Trinta e oito anos e nove meses de funcionário
municipal não fizeram de mim um burocrata,
longe disso, mas deixaram algumas marcas, duas das quais são ter
a secretária bem arrumada e os papeis devidamente arquivados.
Assim, no meu escritório, os compartimentos inferiores de uma
das estantes e de um armário encontram-se cheios de caixas e
pastas de arquivo, estando, em onze destas últimas, a história
da minha vida particular e profissional dos últimos sessenta
anos, com algumas falhas e saltos temporais, como não poderia
deixar de ser. Curiosamente, o primeiro documento é muito mais
antigo: consiste numa pequena folha pautada de um bloco de
apontamentos, onde a minha mãe tomou nota, quinzenalmente, do
meu peso que,
no dia em que nasci,
era de 3,350 kg. Considerando, por um lado, que os
recém-nascidos, há 83 anos, não teriam acesso a serviços de
apoio especiais frequentes e, por outro, que nasci no n.º
19 da rua de São Sebastião,
onde o meu padrinho tinha uma mercearia no n.º
7, penso que estas pesagens deveriam ter sido efectuadas na
mesma balança de dois pratos onde o Ti Manel Cacau pesava as
batatas, o sabão, o bacalhau, a boroa e demais produtos.
Há dias, quando fui arquivar dois recortes do
"Diário
de Aveiro"
e uma carta de um amigo referentes aos meus artigos sobre as
“Toponímias de Antanho”,
verifiquei que já tive de fazer um certo esforço para fechar as
argolas. Tendo em atenção que esta pasta já está deitada sobre
as outras,
porque não cabe na vertical,
e que eu faço tenção de ainda receber e arquivar correspondência
e outra papelada durante mais uns tempos, depois de ter matutado
sobre o assunto, tomei uma decisão: mandar para o arquivo morto,
ou seja, para o cesto do lixo, os papeis considerados menos
interessantes. E na
primeira oportunidade pus mãos à papelada.
Chegado a 1972, deparei com duas cartas que me
eram dirigidas: a primeira,
da “Agência Artística Muñoz”,
de Lisboa, datada de 8 de Junho e assinada por Hernani Muñoz
(pai da grande actriz Eunice Muñoz), em que se propunha um
espectáculo com quatro cantores e um conjunto, por 6 500 escudos
(€ 32,42);
a outra,
da “Empresa Lopes de Almeida”
do Porto, que sugeria, para o dia 15 de Outubro, um elenco
composto por um humorista, três cantores e guitarristas, pelo
qual se teria de pagar 6 000 escudos (€
29,93).
Estas duas propostas fizeram-me recordar os anos
em que colaborei na realização das “Verbenas
de Aveiro”.
Durante vários dias, volta e meia, vinham-me à ideia episódios
referentes a esses eventos. Pensei, então, passar essas
lembranças para as páginas do “Diário de
Aveiro”, apontando não só para os
possíveis leitores que participaram nesses acontecimentos, mas
também para os mais novos que se possam interessar por saber
como a geração anterior ocupava os tempos livres.
Começo por dizer que não me recordo de quem
partiu a iniciativa para que se realizassem Verbenas nesta
cidade. Havia uma Comissão de Honra (Governador Civil,
Presidente da Câmara e Comandante da PSP) e uma Comissão
Executiva, composta por representantes de entidades
participantes e por mim, membros estes escolhidos, anualmente,
já não sei por quem. A parte estrutural –
instalações, vedações, iluminação, etc. –
era assegurada pela Câmara;
a burocrática
– dactilografia, arquivo e contabilidade
– ficava a meu cargo. A Comissão
Executiva tinha o encargo de organizar e publicitar não só os
espectáculos e bailes, mas também as Verbenas em si como
actividades de animação para os aveirenses e visitantes, desde o
meio de Junho até meados de Outubro. Não me recordo de quando
começaram nem de quando terminaram, pois,
para além das duas supracitadas propostas,
só tenho presente uma data, porque coincidiu com a chegada do
primeiro homem à Lua, acontecimento ao qual assisti com Vítor
Mendes, pai do popular apresentador televisivo Fernando Mendes,
juntamente com o seu "partenère"
Mariano, após o espectáculo realizado na noite de sábado, 19 de
Julho de 1969.
Não resisto a contar um acontecimento com o seu
quê de anedótico acontecido nessa noite. Estávamos quatro
pessoas e as cadeiras eram pequenas e muito frágeis. Vítor
Mendes, que era muito mais gordo do que o filho nunca foi,
estava sentado de esquina para poder caber no acento;
e o Mariano,
volta e meia,
mandava-lhe uma piada, sugerindo que ele iria acabar por partir
a cadeira. E não é que
foi a do Mariano, que até era
pequenitates, que acabou por quebrar,
para grande gozo do Vítor,
que nunca mais o largou até à chegada do americano ao nosso
satélite, o que só aconteceu madrugada dentro?!
Voltando às Verbenas. As primeiras tiveram lugar
no Jardim Infante D. Pedro,
que foi vedado a toda à volta e ficou com uma porta de entrada
junto da avenida Artur Ravara e mais duas de saída: uma na
avenida Araújo e Silva e outra no largo de Santo António. O
palco funcionava no coreto,
que foi dividido ao meio e tapado com
lonas na parte de trás.
O palco propriamente dito ficava virado para a avenida Araújo e
Silva e,
na parte de trás,
improvisaram-se os camarins. Os Armazéns Gerais da Câmara
montaram barracas da Feira do Março, onde várias instituições
desportivas, culturais, recreativas e assistenciais do concelho
se instalaram para se darem a conhecer
e também para obterem
receitas, vendendo doces, artesanato, publicações, rifas, etc.,
ou explorando tômbolas ou divertimentos.
Os espectáculos normalmente efectuavam-se ao
sábado à noite, havendo
casos em que se realizaram aos domingos. Essencialmente eram de
música ligeira, tendo vindo às Verbenas todos os grandes nomes
da Canção que estivessem na berra.
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António Calvário, numa
fase inicial da carreira.
(Imagem da Internet, sem
indicação da autoria) |
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Amália Rodrigues, a cantora mais cara, levou por
três espectáculos, num fim de semana, um em Ovar, outro na
discoteca de um hotel de Aveiro e o das Verbenas, 40 000 escudos
(€ 199,52). António Calvário, o que tinha
o maior “cachet” a
seguir à Rainha do Fado, não falhou nenhum ano e chegou a vir
mais do que uma vez; comecei por lhe entregar 8 000 escudos (€
39,90) e depois 11 000 (€ 54,87). Os
restantes grandes nomes, Simone de Oliveira, Madalena Iglesias,
Maria de Lurdes Resende, Hermínia Silva, Toni de Matos, Artur
Garcia, Fernando Farinha, António Mourão, etc. etc. etc.,
passaram pelos palcos das Verbenas, com “cachets”
que rondariam os 5 000 (€ 24,94)
a 6 000 escudos (€
29,93). E já agora vou encerrar esta lista de pagamentos com uma
grande surpresa para todos. Marco Paulo –
na altura estava a começar e se a memória me não falha a cumprir
serviço militar em Monte Real –
participou, numa noite de má memória de que falarei lá mais para
a frente, em que a vedeta era o José Viana,
que cantava “O Cacilheiro”.
O Marco era mais um para encher, a quem na gíria da altura se
chamava os “catrapilos”,
e levou os usuais 150 escudos (€ 0,75)
que pôs no bolso do casaco cor de rosa com um forro muito
florido. Para que haja um termo de comparação, direi que em
Janeiro de 1974
eu era Chefe dos Serviços de Turismo Municipais e o meu
vencimento cifrava-se em 4 200 escudos (€
20,95).
Os únicos cantores que nunca cá actuaram, por
motivos bem diferentes, foram o Rui de Mascarenhas e o Fernando
Tordo. O primeiro por indisponibilidade repetida de datas;
o
segundo, porquanto nas duas noites para que esteve contratado a
previsão era de chuva, pelo que suspendemos a sua vinda. Se ele
tivesse actuado, eu teria de ter levado, não ao censor, mas ao
Governo Civil, a lista com o seu possível reportório. Quando
argumentei dizendo que não poderia garantir que depois de estar
no palco ele não cantasse outras canções, foi-me respondido que
esse problema não seria meu, tendo eu depreendido que iríamos
ter assistência especial. Para além deste tipo de espectáculos,
levaram-se também a efeito um desfile de Marchas Populares, por
altura dos Santos Populares, Concursos do Vestido de Chita e do
Vestido de Papel e uma sessão de boxe de que darei notícia no
final deste artigo.
Voltando ao primeiro ano, no Jardim, a
inauguração não correu bem. À entrada, do lado esquerdo, estava
uma barraca de tiro ao alvo e a entidade que a estava a explorar
não conhecia os segredos do negócio, sendo um deles e muito
importante, que por trás do alvo deve ser colocado um material
que absorvesse
o chumbo. Aconteceu que o Governador Civil, talvez o Dr. Manuel
Lousada, quis mostrar a sua pontaria; acertou, mas o projéctil
fez ricochete e provocou-lhe estragos nos óculos e na vista. Às
quartas-feiras havia bailes no rinque do Parque, situado ao
fundo das escadaria da Pérgola, com um preço de entrada que na
moeda actual não tem correspondência, porque seria
€ 0,01 e qualquer coisa e ao qual na
moeda antiga chamávamos vinte e cinco tostões, ou seja, dois
escudos e cinquenta centavos. Mesmo assim, numa noite, houve um
jovem que, para entrar de borla, saltou da Pérgola para o
Parque, junto do banco de cimento que ainda lá existe e partiu
um pé ou uma perna, indo parar ao Hospital.
E já chega de acidentes, pelo que vou falar de um
incidente ocorrido por causa de um espectáculo com Simone de
Oliveira e Madalena Iglesias – as duas
grandes rivais ao trono nacional feminino da canção
– e apresentado por Henrique Mendes,
locutor da TV,
que escolhemos a dedo para essa noite, dado que o seu
envolvimento amoroso com a intérprete da “Desfolhada”fazia
as primeiras páginas das revistas cor de rosa. E recordo-me, não
pelo espectáculo em si,
que decorreu normalmente, mas porquanto Simone informou, à
última hora, que não poderia vir por razões de saúde. Todavia,
nós sabíamos que ela pretendia ir cantar num casino do Algarve,
pelo que esta recusa implicou uma viagem nocturna, antes das
auto-estradas, até à Costa da Caparica. Ficou-me, também, na
ideia o espectáculo de encerramento anual com António Calvário,
em que o Jardim estava a pôr por fora, com milhares e milhares
de pessoas. Durante a actuação,
algumas meninas subiram as pequenas escadas laterais metálicas
para irem beijar o seu ídolo. O pai de uma delas, muito
conhecido na cidade, entrou também em cena e deu um par de
estalos na filha, trazendo-a cá para fora, sob vaias feministas
e aplausos machistas. No final do espectáculo,
para tirar o cantor do palco teve que se utilizar um carro da
Polícia;
e não saiu pela escada, mas pela parte de trás do coreto,
tendo-se tido que forçar a vedação para a levantar.
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Simone de
Oliveira em 1969 na RTP, durante a interpretação da canção
"Desfolhada" para o Festival da Eurovisão. |
Dada a exiguidade do Jardim e a grande quantidade
de pessoas que acorriam para ver e ouvir ao vivo, por apenas 5
escudos (€ 0,025), os cantores que
normalmente só escutavam na Rádio e na TV, foi decidido
transferir as Verbenas para a Avenida das Tílias do Parque,
espaço que ainda existe, mas que nesse tempo tinha duas áleas de
grandes e frondosas árvores que lhe davam o nome. Para o efeito,
teve que se mandar desinfestar todo o Parque, dada a enorme
quantidade de mosquitos e outros insectos que lá existiam,
colocar vedações de arame durante os espectáculos e os bailes,
que continuaram a ser no rinque, instalar um palco
– o grande estrado quadrangular da Câmara
normalmente utilizado para o folclore, no qual se efectuaram as
necessárias adaptações – e montar as
barracas da Feira de Março para as Instituições. Houve uma
inovação no que respeita às instalações para o público: a
criação de uma plateia para centenas de pessoas, constituída por
grandes bancos de madeira, construídos nos Armazéns Gerais. O
preço de entrada manteve-se o atrás referido, mas para os
lugares sentados eram 10 escudos (€ 0,05)
para as filas A, B e C e 7,50 escudos (€
0,0375) para as restantes.
De seguidas
referirei três acontecimentos, passados nas Verbenas do Parque.
O primeiro foi, como não podia deixar de ser, na inauguração.
Era costume, em Aveiro, nas cerimónias com entidades oficiais,
que a tesoura para cortar a fita fosse entregue ao inaugurador
numa bandeja, levada por uma Tricana de 1860, acompanhada por
uma Salineira. Aconteceu que eu me esqueci de passar pela
ourivesaria Verde & Simões para trazer os preditos objectos em
prata. Pelo que, à hora marcada, ao alto da escadaria que do
Jardim leva ao Parque, estavam as gentis meninas, a fita, mas
faltava com que a cortar. O é que me havia de ocorrer? Fui à
vizinha casa do jardineiro buscar uma enorme tesoura, pus a
alfaia na canastra da Salineira e o Governador achou piada, dado
que estávamos num Jardim. Não me lembro se a tesoura cortou ou
não a fita, só sei que me safei. O segundo,
aconteceu na tarde em que se estava a instalar o piano no palco.
Apareceu um senhor que, como me ouviu a dar ordens, perguntou se
eu fazia parte da organização. Perguntei-lhe quem era,
identificou-se como sendo da fiscalização da Inspecção de
Espectáculos e indagou se o recinto tinha sido vistoriado.
Respondi-lhe que não. De seguida quis saber qual era a idade
para que estavam licenciados os nossos espectáculos e eu
informei-o que desde que tivesse nascido, a criança poderia
entrar ao colo da mãe. Disse que estava tudo ilegal e que
iríamos ser multados. Tentei explicar-lhe que o lucro dos
espectáculos reverteria para as associações participantes e quem
eram essas entidades. Retorquiu que isso não nos eximia de
cumprir as normas legais. Pediu-me a identificação, dei-lhe o
BI, mas acrescentei que havia outras pessoas responsáveis acima
de mim. Ele pensou que eu estava a tentar safar-me e
perguntou-me pelos outros nomes. E eu, dum só fôlego:
"Francisco Vale Guimarães, Governador Civil, Artur Moreira,
Presidente da Câmara e Amílcar Ferreira, Comandante da PSP”.
O senhor devolveu-me o BI e foi-se embora.
Conforme
já
anteriormente referi,
vou agora abordar o espectáculo com José Viana e Marco Paulo
para encerrar o capítulo Parque. Tínhamos contratado o José
Viana, que actuava quase sempre com o seu pianista, e uns três
ou quatro cantores que ninguém conhecia, os tais
“catrapilos”, entre eles o Marco
Paulo. Talvez uma semana antes, ele telefonou-me para dizer que
tinha recebido um convite para actuar no Palácio de Cristal do
Porto, na mesma noite, o que para ele seria interessante
economicamente, mas que não aceitaria se nós víssemos algum
inconveniente. Falei com Antero Veiga –
que também fazia parte da Comissão Executiva e cuja a acção foi
muito importante, principalmente nos primeiros tempos, porquanto
tinha muita experiência de organização de espectáculos na Feira
de Março para a Tertúlia Beiramarense de que era Presidente
– e seguidamente contactei o cantor para
lhe dizer que, desde que estivesse em Aveiro às 23H00, não
poríamos problemas. Garantiu-me que sim, na medida que seria ele
a abrir o espectáculo no Porto. Nessa noite, como ele ainda não
tinha chegado e já eram onze e pouco (não havia telemóveis), fui
ao campo de andebol do Beira Mar, junto da Moagem -- na altura
era treinador do Clube –, e pedi ao
guarda para me deixar telefonar para o Porto. Responderam-me que
seria o Zé Viana quem fecharia. Voltei para o recinto e combinei
com o amigo Antero Veiga que o locutor comunicasse ao público
que o cantor iria chegar com um grande atraso, pelo que às
pessoas que não quisessem esperar seria devolvido o dinheiro,
contra a apresentação do bilhete. Ninguém o fez. Quando ele
chegou e ia para entrar para o palco, foi-lhe dito que o poderia
fazer para satisfação do seu público e defesa do seu prestígio,
mas que a organização não lhe pagaria nada. Respondeu que no fim
falaríamos. Conversámos, mas não levou nem um tostão. Passado
uns tempos veio a Aveiro, falar comigo, pediu desculpa, propôs
um espectáculo com a mulher por um preço muito interessante, mas
nunca mais veio às Verbenas.
Não me recordo por que motivos, talvez para
servirem como animação turística, dada a nova localização, as
Verbenas passaram a ter lugar no Rossio. Aproveitaram-se as
barracas da Feira do Março, que ainda se efectuava naquele
local, para fazer as vedações do lado do Canal Central e da rua
Barbosa de
Magalhães e completou-se
o fechamento do recinto com um tapume desde a curva do Rossio
até ao Canal das Pirâmides. O palco e a plateia eram os mesmos.
Para os bailes construiu-se um pequeno estrado do lado direito.
Os preços mantiveram-se.
De seguida,
irei evocar
alguns episódios curiosos passados neste novo recinto. Começarei
pelos Bailes, lembrando o nome de dois dos vários conjuntos que
neles actuaram: os “Kzars”,
rapaziada nova e amadora, cujo baterista era o Alfredo Vaz Pinto
que foi meu jogador de Andebol e os “Irmãos
Tavares” da Gafanha, músicos mais a
sério. Um deles, o Arsénio, foi músico profissional toda a vida
e não só em Portugal, pois correu o mundo em barcos de cruzeiro.
Mais tarde,
veio a ser meu freguês diário,
quando tive tabacarias. Para terminar com os bailes, uma nota
jocosa. Alguma rapaziada sentava-se no muro do cais, junto à
entrada, e, quando entrava uma garota conhecida por eles por
conceder amplas liberdades, havia sempre quem se levantasse e se
dirigisse à bilheteira.
Não vieram só artistas portugueses às Verbenas.
Vou
lembrar dois casos passados com
um espanhol e um brasileiro. O primeiro foi Joselito,
que encheu o recinto por duas vezes, cantando em calções. No
entanto, os gorjeios e trinados que o público ouviu não saíam
directamente da boca do cantor, dado que, agora já o posso
divulgar, eram em “playback”.
O “Pequeno Rouxinol”
não só já tinha saído do ovo em 1943, portanto há volta de três
décadas, mas até já tinha cumprido as suas obrigações militares.
O outro foi Badaró, cómico muito badalado na
época. Veio como cabeça de cartaz de um espectáculo integrado
num dos “Concursos à Procura de um Ídolo”,
competições estas de que, passados estes anos todos, vou também
tornar claro o funcionamento. Publicitava-se que se andava à
procura de um futuro astro da canção, cujas qualidades canoras
seriam avaliadas por um Júri durante os nossos espectáculos.
Contratava-se só um grande nome, um pianista, um baterista e
trompetista ou saxofonista, para cada noite. Arranjava-se um
júri de pessoas conhecidas, a quem se dizia que o lucro dos
espectáculos se destinava às associações desportivas, culturais,
recreativas e benemerentes, o que era verdade, pelo que seria de
todo o interesse que na grande final participasse, se possível,
um representante de cada uma das várias freguesias do concelho,
para atrair os seus conterrâneos. Os candidatos, na tarde do
espectáculo, vinham ao palco fazer uma pré-selecção com o
pianista. E com este formato, que foi usado mais do que um ano e
não foi por nós inventado, conseguíamos espectáculos baratos e
com boas bilheteiras. É por esta e por outras que eu desconfio
muito de concursos de cantorias e não só. Após um destes
espectáculos,
estávamos a beber umas cervejas, no pequeno restaurante
debruçado sobre o Canal Central, que tinha sido construído para
a Exposição Industrial integrada nas comemorações do Milenário
(1959), com Badaró, humorista que tinha graça mesmo fora do
palco, o que não acontece com todos, e um dos meus colegas da
Comissão Executiva, a quem tinha agradado o que tinha estado a
ouvir, perguntou:
«Então o que
diz, senhor Badaró?» A resposta, em português publicável, foi
“Para quem gosta de porcaria, foi
prato cheio.”
Agora, referirei algo que se passou com um
espectáculo com António Calvário, logo de encargos muito
elevados. O tempo estava incerto e nós só poderíamos suspender a
vinda dos cantores até
ao
final da manhã. Pelas 11H00, eu e Antero Veiga decidimos ligar
para os Serviços Meteorológicos do Aeroporto das Pedras Rubras,
para obter uma previsão do tempo. Fomos a casa dele, morava ali
pertíssimo, salvo erro, na rua das Velas. Telefonei,
perguntaram-me como estava o vento, qual o aspecto e a altitude
das nuvens e, em função da minha resposta, disseram-me que antes
da meia noite não choveria. Assim sendo, resolvemos ir para a
frente. Durante a tarde e a noite, o tempo continuou incerto,
mas eu dizia a toda a gente que poderiam ir ver o Calvário,
porque antes da meia noite não iria chover. O cantor entrou em
cena às 23H00 e quando acabou de cantar começaram a ouvir-se as
badaladas das 24 horas do relógio da Câmara. E então não é que,
mal parou o sino, começou a cair cá um destes pés de água!
Vou terminar com dois espectáculos que não foram de cantorias.
Um deles foi de Hipnotismo. Como me foi dito na altura que essa
ciência não podia ser praticada sem a presença de um médico,
tive de arranjar uma meia dúzia de jovens que se prestaram a
fazer as momices previamente combinadas, a troco de 50 escudos (€
0,25). Poderá perguntar o leitor mais desconfiado o que
aconteceria se entre os “voluntários”
se apresentasse no palco alguém para além dos que tivessem sido
por mim contratados, quando o hipnotizador fizesse o convite
geral aos assistentes. Essa hipótese estava prevista, pois havia
uma pré-selecção efectuada no palco durante a qual seria
justificada a sua eliminação por razões relacionadas com a sua
personalidade. Aliás, a esta distância temporal, já posso
denunciar, sem receio de prejudicar ninguém, que o
“Professor Não Sei Quê”
era um charlatão, incapaz de hipnotizar nem uma galinha choca.
O outro foi uma sessão de boxe “Salgueiros
X Boavista”,
organizada pela já referida “Empresa
Lopes de Almeida”. Como não existia
nenhum ringue em Aveiro, eu e um familiar do sócio-gerente da
predita Firma, pessoa muito conhecida nesta cidade, já falecida,
mas de que não vou revelar o nome, magicámos improvisar o ringue
a partir do palco dos espectáculos. Compraram-se cordas e
esticadores, os mastros das bandeiras serviram de apoio, e após
umas horas de árduo trabalho nocturno, a enorme arena estava
delimitada não por dezasseis, não chegámos a esse requinte, mas
por doze cordas bem esticadas. No dia seguinte, depois do café
do almoço, tomado no antigo Arcada, fomos apreciar a nossa obra
e, quando lá chegámos, levámos dois directos nos queixos que nos
deixaram não digo KO, mas abananados. Então não é que as cordas
estavam bambas! A primeira reacção foi pensar que algum
brincalhão tinha andado a mexer nos esticadores; mas
apercebemo-nos rapidamente que o autor da brincadeira tinha sido
o sol,
que tinha secado a humidade e dilatado as cordas. Pelo sim e
pelo não, à noite,
apresentámo-nos armados de balde de água e esponja, não fosse o
São Pedro lembrar-se de inventar uma noite seca, mesmo sendo à
beira da Ria.
Tinha resolvido terminar aqui este trabalho, mas
quando o comecei a reler para lhe dar os últimos jeitos e
trejeitos, reparei que, logo no início, declarei que tinha sido
o responsável pela contabilidade. De facto, comprei pastas para
arquivar as facturas e os documentos referentes à venda de
bilhetes e, ainda, um livro de Deve e Haver. Acontecia, porém,
que tendo elaborado muitos orçamentos da Comissão Municipal de
Turismo, nada sabia nem sei de Contabilidade privada. Assim,
durante uma reunião de uma das Comissões Executivas, um membro,
contabilista de profissão, pediu-me para dar uma espreitadela no
referido livro,
que eu tinha levado para dar a conhecer a nossa situação
económica. Mal abriu o livro exclamou:
–
Mas nós estamos
a perder um dinheirão!
–
Como
assim? E
estamos mas é com um saldo
positivo substancial.”
– retorqui eu. Tínhamos
os dois razão. Só que na minha interpretação, feita unicamente à
base dos meus conhecimentos da língua portuguesa, eu inscrevia
os pagamentos no Dever (dado que pagava
a
quem devia) e as receitas no Haver (porque eram o que havia,
sinónimo de que
tinha). Foi-me então explicado
pelo colega de Comissão que era exactamente ao contrário,
porquanto o princípio básico da Contabilidade é o seguinte:
«Quem recebe deve e quem deve tem a haver.»
Ele enunciou-o e eu nunca mais o esqueci, se bem que nunca o
tenha praticado, porque nas minhas contas particulares as
colunas são Receita e Despesa.
E com mais esta anedota verídica, reenvio o ficheiro Verbenas
para a respectiva gaveta situada algures no meu hipocampo
cerebral.
6 de Janeiro de 2020
Diamantino Dias |