Este, para ser quem foi e é, não precisava de ser pai de filho nem avô
de netas, mas não lhe fica mal "baboso" da sua condição de artífice-ovo
de tais olarias.
Já desde lá de trás, dos idos de 30, ele esvoaçava em talentos que pouco
ou nada tinham a ver com pratos de balança, com venda de olhos ou
espadas de justiça.
Deixou vincados em muitos recantos da vida académica, sinais do seu
gosto pela música e pelo teatro e, sendo embora um mero compositor de
assobio, dava a outros, em simples fato macaco, as colcheias, fusas e
semi-fusas que eles depois engalanavam com casacas ou, pelo menos,
"smokings" de circunstância.
Durante muito tempo dedicou-se a tarefas na Ordem dos Advogados, nossa
Associação de classe, a elas dando o melhor de um esforço revelador de
solidariedade sempre de desejar como semente capaz de dar início à
seara, mesmo à floresta.
Estou a vê-lo, cerca de 1932 quando, no velho mas ao tempo luxuoso"
Arcádia", das actuais Portas de Santo Antão e então Rua Eugénio dos
Santos, saudava em nome do curso do 2º ano de Direito, o
Martinho Nobre
de Melo que para o Brasil ia partir como Embaixador de Portugal.
Seria um Ministro de Salazar e, por isso, essa despretensiosa homenagem
e despedida, causou certos engulhos à malta da Oposição.
/ 56 / Não deixei de ir e ainda hoje, ao recordá-lo, não me arrependo de o
ter feito já que o Martinho Nobre de Melo com todo o seu travejamento
ideológico de direita, não deixava de ser um Professor que tratava os
alunos como gente capaz de sentimentos e atitudes de que poderia
discordar mas sempre respeitava. Aquele intervalo entre a aula teórica e
a prática, lá em cima, no "Odéon", que o Martinho
aproveitava, e nós também, para troca de impressões que pouco ou nada
tinham a ver com o Direito Administrativo, que era a sua cadeira, é
momento para recordar e por demais justificativo da razão da minha ida à
despedida no Arcádia.
O Vitorino de Almeida, jovem como era e com aquela sua voz clara,
invocava tão só e como qualidade e defeito, o nº 22, que era o seu, na
pauta, lembrando ao Mestre que ele era um dos muitos que com aquela
etiqueta o Mestre já tivera.
Foi um sucesso académico e não só o discurso do Vitorino de Almeida e,
apesar de ser sincero, não deixava de ser uma prova exuberante do seu
pendor para as coisas do teatro...
Tinha o seu feitio, o António, e era, sobretudo, alérgico a Juízes,
qualidade ou defeito que ainda hoje arvora como estandarte de
irreverência. Considerava-os "bichos" nem sempre ferozes mas quase
sempre perigosos, principalmente quando os alamares das becas do ofício,
lhes turvam o entendimento e lhes fornecem o veneno da convicção de que,
depois deles e como dizia a Pompadour a Luís XV, o dilúvio.
A sua propensão para as coisas que, de perto ou de longe se relacionavam
com o Teatro ou com a Música, vieram a reflectir-se, já estruturadas por
técnicas adequadas: no Filho, o compositor e maestro do mesmo nome a
quem deu, desde muito novito, através de Mestres categorizados, os
ensinamentos preliminares e complementares sempre necessários à segurança dos voos de quem tenha
nascido com o destino de voar e a que não era estranha a influência
artística da Senhora Sua Mãe, nascida à sombra das Majestades
/ 57 / do Pico e da Caldeira, naqueles Açores que deram
Francisco de
Lacerda,
Nemésio e outros sóis do pensamento e da Arte; e nas Netas
Maria, Inês e Ana, três "biscuits" de tamanho mas ciclopes de valor que
no Teatro, no Cinema e na Música seguem bem a rota do pai e dos avós,
tendo à avó materna ido buscar o Medeiros, bem característico das gentes
açóricas, tal como o "Goulart" que de direito também poderiam usar, com
raízes na "Bagatela", morada solarenga em permanente contemplação das
maravilhas da baía da Horta a tentar abraçar o Pico com os braços da
Espalamaca e do Monte da Guia.
Mas esta genealogia ao contrário em nada desvaloriza, bem ao invés,
aquele rapazito esguio e com seus tiques de pretensioso que eu conheci
em 1930 e fui acompanhando na amizade mútua e que contrasta com aquele
quase rotundo "burguês" com casa na Linha e
"sedia" pontifícia na Rua do Crucifixo, ali bem perto do velho Vaticano
da Boa-Hora, Catedral de juristas de várias cores mas que ainda bem
conheci, como o
Barbosa de Magalhães, o
Tito Arantes, o
Ramada Curto, o
Zé Godinho, o
Abranches Ferrão, o
Dias Ferreira, o
Pinto Gonçalves e
tantos, tantos outros que punham em continência os "senhores da Beca"
nem sempre dispostos a fazer o que entendíamos melhor convir aos nossos
clientes.
Agora ainda lá vem, um bocadinho, à tarde, para a soneca, depois de
alinhar no repasto simples da Palmeira, do Cadete ou do Solar Boémio ou,
em dias mais ou menos comemorativos, no Pereira da Alfama lisboeta,
ajudando a formar o colar da mesa, sempre redonda apesar de quadrada,
com o
Artur Cunha Leal, o
Ricardo Leite Pinto e, às vezes, a
Margarida
Dias Ferreira, a
Graça Santos e até a Nazaré. Eu próprio, sempre que
desço de Aveiro, lá vou mergulhar naquelas águas pejadas de bom bacalhau
jurídico e a que nunca falta o piri-piri de certa má-língua política,
extraída, sem demasiadas atenções de assépsia, das loucas vacas das
sucessivas governações.
E sabe bem, naquela sarrabulhada de idades e... talentos, usar
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como sobremesa, a simpatia e a certeza de que a toga a todos iguala sem
pregas de favor. |