Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 55 a 58.

António Vitorino de Almeida

Este, para ser quem foi e é, não precisava de ser pai de filho nem avô de netas, mas não lhe fica mal "baboso" da sua condição de artífice-ovo de tais olarias.

Já desde lá de trás, dos idos de 30, ele esvoaçava em talentos que pouco ou nada tinham a ver com pratos de balança, com venda de olhos ou espadas de justiça.

Deixou vincados em muitos recantos da vida académica, sinais do seu gosto pela música e pelo teatro e, sendo embora um mero compositor de assobio, dava a outros, em simples fato macaco, as colcheias, fusas e semi-fusas que eles depois engalanavam com casacas ou, pelo menos, "smokings" de circunstância.

Durante muito tempo dedicou-se a tarefas na Ordem dos Advogados, nossa Associação de classe, a elas dando o melhor de um esforço revelador de solidariedade sempre de desejar como semente capaz de dar início à seara, mesmo à floresta.

Estou a vê-lo, cerca de 1932 quando, no velho mas ao tempo luxuoso" Arcádia", das actuais Portas de Santo Antão e então Rua Eugénio dos Santos, saudava em nome do curso do 2º ano de Direito, o Martinho Nobre de Melo que para o Brasil ia partir como Embaixador de Portugal.

Seria um Ministro de Salazar e, por isso, essa despretensiosa homenagem e despedida, causou certos engulhos à malta da Oposição. / 56 / Não deixei de ir e ainda hoje, ao recordá-lo, não me arrependo de o ter feito já que o Martinho Nobre de Melo com todo o seu travejamento ideológico de direita, não deixava de ser um Professor que tratava os alunos como gente capaz de sentimentos e atitudes de que poderia discordar mas sempre respeitava. Aquele intervalo entre a aula teórica e a prática, lá em cima, no "Odéon", que o Martinho aproveitava, e nós também, para troca de impressões que pouco ou nada tinham a ver com o Direito Administrativo, que era a sua cadeira, é momento para recordar e por demais justificativo da razão da minha ida à despedida no Arcádia.

O Vitorino de Almeida, jovem como era e com aquela sua voz clara, invocava tão só e como qualidade e defeito, o nº 22, que era o seu, na pauta, lembrando ao Mestre que ele era um dos muitos que com aquela etiqueta o Mestre já tivera.

Foi um sucesso académico e não só o discurso do Vitorino de Almeida e, apesar de ser sincero, não deixava de ser uma prova exuberante do seu pendor para as coisas do teatro...

Tinha o seu feitio, o António, e era, sobretudo, alérgico a Juízes, qualidade ou defeito que ainda hoje arvora como estandarte de irreverência. Considerava-os "bichos" nem sempre ferozes mas quase sempre perigosos, principalmente quando os alamares das becas do ofício, lhes turvam o entendimento e lhes fornecem o veneno da convicção de que, depois deles e como dizia a Pompadour a Luís XV, o dilúvio.

A sua propensão para as coisas que, de perto ou de longe se relacionavam com o Teatro ou com a Música, vieram a reflectir-se, já estruturadas por técnicas adequadas: no Filho, o compositor e maestro do mesmo nome a quem deu, desde muito novito, através de Mestres categorizados, os ensinamentos preliminares e complementares sempre necessários à segurança dos voos de quem tenha nascido com o destino de voar e a que não era estranha a influência artística da Senhora Sua Mãe, nascida à sombra das Majestades / 57 / do Pico e da Caldeira, naqueles Açores que deram Francisco de Lacerda, Nemésio e outros sóis do pensamento e da Arte; e nas Netas Maria, Inês e Ana, três "biscuits" de tamanho mas ciclopes de valor que no Teatro, no Cinema e na Música seguem bem a rota do pai e dos avós, tendo à avó materna ido buscar o Medeiros, bem característico das gentes açóricas, tal como o "Goulart" que de direito também poderiam usar, com raízes na "Bagatela", morada solarenga em permanente contemplação das maravilhas da baía da Horta a tentar abraçar o Pico com os braços da Espalamaca e do Monte da Guia.

Mas esta genealogia ao contrário em nada desvaloriza, bem ao invés, aquele rapazito esguio e com seus tiques de pretensioso que eu conheci em 1930 e fui acompanhando na amizade mútua e que contrasta com aquele quase rotundo "burguês" com casa na Linha e "sedia" pontifícia na Rua do Crucifixo, ali bem perto do velho Vaticano da Boa-Hora, Catedral de juristas de várias cores mas que ainda bem conheci, como o Barbosa de Magalhães, o Tito Arantes, o Ramada Curto, o Zé Godinho, o Abranches Ferrão, o Dias Ferreira, o Pinto Gonçalves e tantos, tantos outros que punham em continência os "senhores da Beca" nem sempre dispostos a fazer o que entendíamos melhor convir aos nossos clientes.

Agora ainda lá vem, um bocadinho, à tarde, para a soneca, depois de alinhar no repasto simples da Palmeira, do Cadete ou do Solar Boémio ou, em dias mais ou menos comemorativos, no Pereira da Alfama lisboeta, ajudando a formar o colar da mesa, sempre redonda apesar de quadrada, com o Artur Cunha Leal, o Ricardo Leite Pinto e, às vezes, a Margarida Dias Ferreira, a Graça Santos e até a Nazaré. Eu próprio, sempre que desço de Aveiro, lá vou mergulhar naquelas águas pejadas de bom bacalhau jurídico e a que nunca falta o piri-piri de certa má-língua política, extraída, sem demasiadas atenções de assépsia, das loucas vacas das sucessivas governações.

E sabe bem, naquela sarrabulhada de idades e... talentos, usar / 58 / como sobremesa, a simpatia e a certeza de que a toga a todos iguala sem pregas de favor.

 

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