AS VERBENAS DE AVEIRO

Trinta e oito anos e nove meses de funcionário municipal não fizeram de mim um burocrata, longe disso, mas deixaram algumas marcas, duas das quais são ter a secretária bem arrumada e os papeis devidamente arquivados. Assim, no meu escritório, os compartimentos inferiores de uma das estantes e de um armário encontram-se cheios de caixas e pastas de arquivo, estando, em onze destas últimas, a história da minha vida particular e profissional dos últimos sessenta anos, com algumas falhas e saltos temporais, como não poderia deixar de ser. Curiosamente, o primeiro documento é muito mais antigo: consiste numa pequena folha pautada de um bloco de apontamentos, onde a minha mãe tomou nota, quinzenalmente, do meu peso que, no dia em que nasci, era de 3,350 kg. Considerando, por um lado, que os recém-nascidos, há 83 anos, não teriam acesso a serviços de apoio especiais frequentes e, por outro, que nasci no n.º 19 da rua de São Sebastião, onde o meu padrinho tinha uma mercearia no n.º 7, penso que estas pesagens deveriam ter sido efectuadas na mesma balança de dois pratos onde o Ti Manel Cacau pesava as batatas, o sabão, o bacalhau, a boroa e demais produtos.

Há dias, quando fui arquivar dois recortes do "Diário de Aveiro" e uma carta de um amigo referentes aos meus artigos sobre as Toponímias de Antanho, verifiquei que já tive de fazer um certo esforço para fechar as argolas. Tendo em atenção que esta pasta já está deitada sobre as outras, porque não cabe na vertical, e que eu faço tenção de ainda receber e arquivar correspondência e outra papelada durante mais uns tempos, depois de ter matutado sobre o assunto, tomei uma decisão: mandar para o arquivo morto, ou seja, para o cesto do lixo, os papeis considerados menos interessantes. E na primeira oportunidade pus mãos à papelada.

Chegado a 1972, deparei com duas cartas que me eram dirigidas: a primeira, da Agência Artística Muñoz, de Lisboa, datada de 8 de Junho e assinada por Hernani Muñoz (pai da grande actriz Eunice Muñoz), em que se propunha um espectáculo com quatro cantores e um conjunto, por 6 500 escudos ( 32,42); a outra, da Empresa Lopes de Almeida do Porto, que sugeria, para o dia 15 de Outubro, um elenco composto por um humorista, três cantores e guitarristas, pelo qual se teria de pagar 6 000 escudos ( 29,93).

Estas duas propostas fizeram-me recordar os anos em que colaborei na realização das Verbenas de Aveiro. Durante vários dias, volta e meia, vinham-me à ideia episódios referentes a esses eventos. Pensei, então, passar essas lembranças para as páginas do Diário de Aveiro, apontando não só para os possíveis leitores que participaram nesses acontecimentos, mas também para os mais novos que se possam interessar por saber como a geração anterior ocupava os tempos livres.

Começo por dizer que não me recordo de quem partiu a iniciativa para que se realizassem Verbenas nesta cidade. Havia uma Comissão de Honra (Governador Civil, Presidente da Câmara e Comandante da PSP) e uma Comissão Executiva, composta por representantes de entidades participantes e por mim, membros estes escolhidos, anualmente, já não sei por quem. A parte estrutural instalações, vedações, iluminação, etc. era assegurada pela Câmara; a burocrática dactilografia, arquivo e contabilidade ficava a meu cargo. A Comissão Executiva tinha o encargo de organizar e publicitar não só os espectáculos e bailes, mas também as Verbenas em si como actividades de animação para os aveirenses e visitantes, desde o meio de Junho até meados de Outubro. Não me recordo de quando começaram nem de quando terminaram, pois, para além das duas supracitadas propostas, só tenho presente uma data, porque coincidiu com a chegada do primeiro homem à Lua, acontecimento ao qual assisti com Vítor Mendes, pai do popular apresentador televisivo Fernando Mendes, juntamente com o seu "partenère" Mariano, após o espectáculo realizado na noite de sábado, 19 de Julho de 1969.

Não resisto a contar um acontecimento com o seu quê de anedótico acontecido nessa noite. Estávamos quatro pessoas e as cadeiras eram pequenas e muito frágeis. Vítor Mendes, que era muito mais gordo do que o filho nunca foi, estava sentado de esquina para poder caber no acento; e o Mariano, volta e meia, mandava-lhe uma piada, sugerindo que ele iria acabar por partir a cadeira. E não é que foi a do Mariano, que até era pequenitates, que acabou por quebrar, para grande gozo do Vítor, que nunca mais o largou até à chegada do americano ao nosso satélite, o que só aconteceu madrugada dentro?!

Voltando às Verbenas. As primeiras tiveram lugar no Jardim Infante D. Pedro, que foi  vedado a toda à volta e ficou com uma porta de entrada junto da avenida Artur Ravara e mais duas de saída: uma na avenida Araújo e Silva e outra no largo de Santo António. O palco funcionava no coreto, que foi dividido ao meio e tapado com lonas na parte de trás. O palco propriamente dito ficava virado para a avenida Araújo e Silva e, na parte de trás, improvisaram-se os camarins. Os Armazéns Gerais da Câmara montaram barracas da Feira do Março, onde várias instituições desportivas, culturais, recreativas e assistenciais do concelho se instalaram para se darem a conhecer e também para obterem receitas, vendendo doces, artesanato, publicações, rifas, etc., ou explorando tômbolas ou divertimentos.

Os espectáculos normalmente efectuavam-se ao sábado à noite, havendo casos em que se realizaram aos domingos. Essencialmente eram de música ligeira, tendo vindo às Verbenas todos os grandes nomes da Canção que estivessem na berra.

 

António Calvário, numa fase inicial da carreira. (Imagem da Internet, sem indicação da autoria)

 

Amália Rodrigues, a cantora mais cara, levou por três espectáculos, num fim de semana, um em Ovar, outro na discoteca de um hotel de Aveiro e o das Verbenas, 40 000 escudos ( 199,52). António Calvário, o que tinha o maior cachet a seguir à Rainha do Fado, não falhou nenhum ano e chegou a vir mais do que uma vez; comecei por lhe entregar 8 000 escudos ( 39,90) e depois 11 000 ( 54,87). Os restantes grandes nomes, Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Maria de Lurdes Resende, Hermínia Silva, Toni de Matos, Artur Garcia, Fernando Farinha, António Mourão, etc. etc. etc., passaram pelos palcos das Verbenas, com cachets que rondariam os 5 000 ( 24,94) a 6 000 escudos ( 29,93). E já agora vou encerrar esta lista de pagamentos com uma grande surpresa para todos. Marco Paulo na altura estava a começar e se a memória me não falha a cumprir serviço militar em Monte Real participou, numa noite de má memória de que falarei lá mais para a frente, em que a vedeta era o José Viana, que cantava O Cacilheiro. O Marco era mais um para encher, a quem na gíria da altura se chamava os catrapilos, e levou os usuais 150 escudos ( 0,75) que pôs no bolso do casaco cor de rosa com um forro muito florido. Para que haja um termo de comparação, direi que em Janeiro de 1974 eu era Chefe dos Serviços de Turismo Municipais e o meu vencimento cifrava-se em 4 200 escudos ( 20,95).  

Os únicos cantores que nunca cá actuaram, por motivos bem diferentes, foram o Rui de Mascarenhas e o Fernando Tordo. O primeiro por indisponibilidade repetida de datas; o segundo, porquanto nas duas noites para que esteve contratado a previsão era de chuva, pelo que suspendemos a sua vinda. Se ele tivesse actuado, eu teria de ter levado, não ao censor, mas ao Governo Civil, a lista com o seu possível reportório. Quando argumentei dizendo que não poderia garantir que depois de estar no palco ele não cantasse outras canções, foi-me respondido que esse problema não seria meu, tendo eu depreendido que iríamos ter assistência especial. Para além deste tipo de espectáculos, levaram-se também a efeito um desfile de Marchas Populares, por altura dos Santos Populares, Concursos do Vestido de Chita e do Vestido de Papel e uma sessão de boxe de que darei notícia no final deste artigo.

Voltando ao primeiro ano, no Jardim, a inauguração não correu bem. À entrada, do lado esquerdo, estava uma barraca de tiro ao alvo e a entidade que a estava a explorar não conhecia os segredos do negócio, sendo um deles e muito importante, que por trás do alvo deve ser colocado um material que absorvesse o chumbo. Aconteceu que o Governador Civil, talvez o Dr. Manuel Lousada, quis mostrar a sua pontaria; acertou, mas o projéctil fez ricochete e provocou-lhe estragos nos óculos e na vista. Às quartas-feiras havia bailes no rinque do Parque, situado ao fundo das escadaria da Pérgola, com um preço de entrada que na moeda actual não tem correspondência, porque seria 0,01 e qualquer coisa e ao qual na moeda antiga chamávamos vinte e cinco tostões, ou seja, dois escudos e cinquenta centavos. Mesmo assim, numa noite, houve um jovem que, para entrar de borla, saltou da Pérgola para o Parque, junto do banco de cimento que ainda lá existe e partiu um pé ou uma perna, indo parar ao Hospital.

E já chega de acidentes, pelo que vou falar de um incidente ocorrido por causa de um espectáculo com Simone de Oliveira e Madalena Iglesias as duas grandes rivais ao trono nacional feminino da canção e apresentado por Henrique Mendes, locutor da TV, que escolhemos a dedo para essa noite, dado que o seu envolvimento amoroso com a intérprete da Desfolhadafazia as primeiras páginas das revistas cor de rosa. E recordo-me, não pelo espectáculo em si, que decorreu normalmente, mas porquanto Simone informou, à última hora, que não poderia vir por razões de saúde. Todavia, nós sabíamos que ela pretendia ir cantar num casino do Algarve, pelo que esta recusa implicou uma viagem nocturna, antes das auto-estradas, até à Costa da Caparica. Ficou-me, também, na ideia o espectáculo de encerramento anual com António Calvário, em que o Jardim estava a pôr por fora, com milhares e milhares de pessoas. Durante a actuação, algumas meninas subiram as pequenas escadas laterais metálicas para irem beijar o seu ídolo. O pai de uma delas, muito conhecido na cidade, entrou também em cena e deu um par de estalos na filha, trazendo-a cá para fora, sob vaias feministas e aplausos machistas. No final do espectáculo, para tirar o cantor do palco teve que se utilizar um carro da Polícia; e não saiu pela escada, mas pela parte de trás do coreto, tendo-se tido que forçar a vedação para a levantar.

Simone de Oliveira em 1969 na RTP, durante a interpretação da canção "Desfolhada" para o Festival da Eurovisão.

Dada a exiguidade do Jardim e a grande quantidade de pessoas que acorriam para ver e ouvir ao vivo, por apenas 5 escudos ( 0,025), os cantores que normalmente só escutavam na Rádio e na TV, foi decidido transferir as Verbenas para a Avenida das Tílias do Parque, espaço que ainda existe, mas que nesse tempo tinha duas áleas de grandes e frondosas árvores que lhe davam o nome. Para o efeito, teve que se mandar desinfestar todo o Parque, dada a enorme quantidade de mosquitos e outros insectos que lá existiam, colocar vedações de arame durante os espectáculos e os bailes, que continuaram a ser no rinque, instalar um palco o grande estrado quadrangular da Câmara normalmente utilizado para o folclore, no qual se efectuaram as necessárias adaptações e montar as barracas da Feira de Março para as Instituições. Houve uma inovação no que respeita às instalações para o público: a criação de uma plateia para centenas de pessoas, constituída por grandes bancos de madeira, construídos nos Armazéns Gerais. O preço de entrada manteve-se o atrás referido, mas para os lugares sentados eram 10 escudos ( 0,05) para as filas A, B e C e 7,50 escudos ( 0,0375) para as restantes.

De seguidas referirei três acontecimentos, passados nas Verbenas do Parque. O primeiro foi, como não podia deixar de ser, na inauguração. Era costume, em Aveiro, nas cerimónias com entidades oficiais, que a tesoura para cortar a fita fosse entregue ao inaugurador numa bandeja, levada por uma Tricana de 1860, acompanhada por uma Salineira. Aconteceu que eu me esqueci de passar pela ourivesaria Verde & Simões para trazer os preditos objectos em prata. Pelo que, à hora marcada, ao alto da escadaria que do Jardim leva ao Parque, estavam as gentis meninas, a fita, mas faltava com que a cortar. O é que me havia de ocorrer? Fui à vizinha casa do jardineiro buscar uma enorme tesoura, pus a alfaia na canastra da Salineira e o Governador achou piada, dado que estávamos num Jardim. Não me lembro se a tesoura cortou ou não a fita, só sei que me safei. O segundo, aconteceu na tarde em que se estava a instalar o piano no palco. Apareceu um senhor que, como me ouviu a dar ordens, perguntou se eu fazia parte da organização. Perguntei-lhe quem era, identificou-se como sendo da fiscalização da Inspecção de Espectáculos e indagou se o recinto tinha sido vistoriado. Respondi-lhe que não. De seguida quis saber qual era a idade para que estavam licenciados os nossos espectáculos e eu informei-o que desde que tivesse nascido, a criança poderia entrar ao colo da mãe. Disse que estava tudo ilegal e que iríamos ser multados. Tentei explicar-lhe que o lucro dos espectáculos reverteria para as associações participantes e quem eram essas entidades. Retorquiu que isso não nos eximia de cumprir as normas legais. Pediu-me a identificação, dei-lhe o BI, mas acrescentei que havia outras pessoas responsáveis acima de mim. Ele pensou que eu estava a tentar safar-me e perguntou-me pelos outros nomes.  E eu, dum só fôlego: "Francisco Vale Guimarães, Governador Civil, Artur Moreira, Presidente da Câmara e Amílcar Ferreira, Comandante da PSP. O senhor devolveu-me o BI e foi-se embora.

Conforme já anteriormente referi, vou agora abordar o espectáculo com José Viana e Marco Paulo para encerrar o capítulo Parque. Tínhamos contratado o José Viana, que actuava quase sempre com o seu pianista, e uns três ou quatro cantores que ninguém conhecia, os tais catrapilos, entre eles o Marco Paulo. Talvez uma semana antes, ele telefonou-me para dizer que tinha recebido um convite para actuar no Palácio de Cristal do Porto, na mesma noite, o que para ele seria interessante economicamente, mas que não aceitaria se nós víssemos algum inconveniente. Falei com Antero Veiga que também fazia parte da Comissão Executiva e cuja a acção foi muito importante, principalmente nos primeiros tempos, porquanto tinha muita experiência de organização de espectáculos na Feira de Março para a Tertúlia Beiramarense de que era Presidente   e seguidamente contactei o cantor para lhe dizer que, desde que estivesse em Aveiro às 23H00, não poríamos problemas. Garantiu-me que sim, na medida que seria ele a abrir o espectáculo no Porto. Nessa noite, como ele ainda não tinha chegado e já eram onze e pouco (não havia telemóveis), fui ao campo de andebol do Beira Mar, junto da Moagem -- na altura era treinador do Clube , e pedi ao guarda para me deixar telefonar para o Porto. Responderam-me que seria o Zé Viana quem fecharia. Voltei para o recinto e combinei com o amigo Antero Veiga que o locutor comunicasse ao público que o cantor iria chegar com um grande atraso, pelo que às pessoas que não quisessem esperar seria devolvido o dinheiro, contra a apresentação do bilhete. Ninguém o fez. Quando ele chegou e ia para entrar para o palco, foi-lhe dito que o poderia fazer para satisfação do seu público e defesa do seu prestígio, mas que a organização não lhe pagaria nada. Respondeu que no fim falaríamos. Conversámos, mas não levou nem um tostão. Passado uns tempos veio a Aveiro, falar comigo, pediu desculpa, propôs um espectáculo com a mulher por um preço muito interessante, mas nunca mais veio às Verbenas.

Não me recordo por que motivos, talvez para servirem como animação turística, dada a nova localização, as Verbenas passaram a ter lugar no Rossio. Aproveitaram-se as barracas da Feira do Março, que ainda se efectuava naquele local, para fazer as vedações do lado do Canal Central e da rua Barbosa de Magalhães e completou-se o fechamento do recinto com um tapume desde a curva do Rossio até ao Canal das Pirâmides. O palco e a plateia eram os mesmos. Para os bailes construiu-se um pequeno estrado do lado direito. Os preços mantiveram-se.

De seguida, irei evocar alguns episódios curiosos passados neste novo recinto. Começarei pelos Bailes, lembrando o nome de dois dos vários conjuntos que neles actuaram: os Kzars, rapaziada nova e amadora, cujo baterista era o Alfredo Vaz Pinto que foi meu jogador de Andebol e os Irmãos Tavares da Gafanha, músicos mais a sério. Um deles, o Arsénio, foi músico profissional toda a vida e não só em Portugal, pois correu o mundo em barcos de cruzeiro. Mais tarde, veio a ser meu freguês diário, quando tive tabacarias. Para terminar com os bailes, uma nota jocosa. Alguma rapaziada sentava-se no muro do cais, junto à entrada, e, quando entrava uma garota conhecida por eles por conceder amplas liberdades, havia sempre quem se levantasse e se dirigisse à bilheteira.

Não vieram só artistas portugueses às Verbenas. Vou lembrar dois casos passados com um espanhol e um brasileiro. O primeiro foi Joselito, que encheu o recinto por duas vezes, cantando em calções. No entanto, os gorjeios e trinados que o público ouviu não saíam directamente da boca do cantor, dado que, agora já o posso divulgar, eram em playback. O Pequeno Rouxinol não só já tinha saído do ovo em 1943, portanto há volta de três décadas, mas até já tinha cumprido as suas obrigações militares.

O outro foi Badaró, cómico muito badalado na época. Veio como cabeça de cartaz de um espectáculo integrado num dos Concursos à Procura de um Ídolo, competições estas de que, passados estes anos todos, vou também tornar claro o funcionamento. Publicitava-se que se andava à procura de um futuro astro da canção, cujas qualidades canoras seriam avaliadas por um Júri durante os nossos espectáculos. Contratava-se só um grande nome, um pianista, um baterista e trompetista ou saxofonista, para cada noite. Arranjava-se um júri de pessoas conhecidas, a quem se dizia que o lucro dos espectáculos se destinava às associações desportivas, culturais, recreativas e benemerentes, o que era verdade, pelo que seria de todo o interesse que na grande final participasse, se possível, um representante de cada uma das várias freguesias do concelho, para atrair os seus conterrâneos. Os candidatos, na tarde do espectáculo, vinham ao palco fazer uma pré-selecção com o pianista. E com este formato, que foi usado mais do que um ano e não foi por nós inventado, conseguíamos espectáculos baratos e com boas bilheteiras. É por esta e por outras que eu desconfio muito de concursos de cantorias e não só. Após um destes espectáculos, estávamos a beber umas cervejas, no pequeno restaurante debruçado sobre o Canal Central, que tinha sido construído para a Exposição Industrial integrada nas comemorações do Milenário (1959), com Badaró, humorista que tinha graça mesmo fora do palco, o que não acontece com todos, e um dos meus colegas da Comissão Executiva, a quem tinha agradado o que tinha estado a ouvir, perguntou: «Então o que diz, senhor Badaró?» A resposta, em português publicável, foi Para quem gosta de porcaria, foi prato cheio.

Agora, referirei algo que se passou com um espectáculo com António Calvário, logo de encargos muito elevados. O tempo estava incerto e nós só poderíamos suspender a vinda dos cantores até ao final da manhã. Pelas 11H00, eu e Antero Veiga decidimos ligar para os Serviços Meteorológicos do Aeroporto das Pedras Rubras, para obter uma previsão do tempo. Fomos a casa dele, morava ali pertíssimo, salvo erro, na rua das Velas. Telefonei, perguntaram-me como estava o vento, qual o aspecto e a altitude das nuvens e, em função da minha resposta, disseram-me que antes da meia noite não choveria. Assim sendo, resolvemos ir para a frente. Durante a tarde e a noite, o tempo continuou incerto, mas eu dizia a toda a gente que poderiam ir ver o Calvário, porque antes da meia noite não iria chover. O cantor entrou em cena às 23H00 e quando acabou de cantar começaram a ouvir-se as badaladas das 24 horas do relógio da Câmara. E então não é que, mal parou o sino, começou a cair cá um destes pés de água!

Vou terminar com dois espectáculos que não foram de cantorias. Um deles foi de  Hipnotismo. Como me foi dito na altura que essa ciência não podia ser praticada sem a presença de um médico, tive de arranjar uma meia dúzia de jovens que se prestaram a  fazer as momices previamente combinadas, a troco de 50 escudos ( 0,25). Poderá perguntar o leitor mais desconfiado o que aconteceria se entre os voluntários se apresentasse no palco alguém para além dos que tivessem sido por mim contratados, quando o hipnotizador fizesse o convite geral aos assistentes. Essa hipótese estava prevista, pois havia uma pré-selecção efectuada no palco durante a qual seria justificada a sua eliminação por razões relacionadas com a sua personalidade. Aliás, a esta distância temporal, já posso denunciar, sem receio de prejudicar ninguém, que o Professor Não Sei Quê era um charlatão, incapaz de hipnotizar nem uma galinha choca.

O outro foi uma sessão de boxe Salgueiros X Boavista, organizada pela já referida Empresa Lopes de Almeida. Como não existia nenhum ringue em Aveiro, eu e um familiar do sócio-gerente da predita Firma, pessoa muito conhecida nesta cidade, já falecida, mas de que não vou revelar o nome, magicámos improvisar o ringue a partir do palco dos espectáculos. Compraram-se cordas e esticadores, os mastros das bandeiras serviram de apoio, e após umas horas de árduo trabalho nocturno, a enorme arena estava delimitada não por dezasseis, não chegámos a esse requinte, mas por doze cordas bem esticadas. No dia seguinte, depois do café do almoço, tomado no antigo Arcada, fomos apreciar a nossa obra e, quando lá chegámos, levámos dois directos nos queixos que nos deixaram não digo KO, mas abananados. Então não é que as cordas estavam bambas! A primeira reacção foi pensar que algum brincalhão tinha andado a mexer nos esticadores; mas apercebemo-nos rapidamente que o autor da brincadeira tinha sido o sol, que tinha secado a humidade e dilatado as cordas. Pelo sim e pelo não, à noite, apresentámo-nos armados de balde de água e esponja, não fosse o São Pedro lembrar-se de inventar uma noite seca, mesmo sendo à beira da Ria.

Tinha resolvido terminar aqui este trabalho, mas quando o comecei a reler para lhe dar os últimos jeitos e trejeitos, reparei que, logo no início, declarei que tinha sido o responsável pela contabilidade. De facto, comprei pastas para arquivar as facturas e os documentos referentes à venda de bilhetes e, ainda, um livro de Deve e Haver. Acontecia, porém, que  tendo elaborado muitos orçamentos da Comissão Municipal de Turismo, nada sabia nem sei de Contabilidade privada. Assim, durante uma reunião de uma das Comissões Executivas, um membro, contabilista de profissão, pediu-me para dar uma espreitadela no referido livro, que eu tinha levado para dar a conhecer a nossa situação económica. Mal abriu o livro exclamou: Mas nós estamos a perder um dinheirão!

Como assim? E estamos mas é com um saldo positivo substancial. – retorqui eu. Tínhamos os dois razão. Só que na minha interpretação, feita unicamente à base dos meus conhecimentos da língua portuguesa, eu inscrevia os pagamentos no Dever (dado que pagava a quem devia) e as receitas no Haver (porque eram o que havia, sinónimo de que tinha). Foi-me então explicado pelo colega de Comissão que era exactamente ao contrário, porquanto o princípio básico da Contabilidade é o seguinte: «Quem recebe deve e quem deve tem a haver.» Ele enunciou-o e eu nunca mais o esqueci, se bem que nunca o tenha praticado, porque nas minhas contas particulares as colunas são Receita e Despesa.               

E com mais esta anedota verídica, reenvio o ficheiro Verbenas para a respectiva gaveta situada algures no meu hipocampo cerebral.

6 de Janeiro de 2020

Diamantino Dias

 

31-01-2020