«NASCI SOB A ALTA E
PODEROSA PROTECÇÃO DA
SENHORA DA GUARDA, MINHA
MADRINHA, E DA
SENHORA DA GLÓRIA, PADROEIRA
DA MINHA FREGUESIA»
Isto vai ser uma narração
singela, sem atavios de oratória nem arrebatamentos de temperamento,
como é próprio do assunto.
Nasci em Aveiro, a 8 de
Março de 1860. De um livro de notas de meu pai, escritas por ele, consta
o seguinte:
«Em quinta-feira 8 de Março
de 1860, n'estas casas da Rua de S. Martinho N.º 2, pelas 7 1/2 horas da
tarde, nasceu meu filho Francisco, e foi baptizado em 18 de Março, pelas
12 horas do dia, na Parochial de N.ª S.ª da Glória pelo coadjutor... (o
nome ficou em branco).
Foram padrinhos seu irmão
Manuel Homem de Carvalho e Christo, e N. S.ª da Guarda, pela qual tocou
Rosa Emília de Jesus Christo, irmã do recém-nascido.»
Vim ao mundo com bom amparo,
o de Nossa Senhora da Glória e o de Nossa Senhora da Guarda, e de muito
me tem servido, sobretudo o de Nossa Senhora da Guarda, pois tenho
corrido tantos perigos que sem a protecção da minha poderosa madrinha já
haveria sucumbido.
Meu pai era muito religioso,
mas sem beatério. Ia à missa aos domingos e confessava-se uma vez por
ano. Nem sal de mais nem sal de menos, como recomendava o bispo de
Viseu. As beatas e os beatos eram muito poucos, por esse tempo, na minha
freguesia. (...)
Como o dia 8 de Março é o
dia de S. João de Deus, meu pai tinha resolvido pôr-me o nome de João de
Deus. Nessa altura, porém, foi aberto o túmulo de S. Francisco de
Xavier, na índia, o que deu lugar a novos milagres do santo, relatados
pelas gazetas. Meu pai, vencido pelo milagre, mudou de resolução, e
pôs-me o nome de Francisco. Era o que me comentava a minha mãe. Creio,
porém, que o motivo seria outro. Meu pai, que era inteligente e pairava
acima das sugestões do beatério, viu que eu ficaria exposto aos risos do
mundo chamando-me João de Deus Homem Christo. Pai, Filho e Espírito
Santo ao mesmo tempo. E tão velho o Pai, como o Filho, como o Espírito
Santo. Eu sucumbiria ao peso de tanta divindade. E, então, resolveu
pôr-me o nome de Francisco, simplesmente, e não o de Francisco Xavier,
como seria lógico, se o motivo da mudança fosse o que indicava a minha
mãe.
Assim apareci no mundo.
Árvore genealógica não tenho. A gente do povo não tem árvore
genealógica.
Basílio Teles dizia-me às
vezes: «Christo, você é romano. Os romanos andaram lá pelas suas terras.
Você é romano.»
Por atavismo, é possível.
Meu pai e minha mãe eram de Aveiro, onde foram nascidos e criados. Ela,
filha de José Francisco Carvalho e de Angélica Luísa Vieira, também de
Aveiro; ele, filho de Manuel Marques de Christo, de Macinhata do Vouga,
e de Maria Rita da Conceição. de Ílhavo.
Meu pai era neto de Caetano
Marques de Almeida, natural da Lombada, e de Josefa Maria da Conceição,
natural de Serém, freguesia de S. Cristóvão de Macinhata do Vouga,
bisneto, pelo lado do avô, de Manuel Marques e de Maria Nunes, naturais
e moradores na dita Lombada; pelo lado da avó, de Francisco José
Henriques, natural de Fermentões, freguesia de Valongo, e de Maria da
Conceição, natural de Serém, onde eram moradores.
Tenho sangue de toda esta
região e em toda ela houve romanos. Ao longo do Vouga houve, e algumas
notáveis, povoações romanas.
Mas Basílio Teles chamava-me
romano pela minha virilidade, por eu não ser fútil e froixo como quase
todos os homens da sua e minha geração.
Homem Christo
(Notas da minha vida e do
meu tempo, VoI. " pág. 7-10)
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