, salgueiros e choupos. Um verdadeiro paraíso para os
insectos.
Quando
o motor é desligado, parece que um silêncio pesado se instala no vale.
Sensação efémera. Ao fim de um segundo já os sons da Natureza regressam
em toda a sua plenitude e beleza. Afinal, não tinham desaparecido –
estavam simplesmente abafados!
"Os
peixes que apanhamos nestas ribeiras são as presas naturais das lontras.
São eles que lhes servem de alimento, juntamente com os lagostins e um
ou outro anfíbio. Ribeiras como esta são os territórios de eleição das
lontras", diz Daniel Pires. E, como que a confirmar a afirmação do
biólogo, avistam-se no Torgal dejectos de lontras com uma frequência
inusitada: num pequeno troço de areia, numa pedra mais alta, em cima de
um tronco caído.
Este
mamífero está, de facto, bem adaptado a este tipo de ecossistema. Ao
olharmos para a lontra, parece que ela foi superiormente desenhada para
evoluir na água. O perfil hidrodinâmico do seu corpo alongado permite
mover-se no meio aquático com espantosa flexibilidade, enquanto os
membros curtos e as patas com membranas interdigitais proporcionam uma
natação rápida. A localização dos seus olhos, nariz e orelhas, à
semelhança do que sucede com os hipopótamos e outros mamíferos
aquáticos, estão situados na parte de cima da cabeça – o que lhes
permite ficar fora da água quando nada à superfície. Por outro lado, os
bigodes funcionam como um órgão sensitivo insubstituível quando evoluem
em locais escuros e águas turvas, pois possuem vibrissas que detectam os
movimentos realizados pelas suas presas.
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Para além destas características visíveis, este mustelídeo possui também
uma morfologia interna adaptada ao meio onde caça. Como é sublinhado
numa publicação do antigo Instituto de Conservação da Natureza (ICN),
sobre a distribuição da lontra, os ouvidos e as fossas nasais são
encerradas hermeticamente no momento do mergulho e o ritmo cardíaco é
alterado. Em simultâneo, a curvatura do cristalino é ajustada, "o que
permite a visualização de imagens focadas dentro e fora de água".
Os
escalos e as outras espécies piscícolas autóctones dos rios do Sul
moldaram-se às características dos cursos de água onde vivem. As
ribeiras da Beira Baixa, do Alentejo e do Algarve têm características
especiais: correm plenas de água durante o Outono, Inverno e parte da
Primavera, mas secam no estio. Desaparecem. Transformam-se em pequenos
pêgos – por vezes com profundidades assinaláveis –, onde se concentra
toda a vida aquática das proximidades. "Os escalos – e todos os peixes
que queiram sobreviver nestes cursos de água – refugiam-se nos pêgos. E
esse é um factor de selecção: saber que pêgo se deve escolher para
passar o Verão, qual irá aguentar as elevadas temperaturas sem
evaporar", afirma Daniel Pires. E Filipe Ribeiro dá uma achega na
explicação: "Estes pêgos são conhecidos das lontras, que os usam como
locais onde é fácil obter alimentos. Na verdade, os peixes estão aqui
encurralados e em grandes densidades. O que faz as delícias do
predador".
Não
admira, pois, que estes biólogos já tenham tido vários encontros com
as lontras. Uma dessas visões foi, precisamente, na ribeira do
Torgal: "Vi-a a sair da água e desapareceu na vegetação da margem.
Tínhamos acabado o trabalho e estávamos a fazer algum barulho. Ela
sentiu-nos e fugiu", recorda Daniel, enquanto Filipe se lembra de um
outro momento: "Foi na ribeira de Odelouca e era uma cria. Estava a
comer uma cobra de água e não nos ligou. Ficámos a escassos metros
dela, sossegados, a observar". |
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