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Boletim n.º 13-14 - Ano VII - 1989


Esboço de introdução metodológica a um estudo sobre Aveiro Medieval
Maria João Violante Branco Marques da Silva
(Bolseira do INIC)

 

Quando, no âmbito do Seminário sobre Cidades Medievais, cadeira do meu Mestrado em História Medieval, me foi pedido que escolhesse uma cidade para estudar, imediatamente me lembrei de Aveiro, por a ela me ligarem razões sentimentais. Com efeito, casada com um gafanhão muito ligado a Aveiro, acabei, naturalmente, por também muito me interessar por esta cidade, eu que, nascida e criada em Lisboa, me vejo considerada naquela categoria de pessoas que não têm «terra»...

Um trabalho deste tipo deve obedecer a critérios metodológicos rigorosos, critérios sem os quais qualquer investigação histórica carece de validade nos nossos dias. É esta a razão por que pretendo apresentar aqui alguns dos passos fundamentais para a realização do trabalho que me propus fazer, em termos de pesquisa bibliográfica e documental, e ainda demonstrar a utilidade que cada um dos tipos de documentos pode ter para o nosso objectivo em vista, isto é, retraçar a vida da Aveiro Medieval.

Assim, como em qualquer outro estudo, devemos começar pela sondagem bibliográfica e arquivística, de forma a definir o que já existe publicado sobre a cidade e a dimensão da massa documental a estudar.

No que respeita à bibliografia impressa, devemos começar pelas úteis e bem conhecidas obras de bibliografia regional(1), que nos remeterão para outros trabalhos mais específicos. Outra consulta indispensável será a dos dicionários geográfico-corográficos e etimológicos(2), que constituem uma primeira aproximação ao tema, preciosa, quer pelas informações e bibliografia, quer sobretudo pelas pistas que fornecem.

Para lá destas obras mais genéricas existe variada produção bibliográfica sobre Aveiro medievo: um leque de temas bem diversos, que vão da geologia à etimologia, da arqueologia à genealogia e às pequenas biografias de personagens variadas, tem sido objecto de estudos levados a cabo pelos aveirenses com pendor mais histórico, desde antanho, trabalhos dentre os quais se podem destacar alguns.

Do século passado, podemos salientar José Reinaldo Rangel de Quadros Oudinot, que apesar de ter sido figura destacada da aveirografia do fim de Oitocentos, não deixou nenhuma obra impressa sobre a vila, tendo o seu labor vindo à luz em artigos de jornal, até há bem pouco tempo praticamente inacessíveis; foi só devido às recentes diligências do Padre João Gaspar que a Câmara de Aveiro conseguiu recolher o conjunto dos artigos de jornal em volumes que, organizados cronológica e tematicamente, nos fornecem interessantes pistas e referências, sobretudo no que se refere a documentação hoje em dia desaparecida(3).

Também trabalhando documentação hoje perdida, um outro oitocentista, Marques Gomes, elaborou uma obra muito útil, que, se bem que deva ser tratada com certas cautelas, por alguns anacronismos e erros em que incorre, nos fornece muitos e seguros dados sobre aspectos da cidade que nos interessam sobremaneira, como a muralha, o comércio, a confraria de pescadores e a sociedade medieval(4). Este trabalho tem o grande mérito de não só procurar ter uma base documental para o que se afirma, mas ainda, o que é muito importante, apontá-la e citá-la frequentemente, o que lhe confere bastante rigor.

Este gosto pela história de Aveiro, que desde sempre se sentiu, parece ter aumentado de intensidade no século seguinte e deu origem a uma das iniciativas que mais contribuiu para o progresso da historiografia aveirense: o começo da publicação do Arquivo do Distrito de Aveiro(5), obra que, em quarenta e dois volumes publicados entre 1935 e 1976 sob a cuidadosa direcção de Francisco Ferreira Neves, António Rocha Madahil e José Tavares, permitiu e fomentou a produção de múltiplos estudos sobre Aveiro. Esta publicação reveste particular interesse pela quantidade de material recolhido, pelo cuidado que foi posto na sua selecção e pela validade metodológica e histórica que apresenta. De entre muitos artigos que não se dedicam às épocas medievais, destacam-se outros que buscam cartografar topónimos, explicar a evolução geológica da região, definir senhorios, encontrar linhagens, justificar antepassados romanos, procurar a formação do distrito administrativo e retraçar vias, comércio e outros viveres, podendo-se desde já inferir do interesse na sua leitura. A preocupação com a publicação de fontes ocupou / 32 / também estes aveirógrafos, que empreendem a tarefa de trazer à estampa nesta mesma publicação textos tão importantes como os forais manuelinos, os registos paroquiais, excertos dos cartórios de mosteiros e de inquirições.

Muitas outras fontes foram publicadas, mesmo fora do âmbito do «Arquivo», e quase sempre com o apoio da edilidade; é o caso do Milenário de Aveiro(6), que saiu à estampa aquando das comemorações do milenário, e que é um inestimável repositório de documentação sobre o agregado humano.

Fruto ainda do labor científico e rigoroso de Rocha Madahil, a quem devemos render aqui homenagem como o aveirógrafo medievista de maior destaque, saiu, não só nesta colectânea de documentos, mas ainda em toda uma série de publicações de textos, como o da Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro(7), ou o das Constituições do mesmo(8), ou o Livro de Títulos do Mosteiro de Santa Maria da Misericórdia de Aveiro(9). É de notar, ainda, a publicação de excertos do Tombo da confraria de pescadores de Aveiro, por Francisco Ferreira Neves, que fez conhecer o documento(10), de inestimável valor para a história deste grupo populacional, do qual, esta publicação nos dá algum relato. Hoje em dia, e mais uma vez devido aos esforços dedicados de Monsenhor João Gaspar, existe na Biblioteca da Câmara Municipal de Aveiro uma fotocópia do original, que pode ser consultada na sua totalidade.

Injusto seria não referenciar trabalhos mais recentes como o monumental O Mosteiro de Jesus de Aveiro(11), de Domingos Maurício, que, publicado em 1963 e 1967, nos fornece elementos sobre a vida da vila do século XV e que, fruto da acuidade e critério que o autor põe no seu trabalho, nos dá garantias de segurança muito grandes na apreciação da sua obra.

Mais recentes ainda são os numerosos trabalhos de João Gaspar, que à sua cidade de eleição tem dedicado a sua investigação histórica, embora não a concentrando numa só época. Dos seus trabalhos permitimo-nos destacar como de muito interesse para o nosso âmbito cronológico a sua Aveiro, Notas Históricas(12), os trabalhos sobre a infanta Santa Joana e a sua recentíssima publicação, de parceria com António Christo, Calendário Histórico de Aveiro(13).

A actual vereação do pelouro cultural da Câmara Municipal de Aveiro está a tentar modernizar e dinamizar a investigação histórica sobre a cidade, tendo para tal começado por organizar o seu Arquivo Municipal que foi totalmente inventariado, e publicando desde 1983 o Boletim Municipal de Aveiro, onde, juntamente com artigos de carácter geral, se procura sempre incluir algum sobre aspectos variados do passado da cidade ou seu distrito. A política camarária tem vindo ultimamente a levar a cabo a publicação anual de várias obras sobre a cidade, obedecendo sempre à procura de um critério de qualidade na escolha desses trabalhos, pelo que se têm feito progressos em termos de historiografia aveirense nestes últimos anos.

Muito mais haveria a referir, nomeadamente no campo da história de arte onde o Inventário Artístico de Portugal preencheu parte de uma lacuna que existia, mas que tem vindo a ser complementada por recentes trabalhos sobre a arte de Aveiro(14); no entanto a exiguidade de espaço a que nos devemos aqui limitar obrigou-me a seleccionar somente as obras mais destacadas; o mesmo se poderá afirmar em relação a um imenso leque de bibliografia especializada em determinadas áreas, cuja consulta e estudo se tornam indispensáveis à compreensão da vila e à reconstituição de certos traços do seu viver que só se podem visualizar se se puder integrar o seu desenvolvimento em movimentos e tendências mais englobantes; para uma mais profunda abordagem da busca bibliográfica permito-me remeter para a bibliografia a apresentar no meu trabalho sobre Aveiro.

Página da escritura de doação da Condessa Mumadona Dias, onde se encontra a referência a Aveiro (penúltima linha), na transcrição do Cartulário do século XIII, conhecido por «Livro de Mumadona» e outrora pertencente à Colegiada de Guimarães (A.N.T.T.). / 33 /

 No que respeita à sondagem arquivística, a documentação respeitante a Aveiro encontra-se, na sua maioria, em Lisboa, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, dispersa pelos núcleos das Chancelarias, Leitura Nova, Corpo Cronológico, Gavetas e Cartórios de alguns mosteiros que detiveram bens na vila, como é o caso dos núcleos de Celas de Coimbra, Santa Cruz de Coimbra, Sé de Coimbra e Lorvão. S. João de Tarouca, que em tempos foi senhor de dois terços de Aveiro, viu a sua documentação resumida ao que foi copiado nas chancelarias, pois o seu núcleo mais importante perdeu-se.

Também em Coimbra existem elementos para a história da nossa cidade, patente, na sua maioria, no fundo do Mosteiro de Jesus de Aveiro existente no Arquivo da Universidade: um núcleo de Maços de Pergaminho constituído por seis gavetas de emprazamentos e aforamentos trazem luz a uma parte da vila que nos seria desconhecida de outro modo. Ainda no mesmo Arquivo, no fundo do Mosteiro de Santa Maria da Misericórdia de Aveiro, se podem encontrar, em cópias do séc. XVII, alusões e dados muito elucidativos em certos aspectos. Ainda em Coimbra, mas com menos importância, existem na Biblioteca da Universidade pergaminhos de índole variada, cartas régias sobre problemas relativos à cidade e ainda alguns documentos do Livro Vermelho de D. Afonso V de consulta indispensável. Também o Arquivo da Câmara Municipal de Coimbra possui certas cartas do século XV, das Chancelarias dos infantes, que nos podem interessar.

No Porto, o Gabinete de História do Porto possui, nos Livros de Pergaminhos e no Livro Antigo de Cartas e Provisões dos Srs. Reys D. Afonso V e D. João II, referências a Aveiro em documentação normativa.

Em Aveiro, fruto de incêndios no edifício onde se guardavam os documentos, fruto ainda de várias «limpezas» levadas a cabo nos cartórios de igrejas já desaparecidas, só restam quatro documentos respeitantes à Idade Média, que são três pergaminhos de D. Manuel com sentenças e um outro do séc. XIV, treslado de cartas de D. Fernando sobre besteiros do conto. O Arquivo do Museu Nacional de Aveiro também escasseia em documentação para esta época; no entanto, no livro de Registos da Câmara da Vila de Aveiro, do século XVII, podem encontrar-se cópias de documentos do século XIV e XV, que nos dão elementos para a reconstrução da vila. Patente neste arquivo está ainda a Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro, obra inestimável para o retraçar da vivência cultural, religiosa e social da vila do século XV, bem como as Constituições pelas quais se regia o Mosteiro, e algumas cartas e um testamento. Como já vimos, estes valiosíssimos documentos já foram felizmente publicados.

Arquivos particulares, como o da Casa de Rocha Madahil de Ílhavo ou da Casa da Oliveirinha ou dos condes de Camarido, embora quase inacessíveis, possuem ainda elementos sobre a vila, quer em originais quer em cópias setecentistas e oitocentistas, cuja fiabilidade pode ser posta em dúvida nalguns casos.

Foram estes os fundos com pulsados em que encontrei documentação sobre a Aveiro Medieval; evidentemente que não tenho a pretensão – sempre falsa – de ter esgotado exaustivamente todos os fundos documentais onde pudessem existir vestígios desta vivência. Limitei-me a tentar, dentro do possível, ser o mais exaustiva que esteve ao meu alcance.

* * *

Da análise da massa documental recolhida, Que alcança as várias centenas de espécies, foi-me / 34 / possível a tentativa de reconstrução deste agregado urbano. Cabe agora perguntar da importância que os diversos tipos de documentação disponível puderam ter na elaboração do produto final, que o mesmo é dizer, cabe agora tentar explicitar a utilidade que cada tipo de testemunho do passado pode ter para nós e que dados podemos tirar da sua análise.

Estes núcleos, aparentemente tão variados, contêm documentação semelhante, sob o ponto de vista tipológico, composta de doações régias, privilégios e isenções, confirmações, escambos, aforamentos, emprazamentos, vendas, compras, licenças de alargamento ou início de certas actividades ou construções, actas de cortes, forais, cartas régias e outros.

Referiremos em primeiro lugar os aforamentos e emprazamentos, documentos muito comuns e aparentemente pouco importantes, que na realidade são dos documentos mais férteis em termos de campos de análise que proporcionam.

Dum aforamento ou emprazamento consta normalmente a notação do bem aforado ou emprazado, a sua localização ou descrição, o nome dos contractantes, o foro ou renda pagos e o nome das testemunhas, para além da notação dos tabeliães ou escrivães. Vejamos pois o bem aforado: casais, casas e eixidos, hortas, fornos, azenhas, lagares, moinhos, marinhas de sal, lojas; o estudo comparativo do crescimento do número de aforamentos de determinado tipo de bens ou de outro pode ser um indício do crescente interesse neste ou naquele tipo de propriedade e, consequentemente, da mudança no modo de vida, economia, sociedade, enfim, de mentalidade a que a cidade vai assistindo. Meras escrituras de arrendamento, elas podem dar-nos, quando o seu número é suficiente, pela indicação das confrontações, não só a topografia da cidade, como ainda a rede de estradas e a organização social da vila em termos de distribuição das várias camadas sociais pela cidade. Geralmente os contractantes identificam-se, permitindo-nos assim saber a que grupo social pertencem, e que tipo de foreiros ou arrendatários são, pela simples notação da sua profissão ou estatuto social, ou mesmo pela mera referência ao tipo de trabalho que se espera do foreiro. O conhecimento dos grupos sociais quer dos foreiros quer dos aforadores (e o mesmo é válido para os emprazamentos) permite ainda detectar estratégias de domínio dentro do agregado urbano, a variarem com as épocas, nomeadamente quando dentro do próprio corpo do aforamento existem cláusulas restritivas quanto à transmissão de propriedade e quanto ao estatuto social do foreiro dever ser sempre o mesmo. A distribuição da propriedade resulta por isso tanto mais clara quanto maior for o número de aforamentos que possuirmos sobre a cidade; no caso de Aveiro, podemos fazer este estudo por «ilhas», zonas em relação às quais temos abundância destes documentos, mas não em relação a todos os locais.

O foro a pagar é outro elemento importante pois o seu crescimento ou diminuição, o tipo de pagamento pedido (em género ou espécie), pode também por seu turno indicar crescimento económico, valorização de um tipo de propriedade em relação a outros, uma progressiva monetarização da vida da cidade ou não.

A anotação das testemunhas tem importância para a história social, para estudos demográficos que considerem o crescimento relativo do seu número, e até para estudo da administração pelo conhecimento que proporciona da existência de determinados funcionários e do número mínimo destes. O seu nome, patronímico e apelido, tantas vezes referidos, podem indicar movimentos migratórios, / 35 /  proveniência social e até características físicas ou mentais veiculadas pelos apelidos; a anotação das suas profissões permite-nos conhecer a sua existência de uma forma que de outra maneira seria impossível, e a reconstrução parcial do quadro social e até certo limite administrativo da vila; a referência a determinado número de funcionários em determinado documento atesta, por exemplo, da existência de pelo menos aquele número, e estes dados comparados com outros semelhantes em momentos diferentes podem indicar crescimentos e diminuições demográficas, se tivermos em conta que, por exemplo no caso dos tabeliães, estes existem num número proporcional ao número de habitantes de cada núcleo populacional.

A importância desta documentação cresce em relação ao seu número, sendo que um número restrito de aforamentos, ou a variedade muito grande na forma que assumem, podem alterar os dados a reter.

Os escambos, trocas de uma propriedade por outra, bem como as vendas e compras fornecem dados semelhantes aos aduzidos pelos aforamentos e emprazamentos; permitem também e sobretudo avaliar o interesse que certas regiões e tipos de propriedade têm para certas instituições, ou mesmo para particulares, e nessa medida reflectem crescimentos económicos, preferências por certas localidades e nítidas vontades de criar zonas de influência de certos poderes. As compras e vendas permitem ainda avaliar o valor relativo dos diversos tipos de propriedade, bem como o seu valor absoluto.

As doações régias, como os privilégios e isenções, são uma parte não despicienda da documentação; contemplando todos os grupos sociais, esta documentação permite observar as estratégias do poder central em termos de fomento de regiões ou delimitação de poderes. Com efeito, é conveniente procurar sempre compreender a concessão de um privilégio dentro da conjuntura em que surge, pois normalmente reflecte sempre uma intenção subjacente, quer ela seja garantir melhores / 36 / condições aos povoadores daquela zona (despovoada por que razões, que se quer povoar ou repovoar por que factores) ou conceder isenções ou privilégios a determinados grupos para limitar os poderes a outros. As concessões de privilégios ou doações a particulares devem ser encaradas doutro modo e reflectem a confiança do monarca ou o interesse em beneficiar alguém. A concessão destas benesses a funcionários da administração central ou local são também mais uma achega para a reconstrução dessa estrutura.

Inquirições e forais são documentos essencialmente fiscais; se as primeiras estabelecem um utilíssimo cadastro da propriedade rural, os segundos dão-nos sobretudo a fiscal idade citadina, o que neste caso é notório, pois só dispomos do foral manuelino de Aveiro.

Outra documentação de inestimável valor são, sem dúvida, os capítulos de cortes. Através dos relatórios das representações dos procuradores do concelho às cortes, temos acesso a descrições detalhadas dos problemas que afligem a população da vila, por testemunhos directos. Todo um rosário de conflitos sociais e económicos, de lutas pelo domínio económico, de abusos dos funcionários administrativos, de descrições que nos auxiliam na compreensão de aspectos tão variados como a rede de vias que ligava Aveiro ao exterior e as ambições e usos dos comerciantes da cidade podem ser analisadas a partir desta deliciosa fonte. Os capítulos de cortes costumam proporcionar a base conjuntural para o enquadramento de dados dispersos pelo conjunto do resto da documentação, dando-lhes mais vida, alegria e no fundo realidade.

Colorido e vivacidade é o mínimo que se pode dizer do contributo que dão ao estudo de Aveiro três documentos esplêndidos que são apanágio do espólio desta cidade: trata-se da Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro, das Constituições que regem o mesmo cenóbio e do Tombo da confraria dos pescadores de Aveiro. Requerem tratamento diferente todas as três, mas têm de comum o darem à cidade uma dimensão que normalmente nos escapa. O Tombo da confraria, com os seus preciosos estatutos quatrocentistas, permite-nos reviver a organização que este grupo social assumia e a força e influência que exercia, bem como os meios pelos quais o fazia.

Quanto às Constituições por que se rege o Mosteiro de Jesus de Aveiro é um documento raríssimo, pois embora saibamos que cada casa tinha uma regra interna, adaptada da regra por que se regiam, raramente se conhece a própria. Neste caso esse documento, normativo, permite-nos uma abordagem da vida quotidiana das monjas ou pelo menos das regras que as regiam que não corre o risco de ser deturpada pela visão encomiástica do redactor.

Já o mesmo se não pode dizer da Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro, feita nos começos do século XVI por uma freira que tinha sido testemunha ocular de grande parte da história anterior do mosteiro e a quem tinham contado a parte que não presenciaria. Este documento, elaborado por uma freira, tendo dos acontecimentos uma visão muito parcial, requer um estudo mais crítico, pois temos de ter cuidado uma vez que estamos a ser postos face à sua [dela] realidade, vista pelos seus olhos, e filtrada pelas suas ideias e conceitos de bem, rectidão, virtude e moral. No fundo, o seu relato é fruto da sua própria visão do mundo e não ditado por formulários normativos ou minutas sobre como escrever um testamento, um emprazamento ou mesmo um foral. A riqueza interior que nos é dado sondar é também um perigo e é com estas reservas que temos de considerar o que nos é dito, não deixando porém de considerar que este documento é também um testemunho do posicionamento mental de determinada camada populacional da Aveiro da época. A religiosidade é assim um ponto sobre o qual possuímos mais dados que usualmente.

Foi com estes pressupostos metodológicos e com esta documentação que procurei construir o meu trabalho sobre Aveiro Medieval, procurando sempre tomar uma posição crítica em relação à documentação e ao que ela pudesse enfermar de susceptível de me induzir em erro. Pareceu-me indispensável tentar saber relacionar, equacionando-os uns com os outros, os dados que a documentação proporcionava, sem nunca perder de vista a indispensável correlação com elementos retirados de estudos similares e especializados, para tentar dar-lhes uma coerência inteligível.

Tudo isto sem nunca esquecer a gratidão que a estes testemunhos do passado devo; é que, no fundo, apesar de a massa documental compulsada ser, em si, incapaz de veicular uma imagem inteligível da vida, apesar de a tarefa de os tornar compreensíveis (razão de ser da existência de qualquer historiador) ser minha, a reconstrução de Aveiro Medieval, afinal, é fruto da existência da documentação e não da minha...

Maria João Violante Branco Marques da Silva

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Notas:

(1) – Nomeadamente as bibliografias apresentadas por FIGUEIREDO, Antero Mesquita de – Subsídios para a Bibliografia da História local Portuguesa, Lisboa, Henrique Torres, 1933. LAUTENSACH, Herman – Bibliografia geográfica de Portugal, Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, 1948;

LIMA, Durval Pires de – Bibliografia Corográfica de Portugal, Lisboa, Bib. Pop., 1962.

(2) – A título de exemplo podemos indicar de entre os mais significativos AMARAL FRAZÃO, A. C. – Novo Diccionário Corográfico de Portugal, Porto, Domingos Barreira, s.d.; CARDOSO, Luís – Diccionário geográfico ou noticia histórica de todas as cidades, Lisboa, Regia Oficina Sylviana, 1747-51; CASTRO, João Bautista de – Mappa de Portugal Antigo e Moderno, 3 vols., Lisboa, Patriarcal, 1763; COSTA, Américo – Diccionário Chorográfico de Portugal Continental e Insular, Porto, Typ. Domingos de Oliveira, 1929; LIMA, Batista de – Terras Portuguesas, Arquivo Histórico e Corográfico, Póvoa do Varzim, ed. Camões, 1932; PINHO LEAL, A. S. AB. – Portugal Antigo e Moderno, Lisboa, ed. Matos Moreira, 1873, e ainda, no que se refere aos dicionários etimológicos e obras de etimologia, MACHADO, José Pedro – Diccionário Etimológico da Língua Portuguesa, 3.ª ed., Lisboa, livros Horizonte, 1977, bem como NEVES, F. F. – Origem e etimologia de Aveiro, Fig.ª da Foz, Popular, 1936, e SERRA, Pedro Cunha e – "Toponómios do Distrito de Aveiro.., separatas do AD.A., Aveiro, Coimbra ed., 1960, 1966, 1967,1968,1970,1971,1973.

(3) – Cf. Colectânea de recortes de jornal, reunidos pelo padre João Gaspar, fotocopiados e encadernados, VII vols., Bib. Câmara Municipal de Aveiro, s.d.

(4) – Especialmente nos seus dois livros: Memórias de Aveiro, Aveiro, typ. Comercial, 1875, e Subsidios para a história de Aveiro, Aveiro, typ. Campeão das Províncias, 1899.

(5) – Cf. NEVES, Francisco Ferreira –, MADAHIL, António Rocha –, TAVARES, José (drs.), “Arquivo do Distrito de Aveiro”, vols. I-XLII, Aveiro, Coimbra ed., 1935-1976.

(6) – Trata-se da publicação da Câmara, levada a cabo por ROCHA MADAHIL, Milenário de Aveiro, colectânea de documentos históricos, vol. I (959-1516), Aveiro, Câmara Municipal, 1959.

(7) – Cf. MADAHIL, A G. Rocha – Crónica da fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro e memorial da Infanta Santa Joana, filha del Rey D. Afonso V, Aveiro, ed. F. F. Neves, 1939.

(8) – Cf. IDEM. Constituições que no século XV regeram o mosteiro de Jesus de Aveiro, na ordem de S. Domingos, separata do Arquivo do Distrito de Aveiro, Aveiro, 1951.

(9) – Cf. IDEM, Livro dos títulos do Convento de S. Domingos da cidade de Aveiro, séculos XV a XVIII, Coimbra, ofic. Gráficas, 1961.

(10) – Cf. NEVES, Francisco Ferreira – A Confraria dos pescadores e mareantes de Aveiro (1200-1855).. in A D.A. , n.º 156, vol. XXXIX, 1973, pp. 240-278.

(11) – Cf. MAURICIO, Domingos – O Mosteiro de Jesus de Aveiro, vol. I e II, Lisboa, Companhia de Diamantes de Angola, 1963, 1967.

(12) – Cf. GASPAR, João Gonçalves, Aveiro, notas históricas, Aveiro, Câmara Municipal, 1983.

(13) – Cf. Idem e CHRISTO, Ant.º – Calendário Histórico de Aveiro, Câmara Municipal, Aveiro, 1986.

(14) – É o caso de NEVES, Amaro – Aveiro, História e Arte, Aveiro, Lit. Águeda. 1984.

 

 


Em face do propósito decidido da Princesa Santa Joana em se fixar em Aveiro (em cujo Mosteiro de Jesus acabaria por entrar no dia 4 de Agosto de 1472) ...«O Príncipe seu Irmão e sua Tia e os outros Senhores com grande ímpeto e desprazer trabalhavam por embargar a ida sua a tal lugar, parecendo-lhes mui pequeno e desprezível e em edifícios pobre e pouco sumptuoso para tal Princesa haver de entrar nem estar um só dia», o qual «mais parece ilha de desterro que vila; em aquele tempo era esta vila mui pobre e desapovoada de gente e moradas».

(Memorial da Princesa Santa Joana, fls. 65 v b – 66 r a)
 

 

 

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