JOÃO SARABANDO, O teatro em Aveiro e Luís Gomes de Carvalho - CETA

Luís Gomes de Carvalho,

o Engenheiro da Barra de Oiro


Vem de longe o gosto, o fervor dos aveirenses pela arte cénica. Em 8 de Março de 1881, três dias depois de inaugurar o “Aveirense”, a companhia do Teatro de D. Maria lI despediu-se do público. Do que foi semelhante e inesquecível jornada dá fé o citadino “Campeão das Províncias”, periódico cotado à própria escala nacional. Da seguinte maneira: «Nesta récita, o entusiasmo tocou as raias do delírio. No último acto da
Estrangeira (de Dumas filho), a ovação atingiu as proporções de um sucesso, porque nunca nesta terra se fez manifestação mais importante. Atiraram-se para o palco flores em profusão extraordinária. As senhoras, dos camarotes e frisas, agitavam lenços, significando os seus aplausos. As plateias, de pé, saudavam os actores num estrondear incessante de palmas.» E ainda: «Recitaram poesias alusivas ao acto o Sr. Dr. Joaquim de Melo Freitas e o actor Augusto Rosa. Esta última do nosso malogrado colega Fernando de Vilhena.» A concluir, a singularidade, o insólito: «No fim do espectáculo, à saída, os actores (Virgínia, Rosa Damasce­no, Brasão, Augusto Rosa, João Rosa, Joaquim Almeida...) eram esperados à porta do Teatro por muitos cavalheiros desta terra, que os acompanharam ao hotel numa verdadeira marche aux flambeaux, levantando vivas a todos eles com verdadeiro entusiasmo.»

Não se deduza, no entanto, que o bem-querer dos aveirenses pelo teatro dimanou da construção da excelente casa de espectáculos. Ao invés, a casa de espectáculos resultou, isso sim, do clima de vero entusiasmo que rodeava, não apenas no burgo mas em todo o concelho, as representações. Com efeito, três avantajadas décadas antes (1848), já surgira em Aveiro o primeiro teatro, o primeiro teatrinho que em Aveiro tiveram os artistas, os operários. Funcionaria, averiguadamente, até Maio de 1853. Posteriormente, existiram na cidade mais alguns pequenos teatros, teatros de bolso como agora se diz - o de S. João Baptista, à rua do Rato, e o de José Estêvão, na rua do Carril.

Paralelamente, os entremezes, tanto no burgo como nas aldeias, atraíam pequenas multidões. Decorressem na Granja ou na Taipa, na Olivei­rinha ou em Sarrazola, em Verdemilho ou em Vilar, quando não no cerne da cidade - pelo S. Gonçalinho, pelo S. Sebastião, em Sá, pela Senhora das Febres. De resto, simples exemplos estes que damos, já que os entremezes eram quase tão numerosos como os estrelados arraiais.

Lamentável seria, neste passo do (...) passado, não referir as colecti­vidades aveirenses que mais se distinguiram no sector teatral. Mas, salvo lapso de monta, o Clube dos Galitos, que apresentou, ao longo dos anos, magníficos agrupamentos cénicos, festejados em muitas cidades, inclusivamente na de Lisboa (o Coliseu dos Recreios transbordou de espectadores) e os já extintos Ginásio Aveirense e Associação Dramática.

Denotando qualidades e, tanta vez, inegável talento, os amadores aveirenses de bastas gerações deram vida, banhados pela luz da ribalta, a zarzuelas, operetas, comédias, dramas, revistas... Actores e autores de incontestável merecimento também ensaiaram os primeiros passos na cidade ou seus aros - e, aqui, estamos a lembrar-nos de Isaura Ferreira (estreia em Lisboa, 1886) e de Fernando José de Queiroz, tio-avô de Eça de Queiroz, o romancista que, não obstante haver nascido na Póvoa de Varzim, se confes­sava, aliás com inteira razão, «filho de Aveiro». Filho de Aveiro, «educado na Costa Nova» e, acrescente-se, ali em Verdemilho.

Fernando Queiroz, sobre ser actor de nomeada - nomeada ganhou em Lisboa, porque Lisboa era o seu palco - redigiria quarenta e oito peças de vários géneros, uma das quais, pelo menos, correu impressa. Ao fluir dos tempos, outros comediógrafos, outros dramaturgos foram aparecendo em cena: Joa­quim da Costa Cascais, Resende Júnior, Rangel de Quadros, Cunha e Costa, Renato Franco, Fernando e Firmino de Vilhena. Por exemplo, estes, caberá acrescentar, na certeza de que as omissões constituem inevitabilidade em linhas traçadas à pressa, contra o tempo.

Como o teatro, passe o lugar comum, é cultura e é arte, espelha a vida do passado, do presente e do porvir que amanhece ainda, o teatro, dizíamos, vai conquistando novos paladinos, novos prosélitos. Não morre, tem foros de eterno. De tal jeito, o CETA aí está, frágil mas vibrátil, remando e vencendo ondas e marolas.

Na sequência de uma enfiada de iniciativas, leva agora à cena “A Gesta da Ria”, da lavra de Jaime Gralheiro, dramaturgo consagrado, que todo o país, que não apenas o país aveirense, conhece e admira. Para quê, portanto, girândolas de adjectivos?

Obra de forte intensidade dramática, que, a ser editada, preencherá uma evidente lacuna na bibliografia aveirense, traduz a insana luta travada em redor dos fundamentais trabalhos ou seja, entre a maré viva e o pântano, o progresso e a letargia, o futuro duma cidade e suas zonas de possível influência e o imperante, estiolante marasmo.

Notabilíssimo engenheiro, rijo caracter, homem de antes quebrar que torcer, acabou por sucumbir às criminosas insídias, às vis calúnias dos inimigos. Simplesmente, “Ave Aveiro!”, quando o essencial das projectadas obras estava cumprido, a barra, que equivalia a montanhas de oiro, já se encontrava praticável a muita navegação.

Vilipendiado, escarnecido, humilhado, o vulto de Luís Gomes ascende, no trabalho de Jaime Gralheiro, a um trono de glória. Mil vezes merecidamente, saibam quantos...

João Sarabando

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