Há séculos, quando os habitantes da região norte circundante do
acidente hidrográfico, que viria a ser a Ria de Aveiro, terão
descoberto que a vegetação submersa lá existente era um óptimo
fertilizante para os seus campos, muitos deles com uma forte
componente arenosa, terão tido que adaptar não só as alfaias
agrícolas, por exemplo os ancinhos, mas também, e muito
especialmente, as embarcações utilizadas para a pesca e
transportes, para virem a colher e carregar o que, agora,
chamamos “moliço”.
No que respeita aos barcos – e sem entrar em considerações do
domínio da arqueologia naval que não interessariam para o caso
vertente –, limitar-me-ei a abordar as alterações que lhes terão
sido introduzidas, ao longo dos tempos, por forma a aumentar a
sua funcionalidade, logo, tornar mais fácil e rentável o labor
dos seus tripulantes.
Assim, uma considerável extensão do bordo, a meio do barco, terá
sido rebaixada ao máximo, ficando abaixo da linha de água, a
partir de certa quantidade de carga, para facilitar a manobra de
colocar, no interior, o pesado conteúdo (moliço e alguma lama)
dos enormes “ancinhos de arrasto”. A proa terá tido de ser
bastante levantada, para que, quando não houvesse vento e a
propulsão, durante a faina, tivesse que ser à vara, os
tripulantes trabalhassem num plano inclinado, obtendo-se, assim,
como é óbvio, melhor rendimento, com muito menos esforço do que
se a tarefa fosse praticada numa superfície plana. No que
respeita à ré, terá sido, também, alteada para servir de suporte
a um leme de grandes dimensões, muito largo e pouco profundo,
que permitisse governar, eficazmente, nas águas baixas das
“praias de moliço”.
Para ajudar no calafeto e proteger a madeira de pinho da acção
do tempo e da água, os moliceiros teriam todo o seu costado
embreado a pez negro, o que lhe conferia uma bela, elegante e
perfeita silhueta negra. Teria acontecido, porém, que, um dia,
talvez bem mais recentemente do que muitos imaginam, um mestre
construtor com veia artística, satisfeito com a sua obra-prima,
ou um moliceiro, com jeito para a pintura e que gostaria muito
do seu barco, teriam pensado, como quase todos nós, quando
fazemos ou possuímos algo que muito estimamos, acrescentar-lhe
um detalhe, um enfeite, com a pretensão de o melhorar ou
embelezar.
E, olhando para aquela grande superfície negra e vazia da proa,
que, ainda por cima, não servia para nada, ao contrário de tudo
o que existia nos moliceiros, onde tudo tinha serventia, já para
não dizer que, sendo negra como os pecados mortais, não estaria
muito de acordo com o feitio alegre e folgazão daquela gente,
teriam os preditos mestre construtor ou moliceiro proprietário
congeminado: “E se eu “botasse” ali uma pintura, “inté” era
capaz de ficar bem.” Tendo posto o pincel em acção, usando as
cores simples e vivas de que dispunham e sem obedecerem a regras
pictóricas de estilos que não conheciam, pintaram o que lhes
veio à ideia. Após verificar que o seu labor tinha obtido o
resultado previsto, por bombordo, porque não repetir a dose por
estibordo? Com estes dois ornatos, o barco teria ficado, na
opinião geral, com as “caras” muito mais airosas, daí que,
olhando para o “castelo da ré”, ter-se-ia reparado que aquelas
grandes zonas de costado preto, sem nada, estariam mesmo a pedir
igual intervenção de estética naval que não se teria feito
esperar.
O alindado barco teria tido êxito e, por isso, suscitado desejos
de imitação e, porque não, algumas invejas. E como nem todos os
mestres construtores ou proprietários seriam dotados de vocação
pictórica, teriam surgido os pintores populares, que se
dedicaram a uma arte decorativa ingénua que, felizmente, chegou
até aos nossos dias.
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Painel da proa. |
Painel da ré. |
E com estas últimas possíveis, mas imaginadas, congeminações,
termino não só os meus considerandos no Reino das Suposições –
onde pretendi elaborar um enredo que «se non è vero è ben
trovato» –, mas também o meu português redigido em Modo
Dubitativo, para entrar na República das Certezas, utilizando
uma Prosa Afirmativa e documentalmente comprovável.
Nesta conformidade, começo por declarar que toda a ilustração,
que se preze, necessita de legenda. E os pintores populares dos
moliceiros nunca se esqueciam desta norma, pondo, por baixo da
pintura, uma frase alusiva. Esta regra conhecia algumas
excepções, que abordarei mais à frente. Mas, como não estavam a
par dos “Acordos Ortográficos” e das outras normas quejandas
vigentes, escreviam conforme falavam, logo com os chamados erros
ortográficos.
Estes painéis nunca se repetiam no mesmo barco e havia uma
grande variedade de temas de que não é possível dar uma ideia,
por sucinta que seja, num jornal, por evidente falta de espaço.
Assim, limitar-me-ei a transcrever, de seguida, algumas das
supracitadas legendas, utilizando uma nomenclatura, entre as
muitas possíveis, deixando-lhes o sabor da grafia original.
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SATÍRICAS |
As
mulheres querce gordas
É um
pexão
Estaqui mas
num é prati
Num me
toques que me desafinas |
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AMOROSAS |
Os
dois namurados
Eu
querote amar
Dame um beijo amor
Nao negues o que te pesso amor
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PROFISSIONAIS |
Bamus Ia pro rio
Corre
que levas lerpas
O respeto bai a proa
O campião do
arrulado
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RELIGIOSAS |
Ora bamus la cum Deos
Pas aos homes
Sinhora da
Saudi
Sinhor dos
Nabegantes
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PATRIÓTICAS |
Biba Portugal
A
bandera portugueza
Biba o sinhor Prezidente
Sempre
defendi a patria
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No que respeita aos painéis, cujas legendas têm um segundo
sentido, por vezes, salgadote e de índole sexual, não me é
possível citar nenhum exemplo, porquanto não me ocorre nenhum
compreensível, sem o apoio da respectiva imagem ou de uma
descrição pormenorizada.
No que concerne às supracitadas pinturas, em que a legenda não
condiz com a imagem, conheci três casos, em que se refere: o
nome do construtor, ou a data da última “reforma” (reparação, em
linguagem local), ou o nome do proprietário; nesta última
circunstância, por vezes, surgia uma figura equestre, sugerindo
comando, superioridade. Curiosamente, nestas três excepções,
tanto quanto me recordo, o painel era, sempre, o da proa, por
bombordo, o qual, quanto a mim, é considerado o mais importante.
Voltando à teoria, enunciada no Jornal de ontem, de que tudo é
perfeito e nada é gratuito, no moliceiro, direi que,
necessitando uma pintura de ser emoldurada, os pintores
populares obedeciam, sempre, a essa norma, enquadrando as suas
obras com frisos, aproveitando a oportunidade para contar,
sucintamente, a história dos homens moliceiros, não através da
escrita, mas utilizando uma linguagem pictórica e simbólica.
Assim, nos frisos da “roda da proa” e da “cinta” anexa,
pintavam, frequentemente, faixas onduladas, sugerindo o
movimento da água da Ria, onde se viam, por vezes, fiapos de
moliço, ou semicírculos, representando conchas, ou, ainda,
encordoados. Com estes ícones pretendia-se significar que os
moliceiros exerciam uma actividade ligada à água. Os restantes
dois frisos interiores da proa eram preenchidos com flores, por
vezes repetidas, símbolos da actividade agrícola que eles tinham
desempenhado ou em que ainda se ocupavam, depois da faina. Na
ré, repetiam-se estas simbologias e respectivas colocações, não
sendo, no entanto, usualmente, pintada a “cinta”. Note-se que
estas pinturas nunca terão estado sujeitas a regras rígidas,
obrigatórias, pelo que, por exemplo, sempre existiram painéis só
com motivos florais. Mas não tenho memória de ter visto
atributos referentes à água, sem ser nos frisos das “rodas da
proa ou da ré” ou na “cinta” da proa.
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Reprodução do
desenho de Domingos José de Castro. |
Frisos
Tal como acontecia com os frisos, os painéis exerciam, também,
antigamente, uma dupla função, só que, neste caso, esta era de
ordem estética e identificadora. E isto porque, em tempos em que
era elevadíssimo o grau de analfabetismo, era muito mais fácil a
referência a um barco, dizendo-se que ele tinha uma varina à
proa, por bombordo, do que indicando-se o seu número de
matrícula.
Nos últimos tempos, tenho verificado que a simbologia marítima
desapareceu dos painéis, ficando só a iconografia agrícola que
remete para uma actividade que, curiosamente, é a que já não é
exercida pelos tripulantes dos actuais sucedâneos dos barcos
moliceiros, nem pelos seus proprietários, que tão pouco se
ocupam, nem uns, nem outros, na apanha do moliço. Mas a sua
actividade – transporte de turistas, regatas e concursos de
painéis – continua ligada à Ria, pelo que seria muito mais
consequente a manutenção da simbologia aquática do que da
campestre.
Ultimamente, tenho, também, notado que os painéis chamados
jocosos, cuja temática é, eminentemente, de ordem sexual,
assunto este que, como no jornal de ontem refiro, não é de
agora, têm vindo a aumentar, sobrepondo-se aos restantes. Como
só via os barcos de transporte de turistas que navegam nos
canais de Aveiro, pensei que, tendo-se os barcos transformado em
meios de transporte urbano, mesmo as suas decorações teriam
sofrido uma influência citadina e que nos seus painéis houvesse
reproduções dos “e-mails” do género dos que circulam,
abundantemente, na “NET”, tal como, anos atrás, era frequente
ver reproduções de gravuras de livros escolares, de santinhos ou
de postais ilustrados. Para minha surpresa, tendo assistido aos
últimos “Concursos de Painéis” realizados nesta cidade,
constatei que o fenómeno era comum a todos os barcos da Ria.
Procurei saber a razão desta moda e foi-me dada uma explicação
convincente, por pessoa amiga: barco que não ostente piada entre
os ombros e os joelhos não tem hipótese de ser contemplado com
um prémio pelos júris dos concursos. Foi-me mesmo referido o
exemplo recente de um antigo moliceiro que mandou pintar quatro
painéis diferentes, mas sem a tal piada com piripiri, e que não
abichou nenhum prémio. Ficou danado e, quando voltou à terra,
foi ter com o pintor e disse-lhe: “Ó pá! Pró ano, quero só
gajas”. Outro exemplo elucidativo, para terminar este assunto.
Foi-me oferecida uma publicação, donde consta um painel, cujo
motivo central, que a seguir descrevo, é do melhor que tenho
visto: na Ria, estão retratados um flamingo e um galo montado
numas longas andas, que o sobrepõe à ave exótica, a quem ele
diz: “Aqui ninguém canta mais alto do que eu”. Como é evidente,
este painel era de uma enorme riqueza polissémica. Desde a mais
simples leitura que chama a atenção para a enorme colónia de
flamingos, mais de mil, que vive na nossa Ria, até outras mais
complexas, de que aponto só uma pista – as aves exóticas,
provindas do continente africano, representariam os emigrantes
que, do mesmo sítio, emigram para a Europa. Pois bem, há alguns
dias, vi o mesmo painel, no Concurso de Aveiro, com uma pequena
alteração na legenda, para tentar ganhar um prémio, mas que o
reduziu, quanto a mim, a uma mera e muito conhecida bravata
sexual: o verbo cantar tinha sido substituído pelo galar.
Durante os anos em que andei pela Ria, tive a oportunidade de
ver milhares de painéis, mas nunca detectei nenhuma grosseria ou
palavrão nas legendas; não sei se a autoridade marítima
exerceria alguma função censória nesta matéria, mas creio que
não. Seria uma questão de bom senso, porquanto o vernáculo era
abundante no linguajar da gente da beira Ria. Este ano, no
Concurso de Aveiro, apareceu um painel, cuja piada é construída
a partir da homografia permitida pelo nome que se dá ao
lingueirão de canudo, só em terras da Murtosa, talvez no norte
da Ria e em regiões, onde, ainda, se faz sentir a influência da
antiga emigração murtoseira, por exemplo, em Setúbal. Para os
restantes milhões de falantes da língua portuguesa, se não se
aperceberem que o vocábulo acaba em Z e não em S e, muito
especialmente, se não souberem que Z final influencia o timbre
da vogal anterior, o que lá está escrito, sublinhando a
representação hiper-realista de um casal, é, actualmente, um
nome feio dos de pimenta na língua, o que, por incrível que
pareça, não aconteceria na gloriosa Época das Descobertas, na
qual constaria do léxico naval, como elemento primordial das
caravelas, naus e galeões.
Finalizando este capítulo, considero que os elementos, que
compõem os Júris dos “Concursos de Painéis”, não só poderiam,
mas também deveriam exercer uma acção pedagógica, no sentido em
que sejam mantidas as linhas mestras desta interessante, valiosa
e, hoje em dia, muito publicitada arte secular, que faz parte
integrante dos moliceiros, o que não significa que a mesma seja
imutável e não acompanhe o andar dos tempos, por exemplo no que
respeita à sua vertente crítica política e social.
Para terminar esta longuíssima comunicação, quero deixar claro
que não sou saudosista, nem defendo que as coisas não devem
mudar, porque dantes é que era tudo melhor. Nem, tão pouco, que
tenhamos que viver a pensar só no passado. Entendo, também, que
cada um faz o que quer daquilo que é seu. Mas quando se ganha
dinheiro com a Etnografia, o antigo, o tradicional, o autêntico
é que são bons e devem ser respeitados.
Todavia, quero deixar claro que, apesar de este artigo versar
sobre painéis, não me estou a dirigir, especificamente, a quem
os pinta. Refiro-me a todos os casos em que, intencionalmente,
não se respeita o autêntico e tradicional, praticando-se grandes
desvirtuamentos, acções estas que considero graves, numa
perspectiva etnográfica. Cito um caso recente: disseram-me,
ainda não vi, que há um barco mercantel adaptado ao transporte
de turistas, em Aveiro, com roda de leme.
Já agora, por que não instalar uma altaneira ponte de comando
nos mercantéis? Ou, aproveitando esta maré de hiper-tecnologia –
em que uns navegam, outros bóiam e alguns andam à rola, para não
falar dos que tentam nadar contra a corrente –, por que não
equipar os moliceiros com painéis solares e telepilotagem?
Aveiro, 21 de
Julho de 2019
Diamantino Dias |