Simão tinha um barquinho, que lhe fizera o avô Matias, homem do mar e de
outros cem ofícios, que, entre outras habilidades, fazia barcos,
traineiras e navios, iguais aos que, mais de cinquenta mil vezes, o
levaram ao mar. Fazia-os grandes e pequenos, de todos os tamanhos, de
todos os feitios, de todas as cores…
Estava para nascer a primeira pessoa que não apreciasse a sua arte. O
pequeno ateliê improvisado, à beira-mar, rudimentar estrutura construída
em tábuas sobrepostas, que todos os anos eram pintadas com as cores
garridas que caracterizam os palheiros da região, raramente estava sem
gente. Não faltava quem o visitasse, para comprar ou simplesmente para
ver, apreciar, trocar dois dedos de conversa.
Quem ali ia, nunca dava o tempo por mal empregue. As histórias que o
mestre contava, eram dignas do guião para o melhor filme de aventuras.
Era comum encontrarem por ali Simão, que desde pequenito delirava com o
artesanato do avô e não se cansava de o promover, como sabia,
percorrendo a pequena Vila, mostrando os trabalhos aos visitantes,
distribuindo panfletos e cartões-de-visita. Tudo isto, a troco de um
barquinho que lhe tinha pedido e que lhe estava prometido.
Um dia, pelo Natal, recebeu a miniatura, embrulhada num papel colorido
de vários tons. O petiz, que tinha a paciência mais curta do que o seu
metro e vinte de altura, não descansou enquanto não recebeu autorização
para esgaçar o embrulho.
Era um Xávega! Dos grandes, com quatro remos e muitos homens a bordo,
aos remos e aos cambões. Quarenta e seis, mais precisamente. Lá dentro
tinha ainda a rede completa – mangas e saco – as calas, bóias e demais
apetrechos usados na arte.
Os olhos de Simão brilharam de felicidade. Mal podia esperar, para o
mostrar aos amigos.
Que chatice! O presente da sua vida tinha que lhe ser entregue logo
agora, em tempo de férias, em que não havia escola e muitos tinham ido
para fora, visitar os parentes.
– Falta baptizá-lo, disse-lhe o avô. Deixei para ti essa tarefa.
– Torreirinha! Vai chamar-se Torreirinha.
E assim foi. Matias puxou do pincel e escreveu, em letras gordas, em
ambos os bordos da embarcação, o nome escolhido pelo neto.
Simão gostava de levar o barco para a praia. Sentava-se no areal e
imaginava cenários da faina, com lanços roubados ao mar, com juntas de
bois e muitos braços a alar.
Um dia, fosse pelo sol que lhe batia nos olhos, ou pelo lanche reforçado
que a avó Isilda lhe tinha preparado, sentiu-se extraordinariamente
sonolento, a pontos de não lhe apetecer regressar ao palheiro.
Subiu às dunas, pousou a cabecita na vasta manta de
cordeirinhos-da-praia, acomodou o Torreirinha debaixo do braço e
adormeceu.
O que é que acontece quando uma criança adormece? Sonha, pois claro! E
Simão sonhou o sonho mais belo que qualquer filho da praia pode sonhar:
Era um fim de tarde soalheiro. A brisa corria, empurrada de norte,
levantando – aqui e ali – grãos de areia secos, que esvoaçavam no ar.
O céu, num tom amarelo-torrado, alaranjava o mar, espelhando-se nas
vagas serenas, que namoravam a praia, enrolando-se na areia,
cantando-lhe a mais bela canção de amor. As gaivotas, guardiãs,
patrulhavam a praia, em voos rasantes, qual cavaleiro enamorado, velando
a janela da sua amada.
Na areia, Torreirinha esperava a maré, de proa virada a poente, fitando
o infinito. A seu lado, redes e cordas repousavam na areia, servindo de
cama aos dois cães da companha, que àquela hora não passavam sem dormir
a sesta, por mais curta que fosse.
Tudo parecia na mais perfeita harmonia, até que o mar se ergueu
ligeiramente, avançando terra-a-dentro, elevando o Xávega, que flutuou
calmamente sobre as vagas, afastando-se da praia.
Foi aí, sublime momento em que tudo se transformou, que o sal da água se
fez campos de lírios, por onde as cavernas deslizassem, emanando perfume
e brilho.
E de todos os pontos cardeais chegaram outros barcos. Tantos! Todos os
barcos que, de norte a sul, alguma vez navegaram este mar.
A bordo, todos os homens, os vivos e os mortos, lado a lado, ordenando,
praguejando, cantando, sorrindo…
Era vê-los, camisa aberta, cigarro ao canto da boca, a mortalha
escondida na boina preta. Era vê-los, remos ao mar, batidas fortes,
ritmadas, o castelo-da-proa, o maião, o proa, o castelo-da-ré, rasgando
as vagas, à ordem do mandão, que a todos sintonizava.
Anoiteceu e encheu-se o mar de proas iluminadas. E de redes. De longe
chegaram traineiras e arrastões, lugres e navios a motor, com os dóris
amontoados nos convés.
Navegavam, imparáveis, riscando o céu com raios de luz. Entravam e saíam
a barra, desafiando os moliceiros e os saleiros, os mercantéis, os
chinchorros, as chinchas, as robaleiras, as moliceiras, as ílhavas, as
marinhoas, as murtoseiras, as erveiras, as labregas, as caçadeiras, as
patachas e aos seus arrais e mestres e moços, gentes do mar e da ria, os
matolas, os marinhões, os vareiros, mais os de Mira e os da Vagueira, do
Areão, da Figueira, os da Costa de Lavos, os de Vieira de Leiria, os
caxinheiros e os avieiros e os outros, tantos, que se me faz difícil
mencioná-los a todos…
Vieram todos. Homens, mulheres e cachopos, numa procissão de braços e de
mastros, de velas, varas e remos.
Barcadas de moliço, de junco, de mato. Canastras de peixe. Sardinha
prateada, carapau de diamante. Solhas, tainhas, enguias, linguados,
chocos, lampreias, robalos… Encantos mil, saltitando na alma de quem os
viu.
Visão celestial, esta. Frota de barcos e de homens. A memória de um
povo. A alma das gentes marinhoas, que um menino chamado Simão,
sonhando, devolveu à vida.
Francisco José Rito
1 de Junho de 2014
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