Efectivamente, viveu em
tempo de D. Afonso III, no século XIII, D. Pedro Pires Ferreira, a quem
vulgarmente apelidaram Pedro Pires Homem, que foi senhor, entre outras
terras, das da Lajeosa e da Gestosa; um seu descendente, Pedro Homem,
"foi criado do Infante Regente, filho de el-Rei D. João I, e morreu no
mar em uma batalha que deu no serviço de el-Rei e do Infante, no ano de
1446, e jaz sepultado na igreja da Graça, em Lisboa". Neto deste foi Gil
Homem da Costa, o Velho, que exerceu o cargo de provedor dos metais do
Reino, nos princípios do século XVI; deixando o lugar, retirou-se para
Aveiro, onde casou, pela primeira vez, com D. Brites Nunes Cardoso,
filha de D. Isabel da Costa Corte-Real e de João Nunes Cardoso, senhor
de Gafanhão (Castro Daire), Freiriz (Vila Verde), Penagate (Nespereira,
Guimarães) e da quinta de S. João da Madeira. Grande comerciante e
proprietário de embarcações para a pesca do bacalhau, ele e sua mulher
doaram, em 1524, o terreno para a fundação do convento franciscano de
Santo António, em Aveiro.
(34)
No território da actual
freguesia da Vera-Cruz, existiu outrora o chamado Prazo de Gil Homem,
também conhecido por Granja da Vila Nova ou Campo do Frade, que se
alargava desde a rua do Carril até à rua do Norte (Manuel Luís
Nogueira), e desde a rua de S. Paulo (Manuel Firmino) até ao canal de S.
Roque. Em 18 de Setembro de 1580, Gil Homem, o Novo, cavaleiro fidalgo
da Casa de El-Rei, filho das segundas núpcias de Gil Homem da Costa, o
Velho, com D. Brites Bocarro, obteve do duque de Aveiro a autorização
para dar de aforamento umas casas, com pomar, vinhas e horta, na
referida Granja. (35)
Recordou-se atrás Jorge
Fernandes Geta e sua mulher D. Isabel de Oliveira Barreto; o segundo
filho do casal, Manuel de Oliveira Barreto, baptizado em 31 de Maio de
1586, irmão de Mateus Fernandes de Oliveira Barreto, viria a
consorciar-se em Aveiro com D. Maria Vieira da Costa, filha de Manuel
Vieira da Costa e de D. Leonor da Costa, sua mulher.
(36)
Da mesma centúria é uma
outra Leonor da Costa, baptizada em 7 de Setembro de 1 583, filha de
Manuel André Rangel Migalhas e de D. Isabel Couceiro. Casou com Lourenço
Carvalho de Meneses, mas não alcançou geração; com os seus bens e os de
seu irmão Pedro Couceiro da Costa, instituiu a capela e o morgado de
Vilarinho (Cacia) num filho bastardo do referido irmão, de nome Manuel
Couceiro da Costa. (37) Também um tal Miguel Correia de Quadros
da Veiga, baptizado em 4 de Outubro de 1592, casaria com D. Luísa de
Almeida da Costa, filha de Manuel Jorge da Costa, e seria o instituidor
de um morgado na quinta de S. Gregório, que se juntou à dos Santos
Mártires, em Aveiro. (38)
Fernão de Oliveira, se na
verdade teve como pais Heitor de Oliveira e D. Branca da Costa,
certamente sentiria orgulho em declarar-se de Aveiro; todavia, também
não ocultou que, na realidade, nascera na Gestosa e aí soltara os
primeiros vagidos. Aliás, esta terra tinha sido pertença de
antepassados... (39)
Semelhante afirmação parece
não ficar isolada; as poucas recordações que ele passou a escrito,
confirmam que a Beira foi o ambiente da sua infância e da sua
adolescência... e não a Estremadura, que então, ao que se julga,
se
estendia pelo litoral, desde o rio Tejo ao Douro, enquanto aquela região
acompanhava esta pelo interior.
(40)
Na "Grammatica da Lingoagem
Portuguesa", escreveu: – «Os escudeiros da Beira em sua terra tinham em
muito um pelote frisado, o qual não têm em conta depois que fartam os
olhos de ver sedas e ouro de cortesão.»
(41) No mesmo livro,
falando de "dicções", já em desuso, anotou:
«Porém, se estas e quaisquer
outras semelhantes as metermos em mão de um homem velho da Beira ou
aldeão, não lhe parecerão mal.»
(42) Ainda na mencionada
gramática, falando de si próprio, sobre a primeira pessoa do indicativo
do verbo ser, esclareceu que uns dizem som, outros sou, outros são e
outros so... e acrescenta que João de Barros se inclina pela pronúncia
som, porque daí mais facilmente se forma o plural de somos; e termina: –
«Contudo, sendo eu moço pequeno, fui criado em S. Domingos de Évora,
onde faziam zombaria de mim os da terra, porque o eu assim pronunciava,
segundo que o aprendera na Beira.»
(43)
Mais tarde, na "Arte da
Guerra do Mar", como homem que tinha a experiência como um dos critérios
de conhecimento, Fernão de Oliveira, ao verificar os magros campos da
Beira com seus próprios olhos em 1554, concluiria: – «O trigo anafil do
Alentejo, se o levais à Beira, muda a bondade e corrompe a espécie.»
(44)
Na verdade, tendo andado
longe das terras dos seus tenros anos, certamente cansado das
turbulências da vida, dos desassossegos da sorte e das aventuras sem
parança, Fernão de Oliveira, com cerca de quarenta e sete anos de idade,
teve alguém que lhe ofereceu hospedagem na sua própria casa; foi D.
António ou Antão da Cunha, casado com D. Isabel (ou Violante?) de Abreu,
filha de D. Bartolomeu de Paiva, amo e camareiro de el-Rei D. João III.
O convidado aceitou a oportunidade, que se lhe abria, de passar algum
tempo no
/ 16 /
ambiente calmo da sua infância, talvez mesmo na residência dos Cunhas,
em Santar, cujas terras D. António herdara, juntamente com as do
Barreiro, Senhorim e Sabugosa.
(45) Por razões que ainda se
desconhecem, mais uma vez é denunciado à Inquisição, agora pelo
anfitrião; mas, desta feita, sem consequências de maior. Nem na Beira,
afastado de Lisboa, viveu em paz...
Fernão de Oliveira mantinha
com D. António relações especiais de amizade, a tal ponto que, ao
terminar a "Arte da Guerra do Mar" em 28 de Outubro de 1554, dedicou o
livro ao seu terceiro filho, D. Nuno da Cunha. É mesmo de supor que este
fidalgo D. Nuno, capitão de galés, o tenha auxiliado na feitura ou no
aperfeiçoamento final da obra.
Fora precisamente no verão
desse ano que ele «se assinalara no Algarve, na armada de que era
general D. Pedro da Cunha, por ocasião de um combate naval contra uns
corsários turcos, do qual resultara a derrota destes e o aprisionamento
de Xaramet Raes, seu capitão-mor».
(46) É possível que Fernão de
Oliveira, tendo ouvido decerto a descrição da peleja narrada pelo
próprio D. Nuno, a ela se refira, quando aconselha aos capitães a máxima
circunspecção na escolha dos seus mestres e pilotos, acrescentando: –
«Bem me ajudará Vossa Mercê nesta parte, pois sabe quanto lhe queimou o
sangue o desazo e negligências do primeiro patrão que lhe puseram na sua
galé, e como o pôs em extremo de se perder a ignorância ou malícia do
segundo, e lhe
fez perder a outra fusta que também pudera tomar e a perdeu por não
marinharem a vela como era necessário e lhe fazerem perder o vento».
(47)
Ao concluir esta anotação
sobre a família e a naturalidade do Padre Fernando ou Fernão de
Oliveira, talvez se possa dizer:
– que os seus antepassados
próximos, Oliveiras e Costas, se encontravam radicados em Aveiro, havia
já muitos anos;
– que os seus pais eram
naturais de Aveiro, onde se receberam em matrimónio e onde viveram
durante os primeiros tempos de casados;
– que não sabemos se, antes
de Fernando, o lar fora enriquecido, em Aveiro, com algum filho ou
filha;
– que, andando a mãe de
esperanças, o casal deslocou-se para a Beira Alta, mas desconhece se o
motivo da saída de Aveiro, se por causa da profissão do pai, se com o
intuito de melhorar o nível económico de vida, se por outra razão;
– que D. Branca, estando na
povoação da Gestosa, da freguesia do Couto do Mosteiro, deu à luz um
menino, que foi baptizado na respectiva igreja matriz de Santa Columba,
com o nome de Fernando (Fernão);
– que a família se conservou
pela Beira Gestosa, Pedrógão ou outra parte – donde Fernão de Oliveira,
ainda adolescente, foi para o Convento de S. Domingos de Évora;
– que Fernão de Oliveira,
embora nascido na freguesia do Couto do Mosteiro, não negou a sua
ascendência nem a terra dos seus pais, dizendo-se mesmo filho de Aveiro;
– que, por isso, é pessoa ilustre da Gestosa e não menos pessoa ilustre
de Aveiro, podendo as duas terras considerá-lo como seu, por vontade
expressa do próprio Fernão de Oliveira.
João Gonçalves Gaspar
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NOTAS
(34) – Rangel de
Quadros, Aveiro – Apontamentos Históricos, Vol. V, fI. 2. Uma das irmãs
de João Nunes Cardoso, D. Isabel Nunes Cardoso, foi a mãe de D. Frei
Duarte Nunes (Cardoso). bispo titular de Laodiceia – o primeiro bispo
português que, ainda sem sé, exerceu o múnus pastoral na índia,
precisamente no primeiro quartel do século XVI.
(35) – Rangel de
Quadros, Aveirenses Notáveis, Vol. I, fls. 259-261; Aveiro –
Apontamentos Avulsos (Manuscrito). fls. 139 e ss.
(36) – Genealogias...
cit., pgs. 188-189.
(37) – Id., pg. 50.
(38) – Id., pg. 26.
(39) – Em pesquisa
feita nos livros do Registo Paroquial da freguesia do Couto do Mosteiro,
que presentemente se encontram no Arquivo Distrital de Viseu, achámos o
assento do baptismo de uma criança, filha de Pedro de Oliveira, em 1554,
e outro do óbito de Beatriz, mulher de Estêvão de Oliveira, em 28 de
Abril de 1590. Seriam familiares próximos de Fernão de Oliveira?
(40) – Habitualmente,
quando se fala em "Beira", entende-se a região interior de Portugal que
se estende entre os rios Tejo e Douro; de facto, já assim era no século
XV. As regiões, chamadas províncias, denominavam-se Entre-Douro-e-Minho,
Trás-os-Montes, Beira, Estremadura (litoral entre Tejo e Douro). e
Entre-Tejo-e-Guadiana. Nos princípios do século XVI, dividiu-se
administrativamente o Reino em catorze comarcas: Lisboa, Setúbal,
Santarém, Leiria, Alenquer, Évora, Beja, Coimbra, Viseu, Guarda, Porto,
Guimarães, Torre de Moncorvo e Reino do Algarve; mas a denominação
vulgar continuou. Mais tarde, já nas descrições que fazem do País, tanto
Duarte Nunes de Leão ("Descripção do Reino de Portugal", escrita em
1599, mas editada em 1610) como o Padre António de Carvalho da Costa ("Corografia
Portugueza"). de 1706-1708) informam que a parte da Estremadura ao norte
do rio Mondego se considerava oficialmente como sendo da Beira. Mas,
para o povo, a Beira era... a Beira!
(41) – Grammatica da
Lingoagem Portuguesa, Cap. XXVII.
(42) – Id., Cap. XXXVI.
(43) – Id., Cap.
XLVII.
(44) – Arte da Guerra
do Mar, I Parte, Cap. VIII. É evidente que, para Fernão de Oliveira, a
Beira não pode ser outra região senão aquela que tradicionalmente sempre
assim se chamou, pois as terras de Aveiro e suas redondezas nunca foram
propícias à cultura do trigo.
(45) – Em Santar
(Nelas). ainda subsistem velhas ruínas do Paço dos Cunhas, de estilo
renascentista, que D. Pedro da Cunha mandou construir em 1609, embora
integradas no conjunto actual da Casa do Soito, residência apalaçada ao
gosto do século XVIII.
(46) – Henrique Lopes
de Mendonça, O Padre Fernando Oliveira e a sua Obra Náutica cit., pg.
64. A Arte da Guerra do Mar apenas se acabou de imprimir, em Coimbra, em
4 de Julho de 1555 (Vd. pg. LXXX, v).
(47) – Arte da Guerra
do Mar, pg. XXIX, r; I Parte, Cap. XII.
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