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Boletim n.º 20-21 - Ano XI - 1993

«NASCI SOB A ALTA E PODEROSA PROTECÇÃO DA

SENHORA DA GUARDA, MINHA MADRINHA, E DA

SENHORA DA GLÓRIA, PADROEIRA DA MINHA FREGUESIA»

 

Isto vai ser uma narração singela, sem atavios de oratória nem arrebatamentos de temperamento, como é próprio do assunto.

Nasci em Aveiro, a 8 de Março de 1860. De um livro de notas de meu pai, escritas por ele, consta o seguinte:

«Em quinta-feira 8 de Março de 1860, n'estas casas da Rua de S. Martinho N.º 2, pelas 7 1/2 horas da tarde, nasceu meu filho Francisco, e foi baptizado em 18 de Março, pelas 12 horas do dia, na Parochial de N.ª S.ª da Glória pelo coadjutor... (o nome ficou em branco).

Foram padrinhos seu irmão Manuel Homem de Carvalho e Christo, e N. S.ª da Guarda, pela qual tocou Rosa Emília de Jesus Christo, irmã do recém-nascido.»

Vim ao mundo com bom amparo, o de Nossa Senhora da Glória e o de Nossa Senhora da Guarda, e de muito me tem servido, sobretudo o de Nossa Senhora da Guarda, pois tenho corrido tantos perigos que sem a protecção da minha poderosa madrinha já haveria sucumbido.

Meu pai era muito religioso, mas sem beatério. Ia à missa aos domingos e confessava-se uma vez por ano. Nem sal de mais nem sal de menos, como recomendava o bispo de Viseu. As beatas e os beatos eram muito poucos, por esse tempo, na minha freguesia. (...)

Como o dia 8 de Março é o dia de S. João de Deus, meu pai tinha resolvido pôr-me o nome de João de Deus. Nessa altura, porém, foi aberto o túmulo de S. Francisco de Xavier, na índia, o que deu lugar a novos milagres do santo, relatados pelas gazetas. Meu pai, vencido pelo milagre, mudou de resolução, e pôs-me o nome de Francisco. Era o que me comentava a minha mãe. Creio, porém, que o motivo seria outro. Meu pai, que era inteligente e pairava acima das sugestões do beatério, viu que eu ficaria exposto aos risos do mundo chamando-me João de Deus Homem Christo. Pai, Filho e Espírito Santo ao mesmo tempo. E tão velho o Pai, como o Filho, como o Espírito Santo. Eu sucumbiria ao peso de tanta divindade. E, então, resolveu pôr-me o nome de Francisco, simplesmente, e não o de Francisco Xavier, como seria lógico, se o motivo da mudança fosse o que indicava a minha mãe.

Assim apareci no mundo. Árvore genealógica não tenho. A gente do povo não tem árvore genealógica.

Basílio Teles dizia-me às vezes: «Christo, você é romano. Os romanos andaram lá pelas suas terras. Você é romano.»

Por atavismo, é possível. Meu pai e minha mãe eram de Aveiro, onde foram nascidos e criados. Ela, filha de José Francisco Carvalho e de Angélica Luísa Vieira, também de Aveiro; ele, filho de Manuel Marques de Christo, de Macinhata do Vouga, e de Maria Rita da Conceição. de Ílhavo.

Meu pai era neto de Caetano Marques de Almeida, natural da Lombada, e de Josefa Maria da Conceição, natural de Serém, freguesia de S. Cristóvão de Macinhata do Vouga, bisneto, pelo lado do avô, de Manuel Marques e de Maria Nunes, naturais e moradores na dita Lombada; pelo lado da avó, de Francisco José Henriques, natural de Fermentões, freguesia de Valongo, e de Maria da Conceição, natural de Serém, onde eram moradores.

Tenho sangue de toda esta região e em toda ela houve romanos. Ao longo do Vouga houve, e algumas notáveis, povoações romanas.

Mas Basílio Teles chamava-me romano pela minha virilidade, por eu não ser fútil e froixo como quase todos os homens da sua e minha geração.

Homem Christo

(Notas da minha vida e do meu tempo, VoI. " pág. 7-10)
 

 

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