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Boletim n.º 17 - Ano IX - 1991

Museu Municipal de Aveiro

João Evangelista de Campos

 

Na minha carta datada de 2 de Abril de 1990 dirigida ao Ex.mo Sr. Presidente da Câmara Municipal da nossa cidade, carta que acompanhou uma oferta destinada ao Museu Municipal, dizia eu ser do meu conhecimento que o referido Museu havia sido criado em 1930, por sugestão do ilustre e inolvidável aveirense, o Dr. Alberto Souto, como se vê da acta da sessão da Câmara Municipal, datada de 26 de Junho daquele ano.

Porém, numa das minhas pesquisas, encontrei, por acaso, a fotocópia que, aqui se reproduz, a qual foi publicada no «Litoral» de 19 de Março de 1960, e por ela se vê que a Câmara Municipal presidida por Gustavo Ferreira Pinto Basto, em 1910, já havia criado o Museu Municipal por proposta do seu Vice-Presidente, o Dr. José Maria Soares que propôs, também, a de uma Biblioteca Pública Municipal.

Para averiguar o que, na realidade, se tinha passado e qual teria sido o interesse da Câmara pela proposta do seu Vice-Presidente, recorri às actas das sessões daquela Câmara, e, assim:

Verifiquei que da acta da sessão de 15 de Fevereiro de 1910, consta o seguinte:

Por proposta do Senhor Vice-Presidente ficou resolvido que se iniciem, desde já, os trabalhos necessários para a fundação de um museu municipal.

Mostrando a necessidade de estabelecimentos desta ordem e a sua acção educativa do povo, o mesmo Senhor Vereador disse que era o único meio de coleccionar um grande número de objectos preciosos e raros que, embora pertencendo à cidade, estão entregues a diversas entidades oficiais, e desconhecidos do público.

A Câmara resolveu pedir, desde já, que lhe sejam confiados esses objectos e pedir o concurso e o auxílio dos aveirenses que pelas suas aptidões artísticas podem contribuir para o bom êxito desta resolução camarária.

– Que, na da sessão de 22 do mesmo mês, se diz:

O Senhor Vice-Presidente propôs que, com a criação do museu a que vai proceder-se, se faça, também, a de uma biblioteca pública municipal, incluindo-se para seu início, no próximo orçamento, a verba que se julgue necessária.

A Câmara manifestou-se, plenamente, a favor desta proposta.

– Que, na da sessão de 12 de Abril daquele mesmo ano, se lê o seguinte:

O Senhor Vice-Presidente, com o assentimento de toda a Câmara, também pediu licença para dar imediato começo aos trabalhos da instalação do museu municipal, convidando para esse efeito o erudito investigador local, Senhor João Augusto Marques Gomes, que elaborará o projecto da organização do dito museu, apresentando para isso, oportunamente, o respectivo relatório.

Não encontrei mais nada acerca da fundação do Museu Municipal, nem, mesmo, da entrega do Relatório que Marques Gomes ficou encarregado de elaborar.

O que levaria ao esquecimento total da resolução desta Câmara, de tal sorte que, em 1930, se voltou a pensar na criação do Museu Municipal?

Vejamos:

Pouco depois das duas propostas, o Dr. José Maria Soares é nomeado médico militar e tem, por esse motivo, de abandonar a Câmara onde teve grande actuação, tanto assim que o Presidente, Gustavo Ferreira Pinto Basto, lhe faz os mais rasgados elogios e lastima a sua falta, na altura da sua forçada saída.

Nesse ano de 1910, em 5 de Outubro, é proclamada a República; a Câmara é substituída e os nossos Vereadores não sabem nem tomam conhecimento das resoluções das Câmaras anteriores, trazem novos problemas para tratar e ninguém mais pensa no Museu, tanto mais que o dinheiro não abunda nos cofres do Município e há outros problemas a resolver e com a maior urgência.

Enfim: a criação do Museu Municipal caiu no esquecimento.

Vejamos, agora, o que nos diz a acta da sessão ordinária da Comissão Administrativa da Câmara, de 26 de Junho de 1930, da presidência do Dr. Lourenço Simões Peixinho:
Presente um ofício do Senhor Doutor Alberto Souto, director do Museu Nacional de Arte. de Aveiro, anunciando a descoberta que acaba de fazer de restos de uma povoação lusitano-romana no sítio da Torre, em Cacia.
/ 26 /

Informa S. Ex: que até à presente data se não conhecia quaisquer vestígios de uma povoação romana na margem esquerda do Baixo-Vouga e que para o estudo do problema de TALABRIGA, a célebre cidade da Lusitânia, que ficava nas margens do Vouga, sobre ou próximo da estrada romana de EMINIUM para CALEM, tem agora que contar-se com este novo elemento que é o OPPIDUM ou CASTRUM de Cacia. Que não é pequena nem insignificante, já, a colheita de objectos, principalmente restos de olaria que ali tem feito e que guarda no Museu de Aveiro, pelo que entende que o espólio do Oppidum de Cacia deve constituir o início do Museu Regional Municipal de Aveiro, que nada deve ter de comum com o Museu de Arte Nacional.

Que oferece à Câmara de Aveiro os objectos por si recolhidos até hoje em Cacia, pedindo que ela mande construir uma vitrina, onde se possam recolher e expor os ditos objectos, e o patrocínio da mesma Câmara para as escavações e exploração metódica da estação arqueológica da Torre, ficando a pertencer à Municipalidade tudo quanto ali se descobrir e recolher, com o necessário entendimento prévio com os proprietários do terreno.

Que, se a Câmara aceitar a sua sugestão, poderia criar, já, o Museu Municipal, o qual como está aprovado pelo Ministério da Instrução, se pode instalar em parte do edifício do Museu de Aveiro (Convento de Jesus) sem encargos de pessoal para o Município e sem mais despesas que a aquisição de objectos, de vitrinas e instalação.

Diz ainda o Sr. Dr. Alberto Souto que o seu préstimo fica gratuitamente à disposição da Câmara e da cidade.

Que, para o Museu Municipal, está reunindo, também, algumas recordações e documentos das lutas civis desenvolvidas nas margens do Vouga em mil oitocentos e vinte e oito (1828) e em mil novecentos e dezanove (1919), terminando por lembrar que, enquanto o edifício do Museu se encontrar em obras que impedem o acesso às salas da antiga Escola Primária Superior, a primeira vitrina com fragmentos cerâmicos de Cacia pode, talvez, montar-se, provisoriamente, na sala da Biblioteca Municipal, passando, depois, para o edifício do Museu.

A Comissão, de acordo com o exposto no ofício do Senhor Doutor Alberto Souto, resolveu por unanimidade aceitar o oferecimento de sua excelência e criar, desde já, o MUSEU MUNICIPAL DE AVEIRO (etnografia, arqueologia, história e recordações locais e regionais, e produções). Mais resolveu a Comissão que o MUSEU MUNICIPAL REGIONAL DE AVEIRO (em organização) tenha um director, o director da Biblioteca Municipal e do Museu Nacional de Arte de Aveiro, o Senhor Doutor Alberto Souto, e um empregado menor, o empregado municipal Firmino Costa, ambos sem qualquer retribuição por estes serviços que lhes são confiados.

O que se transcreveu foi o que encontrei quanto à criação e organização do Museu Municipal.

Haverá mais qualquer coisa a este respeito? Parece que a implantação do Museu Regional está «enguiçada».

Já vimos a razão pela qual não foi avante o criado em 1910.

E o de 1930?

Não foi, por certo, por falta de local, pois, segundo se vê do ofício do Dr. Alberto Souto, já havia autorização ministerial para ele funcionar no mesmo edifício do Museu Nacional (Convento de Jesus); como se sabe aquele ilustre aveirense era Director de ambos. Mas, o que mais admiro é que, tendo ele sido Presidente da Câmara, de 1957 a 1960, o Dr. Alberto Souto não tivesse tido a possibilidade de o implantar.

E já lá vão 60 anos! Neste tempo, quantos objectos se terão perdido, dignos de figurar no Museu Municipal Regional?

É ou não é «enguiço»?

Vejo, com satisfação, no Boletim Informativo, que a actual Câmara, no seu Orçamento para 1990, prevê, para a instalação do referido Museu, cinco mil contos (5.000).

Oxalá se tenha quebrado o «enguiço» e, desta vez, se faça a sua instalação.

Maio de 1990

João Evangelista de Campos


ENTREVISTA COM O VICE-PRESIDENTE DA CÂMARA SOBRE A CRIAÇÃO DE UM MUSEU MUNICIPAL


Folgámos muito com a notícia de que íamos ter, finalmente, um Museu, e que a iniciativa partisse do nosso estimado amigo Sr.. Dr. José Maria Soares, activo Vice-Presidente da Câmara Municipal.

Mais vale tarde do que nunca; e, por isso, resolvemos procurar S. Ex.ª numa destas últimas tardes chuvosas, sendo recebidos com a bonomia e afabilidade que o caracterizam, exclamando ao ver-nos:

– Já sei o que o traz cá. Uma entrevista acerca da Arte?! Talvez a Música, por lhe ter há pouco falado nisso.

– Enganou-se, meu caro amigo. Agora o seu virtuosismo musical vai ficar descansado. Venho confessá-lo acerca da novidade sensacional – o Museu. Mas diga-me agora uma coisa: como foi recebida pelos seus colegas a proposta? / 27 /

– Todos os vereadores receberam de bom agrado a minha ideia, que acharam aceitável e necessária a criação e existência duma escola daquela categoria.

– Onde pensam que se possa instalar o Museu, e com que elementos contam para a sua iniciação?

– Lembro-me de fazer a sua instalação no edifício pertencente à Misericórdia e encostado ao lado Norte da Igreja, se o Sr. Dr. Jaime Lima, digníssimo Provedor, nisso concordar, o que se espera conseguir, por isso S. Ex.ª é um espírito assaz ilustrado e um bairrista sempre pronto a auxiliar todos os grandes empreendimentos locais. Conto com a cooperação dos nossos artistas. Já falei com o Romão Júnior, que mostrou todo o interesse pela criação do Museu, pondo à disposição da Câmara todo o seu valioso auxílio. Além deste, temos o velho João Romão, o Artur Pratt, José de Pinho, Silva Rocha, Carlos Mendes, etc.. E mesmo os artistas portugueses, segundo me informou o Romão, contribuem sempre com qualquer das suas produções artísticas para enriquecer os diferentes museus que a eles recorrem.

– O Museu que se vai criar limita-se a objectos de arte ou também compreende produtos naturais?

– Quanto aos objectos que desde já devem figurar no Museu, temos na cidade um grande número de preciosidades em diferentes ramos de arte. Na Arte Sacra, temos ricos paramentos em branco e vermelho, bordados a ouro, pertencentes ao antigo Bispado e que já figuraram, segundo informações que tenho, numa exposição de Lisboa, juntamente com umas mitras, sendo avaliados em 17.000$00 réis. Calcule o meu amigo a riqueza deles!

É também digno de ser admirado um véu-de-ombros branco, bordado a matiz, duma perfeição admirável. Informaram-me que também havia guardado, no Convento de Jesus, um báculo de subido valor. Sobre pintura, temos os quadros, embora de pouco valor, segundo dizem, que pertenceram ao Convento das Carmelitas, e que hoje estão sob a guarda do Sr.. Delegado do Tesouro. Era a secção que começaria mais pobre, mas que mais facilmente se engrandeceria com o concurso dos nossos artistas e dalguns particulares, que confiariam ao Museu alguns quadros de subido valor e dignos de serem expostos. Na parte de faiança, também temos os panneaux de azulejos, que foram retirados das Carmelitas, e os produtos tão apreciados e apreciáveis das nossas fábricas.

– A quem tencionam confiar a guarda e direcção do Museu?

– Com relação à pessoa que se há-de encarregar do Museu, isso depende. de resolução da Câmara e doutras circunstâncias que é prematuro informar.

– Porque não estabelece a Câmara uma Biblioteca junto do Museu, que tão necessária se torna em Aveiro? O Conservador daquele podia também sê-lo desta, e o edifício o mesmo.

– Relativamente à criação da Biblioteca, cuja lembrança do Campeão e do Progresso aceito com muito agrado, tenciono na primeira sessão da Câmara apresentar uma proposta para a sua instituição, podendo ser o bibliotecário o encarregado do Museu, se isso se julgar conveniente em tempo próprio.

E tendo o nosso obsequioso amigo sido chamado urgentemente para os seus serviços clínicos, nos despediu sorridente.

Isto passou-se em Aveiro, mas... há meio século... A curiosa entrevista foi publicada no "Campeão das Províncias", n.º 5937, de 23-11-1910

(Jornal "LITORAL", de 19-3-1960)

 
 

Confesso que a ideia de «museu» produz na minha sensibilidade uma impressão bastante ambígua. O conceito, em si próprio, não me agrada pelo que significa de acumulação de riqueza artística, subtraída dos locais para onde foi concebida e agora exposta e classificada com fins pedagógicos – o que a empobrece no seu encanto. Todavia, por outro lado, é precisamente no museu que a obra de arte se separa de todos os valores acidentais, que no seu lugar primitivo a escondiam, e nos aparece, para nossa satisfação, nua de todo o prestígio postiço, sem outro valor senão a sua beleza intrínseca.

Marquez de Lozoya

 

 

 

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