Acesso à hierarquia superior.

Boletim n.º 18 - Ano IX - 1991

 

Efectivamente, viveu em tempo de D. Afonso III, no século XIII, D. Pedro Pires Ferreira, a quem vulgarmente apelidaram Pedro Pires Homem, que foi senhor, entre outras terras, das da Lajeosa e da Gestosa; um seu descendente, Pedro Homem, "foi criado do Infante Regente, filho de el-Rei D. João I, e morreu no mar em uma batalha que deu no serviço de el-Rei e do Infante, no ano de 1446, e jaz sepultado na igreja da Graça, em Lisboa". Neto deste foi Gil Homem da Costa, o Velho, que exerceu o cargo de provedor dos metais do Reino, nos princípios do século XVI; deixando o lugar, retirou-se para Aveiro, onde casou, pela primeira vez, com D. Brites Nunes Cardoso, filha de D. Isabel da Costa Corte-Real e de João Nunes Cardoso, senhor de Gafanhão (Castro Daire), Freiriz (Vila Verde), Penagate (Nespereira, Guimarães) e da quinta de S. João da Madeira. Grande comerciante e proprietário de embarcações para a pesca do bacalhau, ele e sua mulher doaram, em 1524, o terreno para a fundação do convento franciscano de Santo António, em Aveiro. (34)

No território da actual freguesia da Vera-Cruz, existiu outrora o chamado Prazo de Gil Homem, também conhecido por Granja da Vila Nova ou Campo do Frade, que se alargava desde a rua do Carril até à rua do Norte (Manuel Luís Nogueira), e desde a rua de S. Paulo (Manuel Firmino) até ao canal de S. Roque. Em 18 de Setembro de 1580, Gil Homem, o Novo, cavaleiro fidalgo da Casa de El-Rei, filho das segundas núpcias de Gil Homem da Costa, o Velho, com D. Brites Bocarro, obteve do duque de Aveiro a autorização para dar de aforamento umas casas, com pomar, vinhas e horta, na referida Granja. (35)

Recordou-se atrás Jorge Fernandes Geta e sua mulher D. Isabel de Oliveira Barreto; o segundo filho do casal, Manuel de Oliveira Barreto, baptizado em 31 de Maio de 1586, irmão de Mateus Fernandes de Oliveira Barreto, viria a consorciar-se em Aveiro com D. Maria Vieira da Costa, filha de Manuel Vieira da Costa e de D. Leonor da Costa, sua mulher. (36)

Da mesma centúria é uma outra Leonor da Costa, baptizada em 7 de Setembro de 1 583, filha de Manuel André Rangel Migalhas e de D. Isabel Couceiro. Casou com Lourenço Carvalho de Meneses, mas não alcançou geração; com os seus bens e os de seu irmão Pedro Couceiro da Costa, instituiu a capela e o morgado de Vilarinho (Cacia) num filho bastardo do referido irmão, de nome Manuel Couceiro da Costa. (37) Também um tal Miguel Correia de Quadros da Veiga, baptizado em 4 de Outubro de 1592, casaria com D. Luísa de Almeida da Costa, filha de Manuel Jorge da Costa, e seria o instituidor de um morgado na quinta de S. Gregório, que se juntou à dos Santos Mártires, em Aveiro. (38)

Fernão de Oliveira, se na verdade teve como pais Heitor de Oliveira e D. Branca da Costa, certamente sentiria orgulho em declarar-se de Aveiro; todavia, também não ocultou que, na realidade, nascera na Gestosa e aí soltara os primeiros vagidos. Aliás, esta terra tinha sido pertença de antepassados... (39)

Semelhante afirmação parece não ficar isolada; as poucas recordações que ele passou a escrito, confirmam que a Beira foi o ambiente da sua infância e da sua adolescência... e não a Estremadura, que então, ao que se julga, se estendia pelo litoral, desde o rio Tejo ao Douro, enquanto aquela região acompanhava esta pelo interior. (40)

Na "Grammatica da Lingoagem Portuguesa", escreveu: – «Os escudeiros da Beira em sua terra tinham em muito um pelote frisado, o qual não têm em conta depois que fartam os olhos de ver sedas e ouro de cortesão.» (41) No mesmo livro, falando de "dicções", já em desuso, anotou:

«Porém, se estas e quaisquer outras semelhantes as metermos em mão de um homem velho da Beira ou aldeão, não lhe parecerão mal.» (42) Ainda na mencionada gramática, falando de si próprio, sobre a primeira pessoa do indicativo do verbo ser, esclareceu que uns dizem som, outros sou, outros são e outros so... e acrescenta que João de Barros se inclina pela pronúncia som, porque daí mais facilmente se forma o plural de somos; e termina: – «Contudo, sendo eu moço pequeno, fui criado em S. Domingos de Évora, onde faziam zombaria de mim os da terra, porque o eu assim pronunciava, segundo que o aprendera na Beira.» (43)

Mais tarde, na "Arte da Guerra do Mar", como homem que tinha a experiência como um dos critérios de conhecimento, Fernão de Oliveira, ao verificar os magros campos da Beira com seus próprios olhos em 1554, concluiria: – «O trigo anafil do Alentejo, se o levais à Beira, muda a bondade e corrompe a espécie.» (44)

Na verdade, tendo andado longe das terras dos seus tenros anos, certamente cansado das turbulências da vida, dos desassossegos da sorte e das aventuras sem parança, Fernão de Oliveira, com cerca de quarenta e sete anos de idade, teve alguém que lhe ofereceu hospedagem na sua própria casa; foi D. António ou Antão da Cunha, casado com D. Isabel (ou Violante?) de Abreu, filha de D. Bartolomeu de Paiva, amo e camareiro de el-Rei D. João III. O convidado aceitou a oportunidade, que se lhe abria, de passar algum tempo no / 16 / ambiente calmo da sua infância, talvez mesmo na residência dos Cunhas, em Santar, cujas terras D. António herdara, juntamente com as do Barreiro, Senhorim e Sabugosa. (45) Por razões que ainda se desconhecem, mais uma vez é denunciado à Inquisição, agora pelo anfitrião; mas, desta feita, sem consequências de maior. Nem na Beira, afastado de Lisboa, viveu em paz...

Fernão de Oliveira mantinha com D. António relações especiais de amizade, a tal ponto que, ao terminar a "Arte da Guerra do Mar" em 28 de Outubro de 1554, dedicou o livro ao seu terceiro filho, D. Nuno da Cunha. É mesmo de supor que este fidalgo D. Nuno, capitão de galés, o tenha auxiliado na feitura ou no aperfeiçoamento final da obra.

Fora precisamente no verão desse ano que ele «se assinalara no Algarve, na armada de que era general D. Pedro da Cunha, por ocasião de um combate naval contra uns corsários turcos, do qual resultara a derrota destes e o aprisionamento de Xaramet Raes, seu capitão-mor». (46) É possível que Fernão de Oliveira, tendo ouvido decerto a descrição da peleja narrada pelo próprio D. Nuno, a ela se refira, quando aconselha aos capitães a máxima circunspecção na escolha dos seus mestres e pilotos, acrescentando: – «Bem me ajudará Vossa Mercê nesta parte, pois sabe quanto lhe queimou o sangue o desazo e negligências do primeiro patrão que lhe puseram na sua galé, e como o pôs em extremo de se perder a ignorância ou malícia do segundo, e lhe
fez perder a outra fusta que também pudera tomar e a perdeu por não marinharem a vela como era necessário e lhe fazerem perder o vento». (47)

Ao concluir esta anotação sobre a família e a naturalidade do Padre Fernando ou Fernão de Oliveira, talvez se possa dizer:

– que os seus antepassados próximos, Oliveiras e Costas, se encontravam radicados em Aveiro, havia já muitos anos;

– que os seus pais eram naturais de Aveiro, onde se receberam em matrimónio e onde viveram durante os primeiros tempos de casados;

– que não sabemos se, antes de Fernando, o lar fora enriquecido, em Aveiro, com algum filho ou filha;

– que, andando a mãe de esperanças, o casal deslocou-se para a Beira Alta, mas desconhece se o motivo da saída de Aveiro, se por causa da profissão do pai, se com o intuito de melhorar o nível económico de vida, se por outra razão;

– que D. Branca, estando na povoação da Gestosa, da freguesia do Couto do Mosteiro, deu à luz um menino, que foi baptizado na respectiva igreja matriz de Santa Columba, com o nome de Fernando (Fernão);

– que a família se conservou pela Beira Gestosa, Pedrógão ou outra parte – donde Fernão de Oliveira, ainda adolescente, foi para o Convento de S. Domingos de Évora;

– que Fernão de Oliveira, embora nascido na freguesia do Couto do Mosteiro, não negou a sua ascendência nem a terra dos seus pais, dizendo-se mesmo filho de Aveiro;
– que, por isso, é pessoa ilustre da Gestosa e não menos pessoa ilustre de Aveiro, podendo as duas terras considerá-lo como seu, por vontade expressa do próprio Fernão de Oliveira.

João Gonçalves Gaspar

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NOTAS

(34) – Rangel de Quadros, Aveiro – Apontamentos Históricos, Vol. V, fI. 2. Uma das irmãs de João Nunes Cardoso, D. Isabel Nunes Cardoso, foi a mãe de D. Frei Duarte Nunes (Cardoso). bispo titular de Laodiceia – o primeiro bispo português que, ainda sem sé, exerceu o múnus pastoral na índia, precisamente no primeiro quartel do século XVI.

(35) – Rangel de Quadros, Aveirenses Notáveis, Vol. I, fls. 259-261; Aveiro – Apontamentos Avulsos (Manuscrito). fls. 139 e ss.

(36) – Genealogias... cit., pgs. 188-189.

(37) – Id., pg. 50.

(38) – Id., pg. 26.

(39) – Em pesquisa feita nos livros do Registo Paroquial da freguesia do Couto do Mosteiro, que presentemente se encontram no Arquivo Distrital de Viseu, achámos o assento do baptismo de uma criança, filha de Pedro de Oliveira, em 1554, e outro do óbito de Beatriz, mulher de Estêvão de Oliveira, em 28 de Abril de 1590. Seriam familiares próximos de Fernão de Oliveira?

(40) – Habitualmente, quando se fala em "Beira", entende-se a região interior de Portugal que se estende entre os rios Tejo e Douro; de facto, já assim era no século XV. As regiões, chamadas províncias, denominavam-se Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura (litoral entre Tejo e Douro). e Entre-Tejo-e-Guadiana. Nos princípios do século XVI, dividiu-se administrativamente o Reino em catorze comarcas: Lisboa, Setúbal, Santarém, Leiria, Alenquer, Évora, Beja, Coimbra, Viseu, Guarda, Porto, Guimarães, Torre de Moncorvo e Reino do Algarve; mas a denominação vulgar continuou. Mais tarde, já nas descrições que fazem do País, tanto Duarte Nunes de Leão ("Descripção do Reino de Portugal", escrita em 1599, mas editada em 1610) como o Padre António de Carvalho da Costa ("Corografia Portugueza"). de 1706-1708) informam que a parte da Estremadura ao norte do rio Mondego se considerava oficialmente como sendo da Beira. Mas, para o povo, a Beira era... a Beira!

(41) – Grammatica da Lingoagem Portuguesa, Cap. XXVII.

(42)  – Id., Cap. XXXVI.

(43) – Id., Cap. XLVII.

(44) – Arte da Guerra do Mar, I Parte, Cap. VIII. É evidente que, para Fernão de Oliveira, a Beira não pode ser outra região senão aquela que tradicionalmente sempre assim se chamou, pois as terras de Aveiro e suas redondezas nunca foram propícias à cultura do trigo.

(45) – Em Santar (Nelas). ainda subsistem velhas ruínas do Paço dos Cunhas, de estilo renascentista, que D. Pedro da Cunha mandou construir em 1609, embora integradas no conjunto actual da Casa do Soito, residência apalaçada ao gosto do século XVIII.

(46) – Henrique Lopes de Mendonça, O Padre Fernando Oliveira e a sua Obra Náutica cit., pg. 64. A Arte da Guerra do Mar apenas se acabou de imprimir, em Coimbra, em 4 de Julho de 1555 (Vd. pg. LXXX, v).

(47) – Arte da Guerra do Mar, pg. XXIX, r; I Parte, Cap. XII.

 

 

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