XXV
Finda a comissão militar em Angola,
regressei à Metrópole e ao BNU. Era o tempo em que todo o serviço ainda
era feito à mão. Por isso, no fim de ano, para contar juros em todas as
contas e preparar os demais elementos para elaboração do balanço,
faziam-se muitos serões. O horário normal de trabalho terminava às seis
horas da tarde. Havia um intervalo de três horas, para tratar dos assuntos
pessoais e jantar, após o que se iniciava o serão, que normalmente durava
das nove à meia-noite.
Uma noite, ao entrarmos para o serão,
reparámos que o nosso colega Zé Trigueiro trazia uma garrafa de espumante
escondida debaixo do sobretudo. "Ó Zé, isso é para bebermos no serão?" –
perguntou o Pita, para o provocar. "Não, isto é só para homens!" –
respondeu o Zé, com os maus modos que o caracterizavam. Zé Trigueiro era
um rapaz franzino, dotado de temperamento ácido e respondão, que
afinava com muita facilidade – e essas características, tornando-o num
alvo apetecido para partidas dos companheiros, levavam a que reagisse mal
a toda e qualquer brincadeira.
/ 152 /
O insulto colectivo que estava
implícito na resposta dada ao Pita não podia ficar impune. Por isso,
durante o serão, fomos buscar a garrafa ao sítio onde a tinha escondido,
bebemos o espumante e enchemo-la de água. Rolhámo-Ia de novo, recolocámos
a cápsula e voltámos a pô-la no sítio. O Zé não deu por nada. No fim do
serão, pegou-lhe naturalmente e levou-a para casa.
Quando chegou ao Banco na manhã seguinte,
o Arturzito, que era ordenança, meteu-se com ele, no seu ar de puto
reguila: "Ó Sr. Trigueiro, disseram-me que ontem à noite o senhor levou
para casa uma garrafa de água?". "Cala-te miúdo, que te parto o focinho!"
– respondeu-lhe o Zé. Mas ficou de pedra no sapato. . . Ao almoço deve ter
verificado a garrafa, porque de tarde ninguém o aturava: "Se sei quem foi
o filho da puta que me roubou a garrafa, parto-lhe o focinho!" – clamava
aos quatro ventos. E nos dias seguintes continuou com um ar tão irado que
nem podíamos dirigir-lhe a palavra. Uma zanga tão ostensiva inspirou o
colega Hermano a passar-lhe outra rasteira: num dos serões seguintes, foi
ele que apareceu com uma garrafa de espumante escondida debaixo da
gabardina. Teve o cuidado de a arrumar de modo que o Zé visse onde estava.
Claro que era uma garrafa de água, preparada de propósito em casa. O Zé
pegou o isco e roubou-a. Na manhã seguinte, ao ouvir o Arturzito, ia
morrendo de colapso: "Ó Sr. Trigueiro, então levou outra garrafa de água?
Outra?!! !". Daí em diante é que ninguém o podia mesmo aturar!...
Por essa altura houve alterações
inesperadas na Agência e foi mudado o gerente. Poucos dias depois, o novo
gerente, Sr. Crispim, satisfazendo o pedido que a mulher lhe fez ao
pequeno-almoço, comprou um queijo e guardou-o num armário que havia em vão
de escada nas traseiras do seu gabinete. Ao vê-lo guardar o queijo, o
colega Manuel Pizarro lembrou-se I que o Zé não tinha vindo trabalhar na
véspera. Chamou-o de parte e segredou-lhe, em surdina, para que ninguém
ouvisse: "Ouve Zé, esteve cá ontem o Sr. Caeiro (era um cliente
importante, negociante de queijo) e deixou dois queijos, um para mim e
outro para ti. Como não estavas, guardei-to no armário do vão de escada,
detrás do gabinete do gerente".
É claro que, no final do dia de trabalho,
o Zé foi ao armário buscar o queijo. Levava-o debaixo do braço quando
passou pelo gabinete do gerente, a despedir-se. Ao ver o embrulho, mesmo
sem o reconhecer logo, o Sr. Crispim desconfiou que havia ali algo errado;
e perguntou:
– Ó Zé, que embrulho é esse?
/ 153 /
– É um queijo – respondeu.
– Queijo? Que queijo?
– Um queijo que me deram.
Foi como se uma campainha tivesse soado na
cabeça do Sr. Crispim, que de repente reconheceu o embrulho. Mas ainda
inquiriu:
– Deram-lho? E onde é que o foi buscar?
– Ali, àquele armário – disse o Zé.
– Alto! – exclamou o Sr. Crispim, esse
queijo é meu!
– Perdão. É meu! Deram-mo!
– Não é nada, é meu! Comprei-o!
E a discussão entrou num círculo vicioso,
para gozo da comunidade. O Sr. Crispim garantia que tinha comprado o
queijo; Zé Trigueiro, escaldado como estava com a história recente das
duas garrafas de espumante, não abria mão de que o queijo era seu, que lho
tinham dado. Claro que, estrategicamente, o Manuel Pizarro, única pessoa
que podia esclarecer tudo, tinha dado "ás de vila Diogo". E o Sr. Crispim,
para que a esposa pudesse ter o seu queijinho ao pequeno-almoço, não teve
remédio que não fosse levar o Zé à loja onde nessa manhã o tinha comprado,
para que o comerciante confirmasse a venda.
Não era só o tempo em que tudo ainda se
fazia à mão; era também tempo em que nos bancos só trabalhavam homens.
Dois ou três anos depois foi admitida a Lena, que, tanto quanto me lembro,
foi a primeira mulher a entrar como empregada numa agência de província
dum banco.
A Lena era uma mulher linda. Na verdura
dos seus vinte e dois ou vinte e três anos, com uma carinha de boneca de
porcelana, muito branca, muito fresca e apetitosa, tinha umas pernas
fabulosas. Usava mini-saia, uma novidade desse tempo, muito mini, como
Mary Quant, sua criadora, recomendava. Sendo jovem viúva de guerra, já com
dois filhos, vestia toda de negro. Então, o brutal contraste da brancura
daquelas coxas esplendorosas com o – curtíssimo! – negro da mini-saia, era
uma visão digna de fazer parar o trânsito em qualquer lado.
/ 154 /
Só o vê-la na rua, em tal preparo, já era
motivo de murmuração generalizada naquela cidadezinha de província;
imaginem o que não foi a sua entrada no banco: aquele balcão nunca tinha
visto tamanho corrupio de clientes, nem sonhava que viesse nalgum dia a
ver – os homens, em fila, inventavam perguntas a fazer sobre depósitos,
sobre empréstimos, sobre o que calhasse para poderem parar um pouco no
balcão, a mirá-la com olhos gulosos de cobiça. De tal modo que um velho
comerciante, cliente endinheirado e poderoso, quando lá chegou e viu
aquele panorama, olhou para ela e atirou do alto dos seus dois metros, com
aquele vozeirão habituado a dar ordens: "Ai coitadinha, uma pombinha no
meio de tantos galifões!..."
Não se enganava, porque de facto, mesmo no
interior da Agência, após a entrada da Lena nada ficou como dantes. Ela,
que não era estúpida, sabia bem medir o valor daquelas pernas, mas não só:
conhecia os homens e o fascínio que sobre eles exercia o seu olhar, o seu
sorriso, naquele lindo palminho de cara que Deus lhe dera, e, sobretudo,
que ao falar-lhes, naquela vozinha meiga que mais parecia um ciciar
erótico do que falar, os deixava completamente de rastos, por mais santo
ou frio que qualquer um pudesse ser! E não hesitava em usar tudo isso em
seu favor.
Então, dum momento para o outro, houve
coisas estranhas que começaram a acontecer naquele Banco. Por exemplo, o Nelito, um puto de dezasseis anitos travessos, que era ordenança e
preparava os livros de cheques requisitados pela clientela numa mesa
defronte da secretária da Lena, começou subitamente a deixar cair os
carimbos, os lápis, as borrachas para debaixo da mesa dela. Passava o
tempo a ter de se abaixar para os apanhar do chão. De tal modo que mesmo o
Gouveia, até aí tão arisco com ele, passou a abaixar-se também para ajudar
o miúdo.
Um outro colega, o Germano, era tão
habilidoso para as mecânicas e outros trabalhos manuais que fora ele que,
a pedido dos vizinhos, instalara todas as antenas de televisão lá no
prédio em que morava. Tinha um Fiat 600, em cujo motor, como é bom de ver,
não havia segredos para ele. Como a Lena comprou também um Fiat 600 em
segunda mão, mas não se entendia lá muito bem com o carro, que volta e
meia a deixava a pé, nada mais natural do que recorrer à ajuda do Germano
quando estava enrascada. O problema foi que, uma noite, a mulher do
Germano acordou com ele a revolver-se na cama, a arfar, murmurando
baixinho: "Ai Lena, Lena! Ó filha! Ó minha filha!...". Foi o bom e o
bonito: a senhora fez uma cena que nem queiram saber!...
/ 155 /
Mas problema ainda maior era o do
Teixeira, que se deixou apaixonar pela Lena. O Teixeira, meio solteirão,
ficou perdidamente apaixonado, a ponto de perder a noção do real e do
ridículo, de modo que o Nunes, aproveitando-se disso, passava o tempo a
martelar-lhe nos ouvidos: "Sabes Teixeira, aquela é mesmo a mulher que te
convém: é jovem, é bonita, tem carro, tem casa... Repara que nem filhos
precisas de lhe fazer, que ela também já tem...". Era a malta a gozar e o
Teixeira, auto-iludido, a sofrer. Até que um dia se apercebeu, finalmente,
que ela não lhe ligava nenhuma importância e andava de amores bem
adiantados com outro. Ficou como doido! Nem imaginam os disparates
verdadeiramente impensáveis que cometeu.
Mas não foi só ele, dentre os colegas, que
ficou apanhado. O gerente também. Era viúvo recente como ela, mas com mais
do dobro da idade. Começou a rondá-la, arranjou mesmo estratagemas para
que ficasse no Banco com ele para além da hora... Mas nada conseguiu.
Ficou furioso e, como não era bom de assoar, resolveu vingar-se. Um dia
chamou-a ao gabinete. Sem ousar referir-se à mini-saia, começou com
pezinhos de lã:
– Sabe D. Lena, a senhora é uma mulher
muito bonita...
– Muito obrigada, Sr. Gomes – interrompeu
ela.
– Não tem de quê – prosseguiu o Sr. Gomes.
Como ia dizendo, a senhora é uma mulher muito bonita e as pessoas não
estão habituadas a ver mulheres a trabalhar nos bancos. Já reparou
certamente na agitação que a sua presença provoca no balcão?
– Sim, tenho vindo a reparar num certo
movimento – disse ela. E armando-se em ingénua:
mas não sei se isso foi
sempre assim...
– Não, não foi sempre assim, é o resultado
da sua presença. E não é nada bom. Preocupa-me o andamento dos serviços,
que foi afectado: os colegas andam distraídos, não rendem, cometem
erros... Se ao menos a senhora arranjasse uma bata...
A Lena percebeu logo e não se desmanchou:
– Muito bem, Sr. Gomes, não há qualquer
problema: eu mando fazer uma bata.
/ 156 /
Passados dias, logo de manhã, à abertura
dos serviços, entrou no gabinete envergando uma elegantíssima bata preta.
– Pronto, Sr. Gomes, já tenho a bata.
– Muito bem – respondeu ele.
Mas ao levantar os olhos do documento que
estava a ler, ficou petrificado: a bata da Lena era um palmo mais curta
que a mini-saia. |