O cartoonista Armando
Regala, fiel intérprete da ironia e humor cagaréus e a quem um
longuíssimo exílio nos USA potencializou o amor pela nossa
terra, ofereceu-me, há dias, um exemplar do livro “Alcunhas
d’Aveiro”, por ele profusamente ilustrado, da autoria de Manuel
Pacheco. Trata-se de um trabalho interessante e que há muito se
esperava que viesse a surgir.
Curiosamente, há uns cinquenta
anos, tive a ideia de pegar neste tema, se bem que de maneira
diferente, porquanto pretendia não só identificar as pessoas e
famílias detentoras das alcunhas, mas também procurar saber qual
a origem desses epítetos. Mas dificuldades do género das
referidas na “Introdução” da supracitada obra levaram-me a
abandonar esse projecto. Por exemplo, soube que haveria pessoas
que não gostariam de ver os seus nomes ou dos seus familiares
mencionados, mesmo que os respectivos ápodos não fossem
desabonatórios. Acrescia a circunstância de algumas alcunhas
serem pejorativas, referindo-se a defeitos físicos e não só.
Desisti, quando me vi confrontado com o caso do proprietário de
uma casa de hóspedes que era conhecido pela pior injúria que se
pode dirigir a uma pessoa.
Com o andar dos tempos, as fichas
que, nessa altura, fui elaborando, tendo em atenção os preditos
propósitos, há muito desapareceram, fisicamente, mas algumas
ainda se mantêm na minha memória e, hoje, vou editar o seu
conteúdo, realizando, se bem que minimamente, esse antigo
propósito.
Nesta conformidade, começarei
pelo
amigo Atita que me contou ter herdado a alcunha do
pai, que era assim chamado porquanto, quando era garoto e ia com
os amigos apanhar pintassilgos, era ele quem tinha a seu cargo
ir atitar aos pássaros. Eu explico, para quem não estiver dentro
do assunto. Os pintassilgos são aves bonitas e com um canto
agradável, daí que haja interesse em apanhá-los vivos, para os
pôr, em casa, dentro de gaiolas. A técnica, utilizada na altura
e no meu tempo, consistia em untar os cardos, onde eles
costumavam pousar, com pez ou com o líquido extraído dos figos
meio-verdes (leite de figo), substâncias estas que funcionavam
como cola e que, portanto, prendiam as patas dos pássaros, não
os deixando levantar voo. Para terminar a explicação, direi que
atitar, neste caso, consistia em imitar o piar dos
pintassilgos, para os tentar atrair para os locais armadilhados.
E, assim, o progenitor do Comendador Eduardo Raposo Rodrigues de
Sousa passou a ser conhecido não pelo Atitador, mas só pelo
Atita, porque uma das leis
fundamentais da língua é a do menor esforço, que só é travada
pela da compreensibilidade. Para acabar esta ficha,
acrescentarei que o campo de caça dessa rapaziada se situava a
norte da Ponte de São João.
Seguidamente, tratarei da alcunha
C.O.X., e não Quioxis, como consta do já mencionado
livro, como se verá de seguida. Quem era conhecido desta maneira
era Severiano Pereira, funcionário da Conservatória do Registo
Civil, que tinha uma notória deficiência física: uma das pernas
era muito mais pequena, pelo que, mau grado usar um sapato com
uma sola de enorme espessura, coxeava imenso. Daí que fosse
conhecido pelo Coxo e tratado dessa maneira por alguns dos seus
amigos e contemporâneos. Já agora, vou contar como tive
conhecimento da criação da alcunha C. O. X.. Um dia,
comprei, na Feira de Março, um antigo “Almanaque Bertrand”, onde
encontrei um desenho de um avião biplano, chamado DO X. Achei
piada à parecença entre os dois nomes e, à noite, na tertúlia da
bica do antigo Café Arcada, comuniquei-a ao Dr. Kodak.
Esse conhecido aveirense que, sendo da idade do meu pai, jogava
comigo, frequentemente, o “Snooker” e o “Buraco” (variante da
Canasta), nos serões dos Galitos e, principalmente, era meu
amigo, disse-me não só que já conhecia esse avião, há muitos
anos, mas também que até tinha sido, exactamente, o seu nome que
lhe tinha sugerido uma maneira de tornar menos cruel a alcunha
do amigo Severiano: tirou o «O» final, e o Coxo passou a ser o
C.O.X..
Baldomero Rodrigues Coelho,
protésico dentário, era conhecido pela alcunha de Dr. Kodak,
dado que, quando era jovem, atravessou uma fase em que fazia
largo uso dessa máquina fotográfica, que trazia sempre consigo.
Toda a gente o tratava por doutor e, quando alguém, que não o
conhecia, lhe perguntava em que é que era licenciado, respondia
dizendo que o era em ideias gerais.
Vou agora tecer algumas
considerações sobre a alcunha Pardalina, da qual já ouvi
a versão Pardelina, alteração esta que, foneticamente, se
necessário, poderia ser facilmente explicada. Este é o epíteto
pelo qual era e é conhecida a família Sousa, especialmente no
bairro da Beira Mar, e da qual refiro só dois elementos: João de
Sousa, remador olímpico do Clube dos Galitos, e o seu filho,
Doutor João Francisco de Sousa, Vereador do Partido Socialista.
A explicação é simples. A determinado momento, terá entrado para
a família uma pessoa, em princípio do sexo feminino, chamada
Perolina. Há quem pretenda que fosse de origem italiana, mas os
actuais detentores da alcunha não têm disso conhecimento e a
palavra existe em português, sendo um adjectivo da família de
pérola. Todavia para as pessoas do bairro, o nome não dizia nada
e, como é normal em situações deste género, foram-no
transformando, no seu interior, até chegar a uma forma parecida
com algo conhecido por todos: pardal. Facto incontroverso, é que
ainda é viva uma senhora da família, chamada Perolina.
A última ficha refere-se a um
caso raríssimo no que respeita a esta matéria, na medida em que
é o único exemplo, que eu conheço, em que ao mesmo indivíduo
correspondiam, pelo menos, sete alcunhas, não sendo nenhuma
delas pejorativa. Referiam-se à sua compleição física, pois era
uma pessoa alta e magra. Manuel Pacheco não referiu este caso
excepcional no seu trabalho, talvez por se tratar de um
sacerdote; só citou um dos epítetos, anonimamente. Mas eu, que
até tinha um bom relacionamento com o Padre Fernandes, Prior da
Freguesia da Vera Cruz, durante mais de quatro décadas, vou
fazê-lo sem sentir que esteja, minimamente, a desrespeitar a
memória de uma pessoa, por quem tinha consideração. As alcunhas
eram as seguintes: Padre Esqueleto, Padre Escalete
(em pronúncia local), Cruzeta,
Cana-da-índia, Cana de Pesca, Chicharro Francês,
Fio de Azeite e Seis em Ponto.
Terminarei dizendo que, nos anos
setenta e oitenta, eu próprio tinha uma alcunha, pois, antes de
Ricardo Salgado, o conhecido “Dono Disto Tudo”, já eu era o
DDT, não porque fosse dono daquilo tudo, mas porque era o
Diamantino Dias do Turismo. Ainda há, hoje,
dois ou três velhos amigos que assim se referem a mim.
Aveiro, 20 de
Julho de 2020
Diamantino Dias |