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SAL – O OURO BRANCO

de novo na Ria de Aveiro...

 

A "Géo" é uma revista muito bem feita sobre lugares e pessoas deste nosso planeta.

Já a leio há muitos anos, nesta curiosidade nunca satisfeita que nos leva a sonhar com viagens que, a maior parte das vezes, nunca viremos a concretizar.

Mas é talvez mesmo por isso que a desfruto, para preencher a vontade de conhecer, já que o seu manancial de informação escrita e fotográfica é verdadeiramente excepcional, fruto de brilhantes profissionais do jornalismo de viagem.

Acontece que o número de Julho era, fundamentalmente, dedicado à Bretanha, um espaço francês que nunca visitei mas que, por ser terra de bacalhoeiros, ainda permanece no meu cardápio de apetites viageiros.

Ainda, pelo menos, não desisti da ideia de há muito acalentada.

E se o desejo já existia, ainda mais aumentou com o que na "Géo" se descrevia, principalmente acerca da Guérande, a ultimamente tão falada Guérande das salinas mais setentrionais que ainda continuam a fazer sal, depois de quase totalmente abandonadas como acontece, hoje em dia, com o salgado aveirense.

Não resisto a traduzir um texto inserido na revista, da autoria de Olivier Picard, com o profundo e último desejo de poder voltar a ver as janelas do céu, de que falava Almada Negreiros, abertas por conta de montes de sal que poderão vir a recortar de novo os horizontes da nossa Ria.

Os marnotos da Guérande estiveram há dias a visitar Aveiro. Os jornais disso deram notícia, bem como das perspectivas favoráveis que os franceses afirmaram existir no salgado aveirense, desde que os proprietários das nossas marinhas, em parceria com o que resta dos nossos marnotos, saibam unir esforços e sejam capazes de constituir uma verdadeira associação de produtores de sal, adoptando para a sua venda a estratégia de “marketing” que tão bons resultados terão sido alcançados pelos bretões. Mas vamos ao texto de Olivier Picard.

 

GUÉRANDE – no país do ouro branco

 

Se bem que ligada administrativamente à região dos Países do Loire, esta terra é bretã! A toponímia dos lugares atesta-o, a história também. Guardada por onze torres redondas, não foi a Guérande, na Idade Média, uma das mais brilhantes praças-fortes dos duques da Bretanha?

No século XV, lá se armava um quarto dos navios bretões e lá se cunhava moeda.

Mas são os cristais cintilantes ao sol que fizeram a sua riqueza e moldaram as paisagens em redor: os cristais do “ouro branco", o sal, sobre o qual recaía o imposto — "la gabelle” —, único meio de preservar a carne ou o peixe até meados do século XIX. O seu comércio, durante muito tempo, foi uma fonte de recursos preciosa para a cidade que o exportava.

E se este comércio já não é hoje tão indispensável para a economia da região, o sal ainda e sempre garante o ritmo da sua vida.

Suspensa das suas alturas, Guérande vigia o mosaico de salinas que se estendem a seus pés por mais de 1.800 hectares: um universo onde a terra, a água e o céu se confundem para formar um vasto golfo, o Trato de Croisic. Este mar interior, aberto para o oceano Atlântico por uma passagem de algumas centenas de metros, bem abrigado e rico em crustáceos, divide-se, de seguida, em múltiplos espelhos rectangulares.

As salinas da Guérande são referidas desde o século IX, no cartulário de Redon, e o uso da evaporação solar para extrair o sal da água do mar remonta provavelmente à época romana. A salina de Penfont estava já em exploração na época dos Carolíngios.

Conquistadas a prados inundáveis, as marinhas de sal atingiram o seu apogeu no fim do século XVI, graças ao desenvolvimento da pesca do bacalhau nos bancos da Terra Nova, para declinar a partir de 1840.

O espaço, para o qual os promotores imobiliários tinham projectos de marinas nos finais dos anos sessenta, está classificado desde 1996. Mas não foi para se transformar em museu ao ar livre.

Aqui, o sal faz com que ainda dele vivam duzentas famílias nas vilas de Batz-sur-mer, do Croisic, de La Turballe e nas casas dos marnotos de Kervallet, Pradel, Sissé ou Queniquen. A formação profissional, posta em prática no liceu de Guérande desde 1979, permite a uma nova geração de marnotos dinamizar uma tradição que estava em vias de extinção. Mais: o rótulo vermelho, alcançado em 1991, recompensa um sal de alta gama reconhecido pelas suas qualidades gustativas e que espera obter urna homologação IGP (indicação geográfica protegida) o “nec plus ultra” das apelações controladas.

Contudo, as técnicas e os saberes não mudaram desde a Idade Média e permanecem submetidos a um sistema hidráulico rigoroso, jogo complexo de estreitos canais e reservatórios, que exigem uma manutenção permanente. Introduzida pelas marés, a água é encaminhada por canais (étiers — os nossos esteiros) para reservatórios dispostos no ponto mais elevado da marinha, onde começa a concentração salina. (os nossos viveiros)

Depois, a água circula em inclinação muito suave entre vários planos de água (os nossos algibés, caldeiros, sobre-cabeceiras, talhos). Ela começa a evaporar-se nos “fares”, possivelmente as “cabeceiras” das nossas marinhas; e a decantação “afina-se” nas “adernes”, possivelmente também os nossos “meios de cima onde se forma a salmoura; enfim, o sal cristaliza nos “oeillets”, o correspondente aos nossos “meios de baixo”.

O fabrico efectua-se de Junho a Setembro, quando a densidade do sal na água atinge 200 gramas por litro. Os cristais da “flor do sal”, finos e brancos, sobrenadam e são “colhidos” à superfície da água com uma “lousse” (rasoila).

Muito mais volumoso, o sal grosso é delicadamente junto, no fundo do “oeillet” — meio de baixo — (que acima de tudo se não deve arranhar!) com a ajuda de um “las”, uma espécie de rapão de madeira com cabo flexível, com cinco metros de comprimento. Tudo está no gesto, na arte de fazer deslocar o utensílio e de deixar correr a mão sobre a superfície.

Um trabalho de ourives numa água límpida que não deve exceder uma profundidade de 1 a 3 centímetros. Porque a evaporação nunca deve ser total. Subtil equilíbrio!

Lavradores do mar, os marnotos têm, sem cessar, de antecipar o tempo que vai fazer para governar as suas marinhas.

Eles gostam de dizer, com um fatalismo cheio de poesia, que o sal é “o filho selvagem do sol e do vento”. 

***

São estas as palavras de Olivier Picard que tanto me fazem lembrar tempos da minha meninice com o meu tio “ti Jaquim” na marinha que ele amanhava.

Uma das muitas que havia na nossa Ria. E que eu já julgava moribundas.

Mas talvez não. Talvez que os montes de sal voltem a ser a alegria do nosso verão, nesta nossa terra de água que é Aveiro.

O exemplo da Guérande está aí a abrir caminhos de ressurgimento para o salgado da nossa Ria.

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 Gabelle imposto sobre o sal; monopólio do Estado durante o Ancien Régime, com a obrigação de cada súbdito do Rei ter que comprar todos os anos uma certa quantidade de sal.

Gaspar Albino, 06/08/1998

 

 

04-05-2018