Amor e Vida no Portugal d'Antanho. O Senhor Abade, 1ª ed., Verdemilho, 2020, págs. 96-100


Actividades religiosas e profanas

Capítulo 38

Para combater o isolamento e propiciar saudável convívio entre as pessoas, o povo recorria a várias actividades, umas de teor religioso, outras de carácter profano. Padre António, claro, apoiava as de carácter religioso. Mas, como tinha espírito folgazão, não punha entraves às de teor profano e divertia-se com elas.

Além da festa em honra de S. João Baptista, que era organizada por uma Comissão que, cada ano, era nomeada para esse fim e da festa da Catequese, que o próprio senhor abade promovia, com corridas de sacos para os garotos, subida ao mastro para os rapazes, corridas de raparigas com cântaros cheios de água à cabeça e outras diversões semelhantes, havia anualmente duas actividades importantes de carácter religioso: o Cortejo de Pastorinhas e o Peditório para as Almas.

No Cortejo de Pastorinhas o povo participava em massa levando, em desfile mais ou menos etnográfico, as suas oferendas, que eram leiloadas no final, revertendo a verba apurada para as obras de conservação e reparação da igreja.

O Peditório para as Almas era feito na Quaresma por um grupo de rapazes que, à noitinha, iam cantar de porta em porta. O apuro era usado para acções em favor das almas do Purgatório, nomeadamente a celebração de missas de sufrágio e a organização de semanas de pregação.

Essas semanas de pregação eram uma coisa extraordinária, que o povo vivia com grande intensidade: o senhor abade arranjava um ou dois sacerdotes pregadores, que ficavam uma semana em Quinta do Frade e todos os dias, ao início da noite, faziam o seu sermão na igreja. A pregação ocorria normalmente em finais do Outono ou começos do Inverno, tempo em que as noites já eram suficientemente longas mas sem frio tão intenso que obrigasse as pessoas a ficarem à lareira. Como não havia TV nem rádio, nem sequer luz eléctrica, a igreja enchia-se duma forma extraordinária todas as noites para o sermão. Para além do seu carácter estritamente religioso, esse era porventura o mais importante acontecimento de cada ano também no plano social.

No campo dos divertimentos de teor profano, eram várias as actividades.

Havia um grupinho de pessoas, cujos elementos se iam sucessivamente renovando, que tinham começado a fazer teatro aí por volta de 1890, ensaiando e representando nas instalações da escola primária.

Com o decorrer do tempo, essa actividade, no início bastante ingénua e incipiente, foi-se desenvolvendo, atraindo cada vez mais jovens, rapazes e raparigas, de Quinta do Frade e outras aldeias vizinhas, a ponto de se constituir formalmente o Grupo Arte e Cultura, para os agregar, no âmbito da casa mãe que era o Clube Recreativo de Quinta do Frade.

Durante alguns anos esse grupo levou à cena espectáculos teatrais de toda a ordem, desde a representação de peças dramáticas e comédias, a revistas e actos de variedades, uma vez que o grupo integrava uma orquestra própria.

De modo quase incompreensível num meio social tão pobre, constituído essencialmente por agricultores e seus assalariados, foi uma actividade cultural de enorme impacto popular em Quinta do Frade e redondezas. Foi esse grande impacto que matou o grupo. A PIDE, polícia política do regime de Salazar, então muito activa na tentativa de controlar estreitamente todos os movimentos sociais, começou a olhar com desconfiança os elementos do grupo e a ameaçá-los. O medo da PIDE teve como consequência que o Clube Recreativo de Quinta do Frade fosse extinto em 1945.

Entretanto, para divertimento mais leve e generalizado de todos, pelo Entrudo faziam-se as cegadas. Os rapazes e raparigas formavam tunas que percorriam o lugar, tocando e cantando versos escritos de propósito para glosar os “podres” da terra ocorridos nesse ano. Ou seja, aproveitavam a época carnavalesca para “lavar a roupa suja” em público, como se costuma dizer.

Também se fazia a “serração da velha”, outra brincadeira da rapaziada nova. Pela “micarème”, ou seja, na noite da quarta-feira do meio da Quaresma, a malta ia com um serrote e uma lata – para fazer muito barulho – cantar à porta dos velhinhos e velhinhas versos de convite à reflexão, porque a morte poderia não andar longe. Os idosos com espírito jovial gostavam de ouvir isso, que interpretavam como sinal auspicioso de ainda por cá andarem, apesar da idade; pelo contrário os outros, os macambúzios, ficavam pior do que estragados e, sentindo que lhes estavam a chamar velhos, tomavam atitudes extremas que podiam tornar-se perigosas para os cantores – embora tal zanga de nada lhes valesse.

Num dado ano padre António, que achava graça a esse costume, resolveu ele próprio participar também. Formou-se o grupo: quatro rapazes e três raparigas, mais o senhor abade. Decidiram “serrar” a ti Maria da Fonte, que nesse ano ultrapassara os oitenta de idade, e o ti Zeca do Cancelo, que já ia nos setenta e muitos.

Entusiasmado com a ideia, foi o próprio padre António que escreveu os versos. Eram assim:

Ó Maria (ou Ó Zeca) olha a velhice
Que chegou sem dares por ela.
É mesmo uma chatice
Sendo a juventude tão bela.
A juventude não dura
Senão um breve momento.
Mas a velhice perdura,
É esse o grande tormento.
Pode vir a negra ceifeira,
Foice afiada de morte.
Não há jeito nem maneira
D’evitar tão triste sorte.
Dá graças de cá estares
Quando tantos já marcharam.
É motivo p’ra festejares
Co’ aqueles q’aqui cantaram.
Se trouxeres um chouriço
E vinho tinto ou bagaço,
Broa e azeitonas com isso
E faz-se aqui um festaço!

E lá foram. Padre António não cantava, porque a sua voz seria logo reconhecida. Fazia o acompanhamento “musical” – com um serrote e uma lata de tinta vazia.

À porta da ti Maria da Fonte tomaram o cuidado de cantar parados do lado contrário da rua. O que se mostrou providencial… porque a velhota, agreste e rezingona como era, os “brindou” com uma penicada de urina atirada da janela – que só não os atingiu por estarem longe.

Com o ti Zeca do Cancelo as coisas foram completamente diferentes. O velhote veio à janela e… quando viu o próprio senhor abade entre os cantores, quase que rebentava de orgulho e alegria. Sentiu-se tão lisonjeado que abriu a porta e foi logo buscar um chouriço ao fumeiro. Assou-se em aguardente. Acompanhado com broa e azeitonas, tudo
regado por um excelente tinto caseiro, fez-se uma festa de arromba, que deu brado e foi recordada por muitos anos em Quinta do Frade.

Havia outra tradição, profundamente enraizada no espírito popular, que fazia com que, na manhã do Sábado de Aleluia, o povo acorresse curioso ao cruzamento da igreja para ver quem era o “Judas” desse ano.

Entre a rapaziada, havia os especialistas de preparar os “Judas”. Era malta bem disposta e brincalhona, com espírito, capaz de interpretar os acontecimentos e escolher quem era o conterrâneo que, nesse ano, tivesse o ridículo mais notório, digno de ser publicamente gozado. Fazia-se então um boneco de palha, vestido de modo a ficar com aspecto o mais aproximado possível da pessoa a gozar e acrescentava-se-lhe algo – um letreiro, uns versos, o que fosse – que permitisse que toda a gente o identificasse inequivocamente. O boneco era pendurado de madrugada e passava o Sábado de Aleluia em exposição. Era queimado na manhã do Domingo de Páscoa, antes da missa.

Houve anos em que o “Judas” teve imensa piada e outros que nem por isso. Um dos que deu mais brado gozava com um jovem, que era agricultor e tocava flauta no grupo teatral, que a certa altura resolveu tirar a carta de condução. Naquele tempo o rapaz não podia sequer sonhar em ter automóvel. O boneco ostentava um cartaz com os versos seguintes:

Sou um músico de eleição,
Que agora está em alta.
Gosto da minha condição
E à noite, toco flauta.


Vivo tanto a condução,
Que trabalho até por dois.
Tirei carta de condução,
P’ra guiar... carros de bois!

Ninguém teve dúvidas de quem se tratava. Nem o próprio visado. Como era pessoa sorridente e bem disposta, achou imensa piada e divertiu-se com o caso. O “Judas” tornou-o famoso no meio local.

Já o mesmo não aconteceu noutra situação semelhante. Tinham começado as primeiras escaramuças entre as duas Coreias, cuja fronteira é delimitada pelo paralelo 38. Havia em Quinta do Frade um lavrador de meia-idade, pessoa um tanto bisonha, que o povo, não se sabe por que carga d’água, talvez por ser baixo e atarracado, alcunhou de paralelo 38. O homem afinou com a alcunha – e de que maneira! Nesse ano, uns brincalhões seus vizinhos fizeram um boneco grosso e atarracado como ele, ataram-lhe ao rabo um paralelepípedo, em que escreveram o número 38, e penduraram-lho à porta de casa. Foi o fim da macacada! O homem zangou-se a sério, desconfiou de quem tivesse sido e, acompanhado dos filhos, invadiu a casa dos vizinhos para lhes dar uma sova. Foi pancadaria d’água à jarra! Teve de intervir uma patrulha da GNR para serenar os ânimos. E o assunto acabou a arrastar-se por largos anos nos tribunais.
 

 
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