UMA COISA DO ANTANHO… DE QUANDO EM QUANDO
Fábrica de Vidros do Côvo / Francisco Miller
Interessado em documentar-me sobra a actividade da
Fábrica da Vista Alegre como fabricante de vidros, saciei a minha
curiosidade lendo o livro comemorativo do centenário daquela empresa,
editado em 1924. Do texto saído da caneta desse extraordinário e laborioso
polígrafo que foi Marques Gomes, consta:
«A fábrica de vidro teve começo logo após a fundação
da fábrica em 1824 e com resultados satisfatório. Os primeiros trabalhos
parecem ter sido dirigidos por Francisco Miller, alemão, que veio de uma
fábrica de Oliveira de Azeméis e de quem descendeu o primeiro mestre de
porcelana.»
No apêndice ao referido livro comemorativo, esclareceu-se
a dúvida expressa na frase «… os primeiros trabalhos parecem ter sido
dirigidos...» pois exarou-se:
«Para assumir a direcção do fabrico de vidro contratou
o seu fundador José Ferreira Pinto Basto o alemão Francisco Miller, que
há anos vinha dirigindo a do Côvo, nas proximidades de Oliveira de
Azeméis e cuja origem data do segundo quartel do século XVI.»
Já em 1882, no catálogo da Exposição Distrital
de Aveiro e sob a epígrafe "Cerâmica e Vidros", inseriu-se:
«Seguiu-se
à Marinha Grande a Fábrica da Vista Alegre, única que produziu depois
dela cristal superior e que funcionou Juntamente com a fábrica de
cerâmica estabelecida na mesma localidade. Começou em 1824 sob a
direcção de Francisco Miller, alemão que dirigiu outra, a do Côvo,
sucedendo-lhe João da Cruz e Costa de 1826 a 1854. Com Miller formou-se
um trio de estrangeiros: o mestre Samuel Hungles, lapidário inglês
(1826) e um florista Italiano, que não passou de Lisboa (1827) com
receio do clima da Vista Alegre.»
Também Vasco Valente, no seu livro "O vidro em Portugal”
e Matos Sequeira no seu escrito “A indústria vidreira em Portugal”,
inserto no catálogo da Companhia Industrial Portuguesa, da Marinha
Grande, são unânimes em afirmar que Francisco Miller era de
nacionalidade alemã. Aceitando como boas as informações que Francisco
Miller era técnico vidreiro e que teve por entidades patronais um Castro
Lemos, na Fábrica de Vidros do Côvo e um Pinto Basto, na Fábrica da
Vista Alegre, ficou-me porém a bailar na mente uma dúvida: se Miller era
alemão, porque não foi baptizado com o nome de Frantz? Ocorrendo-me,
porém, os nomes de Francisco Fernando, Arquiduque da Áustria e de
Francisco José, Imperador da Áustria e Rei da Hungria e atendendo ainda
aos nomes dos colunistas que fizeram estampar em letras de forma, como
sendo alemã nacionalidade de Francisco Miller, não pensei mais no
assunto. Decorridos alguns meses, quando no Arquivo Distrital de Aveiro
folheava um livro paroquial da Igreja de São Miguel de Oliveira de
Azeméis, em busca de registos de antepassados, deparou-se-me um assento
de casamento em que apareciam os nomes de «Mila» e «Miller». Fiquei
estupefacto, pois o que tinha na minha frente era, nem mais, nem menos,
o assento de casamento de Francisco Miller, de teor que transcrevo
integralmente, respeitando a ortografia.
«Aos vinte e sete de Janeiro de mil setecentos e noventa
e três annos nesta Igreja deviherão por palavras de promessa e em face
da Igreja e na forma do Sagrado Concilio Tredentino os contrahentes
Francisco Mila, filho de João Mila e de sua mulher Maria Rosa, neto
paterno de Valente Miller e de Margarida de Edra, estes Alamoens e
materno de Xavier dos Santos e Roza Maria, todos da freguesia de Patayas,
Bispado de Leiria e Luiza Maria Leite de Carvalho, filha legitima de
Jerónimo José Leite de Almeida e de Escolástica Maria, neta paterna de
Francisco de Almeida Valente e de Dorothea do Espirito Santo, todos
desta freguesia de Oliveira de Azemeis, os quais contrahentes eu
Domingos Ferreira da Rocha, Reitor desta freguesia recebi e lancei as
Bençoens e forão testemunhas que comigo assignarão alem de muito pessoal
Bacharel João Soares Pacheco, de Cydacos e Fernando Gonçalves, da
Farrapa, que todos são desta mesma freguesia.»
Da leitura do transcrito assento da casamento concluiu-se
que Valentim Miller a Margarida de Edra, esses sim, eram mesmo «alamoens»
e os seus filho e neto, João e Francisco, eram portugueses nascidos na
freguesia de Pataias, Bispado de Leiria. O próprio aportuguesamento do
sobrenome Miller para Mila, é sem dúvida uma prova da minha asserção e
na esperança de me ser possível comprová-la, havia um meio ao meu
alcance, mas não obtive êxito na diligência que efectuei, pois no
Arquivo Distrital de Leiria informaram-me que os livros paroquiais da
freguesia de Pataias, que me propunha consultar, não existiam,
atribuindo-se o facto às suas destruições quando das invasões francesas.
Pesaroso por ser forçado a desistir das buscas tendentes a averiguar
quem eram os puros «Alamoens», procurei por todos os meios ao meu
alcance saber algo do que foi social e profissionalmente Francisco
Miller.
Em 1792, o Desembargador Inácio de Castro Lemos e Menezes
herdou, por falta de descendentes directos do seu irmão António de
Castro de Menezes e Lemos, a Casa do Côvo e implicitamente a Fábrica de
Vidros, que se encontrava altamente decadente por força do primitivismo
dos seus processos de fabrico e pela concorrência desencadeada
primeiramente pela Real Fábrica de Vidros do Coina e depois pela sua
sucessora, a Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande. Com todo o seu
dinamismo, o novo Senhor do Côvo arrancou a fábrica de vidros ao marasmo
em que se encontrava, catapultando-a para níveis de produtividade e
qualidade nunca alcançadas pela anosa fábrica. Mas para isso, apesar da
sua elevada cultura, não estava preparado tecnicamente aquele que havia
sido Desembargador do Tribunal da Relação do Porto, pelo que teve que
contratar um técnico, que não existia na região.
Na Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande, trabalhava
como oficial vidreiro João Miller e seu filho Francisco, que fez naquela
fábrica o "curso" de vidreiro, começando certamente pelas operações de
"levar a cima"" e "fechar o molde", para ao alcançar a maturidade ser
senhor de conhecimentos profundos de todas as operações da complexa
indústria vidreira. Foi esse jovem, a quem o Senhor do Côvo deu amplos
poderes para a remodelação das instalações fabris e para a sua direcção
técnica, cargo que desempenhou até1824, ano em que e por razões que
jamais se saberão, abandonou a Fábrica de Vidros do Côvo, para assumir a
responsabilidade do arranque e funcionamento do fabrico de vidros da
Fábrica da Vista Alegre.
Do casamento de Francisco Miller com Luiza Maria Leite de
Carvalho, natural de Vilar, nasceram onze filhos: Luiz, Margarida Rita,
Duarte, Manuel, Gaspar, Maria Victória, Joana, Jerónimo, José, Joaquina,
Rosa e João. Por sua vez, ao contraírem matrimónio, deram origem a uma
enormíssima descendência, dispersa hoje por todo o País e em grande
número no Distrito de Aveiro – Palmaz, Pinheiro da Bemposta, Carregosa,
Oliveira de Azeméis, Vale de Cambra, Arouca, Ovar, Ílhavo e Aveiro –
quer com o sobrenome de Miller, como de Miler ou de Mila.
Aveiro, 20-08-1992
Assinatura
Aurélio Guerra |