«Contar e Cardar» é formado por um conjunto de
cinco peças de teatro, escritas expressamente para o CETA por Mário
Castrim, encenadas por Jorge Pinto e apresentadas ao público aveirense em
Junho de 1990.
O conjunto que aqui reproduzimos foi obtido a
partir de um exemplar dactilografado e devidamente corrigido e completado
com as didascálias indispensáveis para uma melhor leitura com a
imaginação, a única capaz de permitir ao leitor recriar aquilo que
poderia ser observado em directo, durante a representação. Foi depois
reconvertido para o formato HTML (HiperText Markup Language), o que
equivale a dizer que ficou transformado num hipertexto, acessível a
qualquer leitor e em qualquer parte do planeta através da Internet,
graças às facilidades concedidas por um projecto educativo actualmente
em vigor em Portugal, designado por Prof2000.
Já inserido num servidor, foi impresso e dado a ler
a Mário Castrim, o autor das cinco peças de teatro, que lhe introduziu
algumas alterações.
Trata-se, pois, de um conjunto que passou por um
processo evolutivo, desde a altura da sua escrita e representação pelo
CETA, em 1990, até ao momento da sua apresentação em livro,
infelizmente sem que o autor, Mário Castrim, pudesse estar entre nós. A apresentação
do livro efectuou-se em 8 de Fevereiro de 2003, com a presença da
escritora Alice Vieira, esposa e viúva do autor.
O conjunto que constitui «Contar e Cardar» é
formado por cinco peças interessantes, com uma subtil
ironia crítica, que reflectem situações quiçá sempre actuais na
região aveirense e em tantas outras que, como esta, padecem dos mesmos
males sociais.
A primeira peça é o «Monólogo sobre o asfalto».
Um homem, um cidadão-tipo, esgaravata o chão à procura da chave do
automóvel, à medida que vai desabafando e revelando os problemas da vida
moderna: a necessidade do carro para os passeios dos fins de semana, a sua
exploração pela mulher e pelos filhos, tornando-se o burro de carga de
toda a família, os problemas decorrentes da posse do automóvel, em suma,
as situações vividas pelo homem moderno que, não conseguindo já passar
sem as quatro rodas, acaba por ter de aguentar os problemas que elas lhe
acarretam.
Mãe Ria é uma peça em quatro cenas, que nos evoca
os problemas da Ria de Aveiro, cujos elementos emblemáticos correm o
risco de desaparecer definitivamente dos costumes aveirenses: as salinas,
os moliceiros e os palheiros.
A peça seguinte retoma a história do Capuchinho
Vermelho, recontada pela Avó. Ao contrário do original, o Caçador sai
frustrado, na medida em que a menina emparceira com o Lobo Mau. E não só
se mete na cama com ele, como ainda o vem defender do caçador, para
desgosto da Avó, que fica com a história estragada. Para cúmulo, o Lobo
não se contenta com a miúda. A peça acaba com ele a afiar a dentuça e
a regozijar-se com «a rica velhota, a quem vai chamar um figo».
Na quarta peça do conjunto que constitui «Contar e
Cardar», é evocada a figura do arrais Ançã, o rei que usava barrete.
Dois miúdos do liceu, a Clara e o João, encontram-no e com ele
estabelecem diálogo. Descobrem que aquele «velhote é um grande
filósofo» e por isso aproveitam-no para uma entrevista, concretizando o
trabalho de casa que traziam como alunos da área de Jornalismo. E da
conversa com o arrais Ançã não apenas é evocada a sua vida, como
outros nomes votados ao esquecimento são recordados.
«Auto dos moliceiros» é a última peça deste
conjunto. Evoca-nos imediatamente a mestria de Gil Vicente e a sua
trilogia das Barcas, mais concretamente o «Auto da Barca do Inferno», o
único em que todas as figuras, à excepção de uma, são condenadas, se
não considerarmos a personagem colectiva dos quatro cavaleiros, cuja
chegada é aguardada pelo Anjo. E, neste aspecto, Mário Castrim captou o
espírito vicentino, que moldou perfeitamente à peça que escreveu, cujo
título nos evoca imediatamente um elemento que foi, outrora, um dos
emblemas mais caracterizadores da «Ria de Aveiro» — o barco moliceiro.
A semelhança com a primeira peça da trilogia
vicentina é flagrante, tanto mais que apenas uma personagem se salva,
muito embora em nada esta se assemelhe à figura do Parvo, excepto pelo
facto de não apresentar qualquer culpa que abone em favor do Diabo.
No «Auto dos moliceiros», encontramos, tal como na
alegoria do século XVI, os dois juizes das almas de mestre Gil, o Diabo e
o Anjo Cagaréu, cada qual com o seu moliceiro, para levar as almas para a
morada que construíram em vida.
Apresentados os dois juizes (cena 1), em
cujas palavras encontramos as primeiras referências críticas à
realidade aveirense da década de 1990, começa o desfile das almas, todas
elas de acordo com as habituais moléstias sociais.
Nas quatro cenas seguintes, entram os primeiros
condenados.
O Construtor (cena 2) é o primeiro acusado.
É uma personagem sem escrúpulos. Não hesita minimamente em delapidar o
património arquitectónico da região. As casas das figuras ilustres são
abatidas como árvores carunchosas, para no seu lugar se erguerem
mamarrachos de cimento. Até o farol da Barra converteria em apartamentos,
se tal lhe fosse permitido.
O Corrupto (cena 3), outrora um famélico
Palito de bolsos vazios, entra agora com eles cheios de notas. Foi uma
figura que enriqueceu à custa de subsídios fraudulentos, para empresas
que só existiam no papel, candidatando-se ao Fundo Social Europeu para
desenvolver a indústria do sal.
D. Francisca (cena 4) não é bem a Brízida
Vaz de mestre Gil, mas não lhe anda certamente distante. É senhora de um
nome mais comprido que os comboios amarelos da cidade, com
Valadares com dois eles e Estearina com h depois do t, e não só, porque
também de Lencastre e Alcabideche. Nome de tal modo longo que o Diabo o
reduz a FIVELA, sigla com a qual ela reage mal, só não mandando o
interlocutor para o Diabo porque já o é. Mas nem por isso deixa de o
insultar, dizendo que Fivela era a tia dele. Senhora de posses mas não de
virtudes, batia nos servos, difamava as amigas e desprezava os humildes.
Muda de comportamento após o 25 de Abril, mas de nada lhe vale, porque
rezas e bater no peito não chegam para alcançar o céu.
O Industrial (cena 5) é aquele que, em nome
do progresso, vai contribuindo sem escrúpulos para a degradação das
condições ambientais, apenas pensando em encher os bolsos, sem
preocupações com as consequências da sua actividade.
A sequência de almas condenadas é interrompida
pela entrada em cena (cena 6) de João Sarabando. É uma figura
que, segundo o Anjo, todos bem conhecem e bem querem. Em vão o Diabo
tenta acusá-lo. João Sarabando caracteriza-se por ter amado a terra em
que nasceu e sempre viveu e só nela ter pensado, recusando ofertas
aliciantes de grandeza e de lugares longe da terra. Por isso, segundo o
Diabo, foi um parvalhão, por não ter sabido como os restantes
governar-se. Em vão procura o Diabo levá-lo! Não só João Sarabando o
esconjura, como vem o Anjo em sua defesa e o toma pela mão, para o
conduzir ao moliceiro do Paraíso.
Na cena seguinte, entra o último condenado, a
figura de Patuá (cena 7), cuja excelência e «patois» de nada
lhe valem. Em vida foi um político de muitas promessas e nenhuma acção.
A acção termina com a entrada em cena (cena 8)
de Mestre Gil Vicente, por acção do Anjo que ao Céu o foi buscar, para
louvar as gentes do teatro, não só pela sua muita devoção, mas também
pelo muito frio que rapam durante os ensaios, para gáudio de todos
quantos puderam assistir à representação.
O «Auto dos moliceiros» acaba, em conformidade com
aquele que lhe serviu de modelo, com uma cantiga não a quatro vozes, como
sucede com a chegada dos Fidalgos que morreram nas partes de África,
pelejando por Cristo, mas por aqueles que ali se encontram.
Para um melhor conhecimento daquilo que aqui
brevemente registámos, não há como ler e saborear as cinco pequenas
peças de teatro que constituem «Contar e Cardar».