Esboço de introdução
metodológica a um estudo sobre Aveiro Medieval
Maria João Violante
Branco Marques da Silva
(Bolseira do INIC)
Quando, no âmbito do Seminário sobre Cidades Medievais,
cadeira do meu Mestrado em História Medieval, me foi pedido que
escolhesse uma cidade para estudar, imediatamente me lembrei de Aveiro,
por a ela me ligarem razões sentimentais. Com efeito, casada com um
gafanhão muito ligado a Aveiro, acabei, naturalmente, por também muito
me interessar por esta cidade, eu que, nascida e criada em Lisboa, me
vejo considerada naquela categoria de pessoas que não têm «terra»...
Um trabalho deste tipo deve obedecer a critérios
metodológicos rigorosos, critérios sem os quais qualquer investigação
histórica carece de validade nos nossos dias. É esta a razão por que
pretendo apresentar aqui alguns dos passos fundamentais para a
realização do trabalho que me propus fazer, em termos de pesquisa
bibliográfica e documental, e ainda demonstrar a utilidade que cada um
dos tipos de documentos pode ter para o nosso objectivo em vista, isto
é, retraçar a vida da Aveiro Medieval.
Assim, como em qualquer outro estudo, devemos começar
pela sondagem bibliográfica e arquivística, de forma a definir o que já
existe publicado sobre a cidade e a dimensão da massa documental a
estudar.
No que respeita à bibliografia impressa,
devemos começar
pelas úteis e bem conhecidas obras de bibliografia regional(1),
que nos remeterão para outros trabalhos mais específicos. Outra consulta
indispensável será a dos dicionários geográfico-corográficos e
etimológicos(2), que constituem uma primeira aproximação ao tema,
preciosa, quer pelas informações e bibliografia, quer sobretudo pelas
pistas que fornecem.
Para lá destas obras mais genéricas existe variada
produção bibliográfica sobre Aveiro medievo: um leque de temas bem
diversos, que vão da geologia à etimologia, da arqueologia à genealogia
e às pequenas biografias de personagens variadas, tem sido objecto de
estudos levados a cabo pelos aveirenses com pendor mais histórico, desde
antanho, trabalhos dentre os quais se podem destacar alguns.
Do século passado, podemos salientar José Reinaldo Rangel
de Quadros Oudinot, que apesar de ter sido figura destacada da
aveirografia do fim de Oitocentos, não deixou nenhuma obra impressa
sobre a vila, tendo o seu labor vindo à luz em artigos de jornal, até há
bem pouco tempo praticamente inacessíveis; foi só devido às recentes
diligências do Padre João Gaspar que a Câmara de Aveiro conseguiu
recolher o conjunto dos artigos de jornal em volumes que, organizados
cronológica e tematicamente, nos fornecem interessantes pistas
e
referências, sobretudo no que se refere a documentação hoje em dia
desaparecida(3).
Também trabalhando documentação hoje perdida, um outro
oitocentista, Marques Gomes, elaborou uma obra muito útil, que, se bem
que deva ser tratada com certas cautelas, por alguns anacronismos e
erros em que incorre, nos fornece muitos e seguros dados sobre aspectos
da cidade que nos interessam sobremaneira, como a muralha, o comércio, a
confraria de pescadores e a sociedade medieval(4). Este trabalho
tem o grande mérito de não só procurar ter uma base documental para o
que se afirma, mas ainda, o que é muito importante, apontá-la e citá-la
frequentemente, o que lhe confere bastante rigor.
Este gosto pela história de Aveiro, que desde sempre se
sentiu, parece ter aumentado de intensidade no século seguinte e deu
origem a uma das iniciativas que mais contribuiu para o progresso
da
historiografia aveirense: o começo da publicação do Arquivo do Distrito
de Aveiro(5),
obra que, em quarenta e dois volumes publicados entre 1935 e 1976 sob a
cuidadosa direcção de Francisco Ferreira Neves, António Rocha Madahil e
José Tavares, permitiu e fomentou a produção de múltiplos estudos sobre
Aveiro. Esta publicação reveste particular interesse pela quantidade de
material recolhido, pelo cuidado que foi posto na sua selecção e pela
validade metodológica e histórica que apresenta. De entre muitos artigos
que não se dedicam às épocas medievais, destacam-se outros que buscam
cartografar topónimos, explicar a evolução geológica da região, definir
senhorios, encontrar linhagens, justificar antepassados romanos,
procurar a formação do distrito administrativo e retraçar vias, comércio
e outros viveres, podendo-se desde já inferir do interesse na sua
leitura. A preocupação com a publicação de fontes ocupou
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também estes aveirógrafos, que empreendem a tarefa de trazer à estampa
nesta mesma publicação textos tão importantes como os forais manuelinos,
os registos paroquiais, excertos dos cartórios de mosteiros e de
inquirições.
Muitas outras fontes foram publicadas, mesmo fora do
âmbito do «Arquivo», e quase sempre com o apoio da edilidade; é o caso
do Milenário de Aveiro(6), que saiu à estampa aquando das
comemorações do milenário, e que é um inestimável repositório de
documentação sobre o agregado humano.
Fruto ainda do labor científico e rigoroso de Rocha
Madahil, a quem devemos render aqui homenagem como o aveirógrafo
medievista de maior destaque, saiu, não só nesta colectânea de
documentos, mas ainda em toda uma série de publicações de textos, como o
da Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro(7), ou o
das Constituições do mesmo(8), ou o Livro
de Títulos do Mosteiro
de Santa Maria da Misericórdia de Aveiro(9). É de notar, ainda, a
publicação de excertos do Tombo da confraria de pescadores
de Aveiro,
por Francisco Ferreira Neves, que fez conhecer o documento(10),
de inestimável valor para a história deste grupo populacional, do qual,
esta publicação nos dá algum relato. Hoje em dia, e mais uma vez devido
aos esforços dedicados de Monsenhor João Gaspar, existe na Biblioteca da
Câmara Municipal de Aveiro uma fotocópia do original, que pode ser
consultada na sua totalidade.
Injusto seria não referenciar trabalhos mais recentes
como o monumental O Mosteiro de Jesus de Aveiro(11), de Domingos
Maurício, que, publicado em 1963 e 1967, nos fornece elementos sobre a
vida da vila do século XV e que, fruto da acuidade e critério que o
autor põe no seu trabalho, nos dá garantias de segurança muito grandes
na apreciação da sua obra.
Mais recentes ainda são os numerosos trabalhos de João
Gaspar, que à sua cidade de eleição tem dedicado a sua investigação
histórica, embora não a concentrando numa só época. Dos seus trabalhos
permitimo-nos destacar como de muito interesse para o nosso âmbito
cronológico a sua Aveiro, Notas Históricas(12), os trabalhos
sobre a infanta Santa Joana e a sua recentíssima publicação, de parceria
com António Christo, Calendário Histórico de Aveiro(13).
A actual vereação do pelouro cultural da Câmara Municipal
de Aveiro está a tentar modernizar e dinamizar a investigação histórica
sobre a cidade, tendo para tal começado por organizar o seu Arquivo
Municipal que foi totalmente inventariado, e publicando desde 1983 o
Boletim Municipal de Aveiro, onde, juntamente com artigos de carácter
geral, se procura sempre incluir algum sobre aspectos variados do
passado da cidade ou seu distrito. A política camarária tem vindo
ultimamente a levar a cabo a publicação anual de várias obras sobre a
cidade, obedecendo sempre à procura de um critério de qualidade na
escolha desses trabalhos, pelo que se têm feito progressos em termos de
historiografia aveirense nestes últimos anos.
Muito mais haveria a referir, nomeadamente no campo da
história de arte onde o Inventário Artístico de Portugal preencheu parte
de uma lacuna que existia, mas que tem vindo a ser complementada por
recentes trabalhos sobre a arte de Aveiro(14); no entanto a
exiguidade de espaço a que nos devemos aqui limitar obrigou-me a
seleccionar somente as obras mais destacadas; o mesmo se poderá afirmar
em relação a um imenso leque de bibliografia especializada em
determinadas áreas, cuja consulta e estudo se tornam indispensáveis à
compreensão da vila e à reconstituição de certos traços do seu viver que
só se podem visualizar se se puder integrar o seu desenvolvimento em
movimentos e tendências mais englobantes; para uma mais profunda
abordagem da busca bibliográfica permito-me remeter para a bibliografia
a apresentar no meu trabalho sobre Aveiro.
Página da escritura de doação da Condessa Mumadona Dias,
onde se encontra a referência a Aveiro (penúltima linha), na transcrição
do Cartulário do século XIII, conhecido por «Livro de Mumadona» e
outrora pertencente à Colegiada de Guimarães (A.N.T.T.).
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No
que respeita à sondagem arquivística, a documentação respeitante a
Aveiro encontra-se, na sua maioria, em Lisboa, no Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, dispersa pelos núcleos das Chancelarias, Leitura Nova,
Corpo Cronológico, Gavetas e Cartórios de alguns mosteiros que detiveram
bens na vila, como é o caso dos núcleos de Celas de Coimbra, Santa Cruz
de Coimbra, Sé de Coimbra e Lorvão. S. João de Tarouca, que em tempos
foi senhor de dois terços de Aveiro, viu a sua documentação resumida ao
que foi copiado nas chancelarias, pois o seu núcleo mais importante
perdeu-se.
Também em Coimbra existem elementos para a história da
nossa cidade, patente, na sua maioria, no fundo do Mosteiro de Jesus de
Aveiro existente no Arquivo da Universidade: um núcleo de Maços de
Pergaminho constituído por seis gavetas de emprazamentos e aforamentos
trazem luz a uma parte da vila que nos seria desconhecida de outro modo.
Ainda no mesmo Arquivo, no fundo do Mosteiro de Santa Maria da
Misericórdia de Aveiro, se podem encontrar, em cópias do séc. XVII,
alusões e dados muito elucidativos em certos aspectos. Ainda em Coimbra,
mas com menos importância, existem na Biblioteca da Universidade
pergaminhos de índole variada, cartas régias sobre problemas relativos à
cidade e ainda alguns documentos do Livro Vermelho de D. Afonso V de
consulta indispensável. Também o Arquivo da Câmara Municipal de Coimbra
possui certas cartas do século XV, das Chancelarias dos infantes, que
nos podem interessar.
No Porto, o Gabinete de História do Porto possui, nos
Livros de Pergaminhos e no Livro Antigo de Cartas e Provisões dos Srs.
Reys D. Afonso V e D. João II, referências a Aveiro em documentação
normativa.
Em Aveiro, fruto de incêndios no edifício onde se
guardavam os documentos, fruto ainda de várias «limpezas» levadas a cabo
nos cartórios de igrejas já desaparecidas, só restam quatro documentos
respeitantes à Idade Média, que são três pergaminhos de D. Manuel com
sentenças e um outro do séc. XIV, treslado de cartas de D. Fernando
sobre besteiros do conto. O Arquivo do Museu Nacional de Aveiro também
escasseia em documentação para esta época; no entanto, no livro de
Registos da Câmara da Vila de Aveiro, do século XVII, podem encontrar-se
cópias de documentos do século XIV e XV, que nos dão elementos para a
reconstrução da vila. Patente neste arquivo está ainda a Crónica da
Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro, obra inestimável para o
retraçar da vivência cultural, religiosa e social da vila do século XV,
bem como as Constituições pelas quais se regia o Mosteiro, e algumas
cartas e um testamento. Como já vimos, estes valiosíssimos documentos já
foram felizmente publicados.
Arquivos particulares, como o da Casa de Rocha Madahil de
Ílhavo ou da Casa da Oliveirinha ou dos condes de Camarido, embora quase
inacessíveis, possuem ainda elementos sobre a vila, quer em originais
quer em cópias setecentistas e oitocentistas, cuja fiabilidade pode ser
posta em dúvida nalguns casos.
Foram estes os fundos com pulsados em que encontrei
documentação sobre a Aveiro Medieval; evidentemente que não tenho a
pretensão – sempre falsa – de ter esgotado exaustivamente todos os
fundos documentais onde pudessem existir vestígios desta vivência.
Limitei-me a tentar, dentro do possível, ser o mais exaustiva que esteve
ao meu alcance.
* * *
Da análise da massa documental recolhida, Que alcança as
várias centenas de espécies, foi-me
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possível a tentativa de reconstrução deste agregado urbano. Cabe agora
perguntar da importância que os diversos tipos de documentação
disponível puderam ter na elaboração do produto final, que o mesmo é
dizer, cabe agora tentar explicitar a utilidade que cada tipo de
testemunho do passado pode ter para nós e que dados podemos tirar da sua
análise.
Estes núcleos, aparentemente tão variados, contêm
documentação semelhante, sob o ponto de vista tipológico, composta de
doações régias, privilégios e isenções, confirmações, escambos,
aforamentos, emprazamentos, vendas, compras, licenças de alargamento ou
início de certas actividades ou construções, actas de cortes, forais,
cartas régias e outros.
Referiremos em primeiro lugar os aforamentos e
emprazamentos, documentos muito comuns e aparentemente pouco
importantes, que na realidade são dos documentos mais férteis em termos
de campos de análise que proporcionam.
Dum aforamento ou emprazamento consta normalmente a
notação do bem aforado ou emprazado, a sua localização ou descrição, o
nome dos contractantes, o foro ou renda pagos e o nome das testemunhas,
para além da notação dos tabeliães ou escrivães. Vejamos pois o bem
aforado: casais, casas e eixidos, hortas, fornos, azenhas, lagares,
moinhos, marinhas de sal, lojas; o estudo comparativo do crescimento do
número de aforamentos de determinado tipo de bens ou de outro pode ser
um indício do crescente interesse neste ou naquele tipo de propriedade
e, consequentemente, da mudança no modo de vida, economia, sociedade,
enfim, de mentalidade a que a cidade vai assistindo. Meras escrituras de
arrendamento, elas podem dar-nos, quando o seu número é suficiente, pela
indicação das confrontações, não só a topografia da cidade, como ainda a
rede de estradas e a organização social da vila em termos de
distribuição das várias camadas sociais pela cidade. Geralmente os
contractantes identificam-se, permitindo-nos assim saber a que grupo
social pertencem, e que tipo de foreiros ou arrendatários são, pela
simples notação da sua profissão ou estatuto social, ou mesmo pela mera
referência ao tipo de trabalho que se espera do foreiro. O conhecimento
dos grupos sociais quer dos foreiros quer dos aforadores (e o mesmo é
válido para os emprazamentos) permite ainda detectar estratégias de
domínio dentro do agregado urbano, a variarem com as épocas,
nomeadamente quando dentro do próprio corpo do aforamento existem
cláusulas restritivas quanto à transmissão de propriedade e quanto ao
estatuto social do foreiro dever ser sempre o mesmo. A distribuição da
propriedade resulta por isso tanto mais clara quanto maior for o número
de aforamentos que possuirmos sobre a cidade; no caso de Aveiro, podemos
fazer este estudo por «ilhas», zonas em relação às quais temos
abundância destes documentos, mas não em relação a todos os locais.
O foro a pagar é outro elemento importante pois o seu
crescimento ou diminuição, o tipo de pagamento pedido (em género ou
espécie), pode também por seu turno indicar crescimento económico,
valorização de um tipo de propriedade em relação a outros, uma
progressiva monetarização da vida da cidade ou não.
A anotação das testemunhas tem importância para a
história social, para estudos demográficos que considerem o crescimento
relativo do seu número, e até para estudo da administração pelo
conhecimento que proporciona da existência de determinados funcionários
e do número mínimo destes. O seu nome, patronímico e apelido, tantas
vezes referidos, podem indicar movimentos migratórios,
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proveniência social e até características físicas ou
mentais veiculadas pelos apelidos; a anotação das suas
profissões
permite-nos conhecer a sua existência de uma forma que de outra maneira
seria impossível, e a reconstrução parcial do quadro social e até certo
limite administrativo da vila; a referência a determinado número de
funcionários em determinado documento atesta, por exemplo, da existência
de pelo menos aquele número, e estes dados comparados com outros
semelhantes em momentos diferentes podem indicar crescimentos e
diminuições demográficas, se tivermos em conta que, por exemplo no caso
dos tabeliães, estes existem num número proporcional ao número de
habitantes de cada núcleo populacional.
A importância desta documentação cresce em relação ao seu
número, sendo que um número restrito de aforamentos, ou a variedade
muito grande na forma que assumem, podem alterar os dados a reter.
Os escambos, trocas de uma propriedade por outra, bem
como as vendas e compras fornecem dados semelhantes aos aduzidos pelos
aforamentos e emprazamentos; permitem também e sobretudo avaliar o
interesse que certas regiões e tipos de propriedade têm para certas
instituições, ou mesmo para particulares, e nessa medida reflectem
crescimentos económicos, preferências por certas localidades e nítidas
vontades de criar zonas de influência de certos poderes. As compras e
vendas permitem ainda avaliar o valor relativo dos diversos tipos de
propriedade, bem como o seu valor absoluto.
As doações régias, como os privilégios e isenções, são
uma parte não despicienda da documentação; contemplando todos os grupos
sociais, esta documentação permite observar as estratégias do poder
central em termos de fomento de regiões ou delimitação de poderes. Com
efeito, é conveniente procurar sempre compreender a concessão de um
privilégio dentro da conjuntura em que surge, pois normalmente reflecte
sempre uma intenção subjacente, quer ela seja garantir melhores
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condições aos povoadores daquela zona (despovoada por que razões, que se
quer povoar ou repovoar por que factores) ou conceder isenções ou
privilégios a determinados grupos para limitar os poderes a outros. As
concessões de privilégios ou doações a particulares devem ser encaradas
doutro modo e reflectem a confiança do monarca ou o interesse em
beneficiar alguém. A concessão destas benesses a funcionários da
administração central ou local são também mais uma achega para a
reconstrução dessa estrutura.
Inquirições e forais são documentos essencialmente
fiscais; se as primeiras estabelecem um utilíssimo cadastro da
propriedade rural, os segundos dão-nos sobretudo a fiscal idade
citadina, o que neste caso é notório, pois só dispomos do foral
manuelino de Aveiro.
Outra documentação de inestimável valor são, sem dúvida,
os capítulos de cortes. Através dos relatórios das representações dos
procuradores do concelho às cortes, temos acesso a descrições detalhadas
dos problemas que afligem a população da vila, por testemunhos directos.
Todo um rosário de conflitos sociais e económicos, de lutas pelo domínio
económico, de abusos dos funcionários administrativos, de descrições que
nos auxiliam na compreensão de aspectos tão variados como a rede de vias
que ligava Aveiro ao exterior e as ambições e usos dos comerciantes da
cidade podem ser analisadas a partir desta deliciosa fonte. Os capítulos
de cortes costumam proporcionar a base conjuntural para o enquadramento
de dados dispersos pelo conjunto do resto da documentação, dando-lhes
mais vida, alegria e no fundo realidade.
Colorido e vivacidade é o mínimo que se pode dizer do
contributo que dão ao estudo de Aveiro três documentos esplêndidos que
são apanágio do espólio desta cidade: trata-se da Crónica da Fundação do
Mosteiro de Jesus de Aveiro, das Constituições que regem o mesmo cenóbio
e do Tombo da confraria dos pescadores de Aveiro. Requerem tratamento
diferente todas as três, mas têm de comum o darem à cidade uma dimensão
que normalmente nos escapa. O Tombo da confraria, com os seus preciosos
estatutos quatrocentistas, permite-nos reviver a organização que este
grupo social assumia e a força e influência que exercia, bem como os
meios pelos quais o fazia.
Quanto às Constituições por que se rege o Mosteiro de
Jesus de Aveiro é um documento raríssimo, pois embora saibamos que cada
casa tinha uma regra interna, adaptada da regra por que se regiam,
raramente se conhece a própria. Neste caso esse documento, normativo,
permite-nos uma abordagem da vida quotidiana das monjas ou pelo menos
das regras que as regiam que não corre o risco de ser deturpada pela
visão encomiástica do redactor.
Já o mesmo se não pode dizer da Crónica da Fundação do
Mosteiro de Jesus de Aveiro, feita nos começos do século XVI por uma
freira que tinha sido testemunha ocular de grande parte da história
anterior do mosteiro e a quem tinham contado a parte que não
presenciaria. Este documento, elaborado por uma freira, tendo dos
acontecimentos uma visão muito parcial, requer um estudo mais crítico,
pois temos de ter cuidado uma vez que estamos a ser postos face à sua
[dela] realidade, vista pelos seus olhos, e filtrada pelas suas ideias e
conceitos de bem, rectidão, virtude e moral. No fundo, o seu relato é
fruto da sua própria visão do mundo e não ditado por formulários
normativos ou minutas sobre como escrever um testamento, um emprazamento
ou mesmo um foral. A riqueza interior que nos é dado sondar é também um
perigo e é com estas reservas que temos de considerar o que nos é dito,
não deixando porém de considerar que este documento é também um
testemunho do posicionamento mental de determinada camada populacional
da Aveiro da época. A religiosidade é assim um ponto sobre o qual
possuímos mais dados que usualmente.
Foi com estes pressupostos metodológicos e com esta
documentação que procurei construir o meu trabalho sobre Aveiro
Medieval, procurando sempre tomar uma posição crítica em relação à
documentação e ao que ela pudesse enfermar de susceptível de me induzir
em erro. Pareceu-me indispensável tentar saber relacionar,
equacionando-os uns com os outros, os dados que a documentação
proporcionava, sem nunca perder de vista a indispensável correlação com
elementos retirados de estudos similares e especializados, para tentar
dar-lhes uma coerência inteligível.
Tudo isto sem nunca esquecer a gratidão que a estes
testemunhos do passado devo; é que, no fundo, apesar de a massa
documental compulsada ser, em si, incapaz de veicular uma imagem
inteligível da vida, apesar de a tarefa de os tornar compreensíveis
(razão de ser da existência de qualquer historiador) ser minha, a
reconstrução de Aveiro Medieval, afinal, é fruto da existência da
documentação e não da minha...
Maria João Violante Branco Marques da Silva
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Notas:
(1)
– Nomeadamente as bibliografias apresentadas por FIGUEIREDO, Antero
Mesquita de – Subsídios para a Bibliografia da História local
Portuguesa, Lisboa, Henrique Torres, 1933. LAUTENSACH, Herman –
Bibliografia geográfica de Portugal, Lisboa, Centro de Estudos
Geográficos, 1948;
LIMA, Durval Pires de – Bibliografia Corográfica de
Portugal, Lisboa, Bib. Pop., 1962.
(2)
– A título de exemplo podemos indicar de entre os mais significativos
AMARAL FRAZÃO, A. C. – Novo Diccionário Corográfico de Portugal,
Porto, Domingos Barreira, s.d.; CARDOSO, Luís – Diccionário
geográfico ou noticia histórica de todas as cidades, Lisboa, Regia
Oficina Sylviana, 1747-51; CASTRO, João Bautista de – Mappa de
Portugal Antigo e Moderno, 3 vols., Lisboa, Patriarcal, 1763; COSTA,
Américo – Diccionário Chorográfico de Portugal Continental e Insular,
Porto, Typ. Domingos de Oliveira, 1929; LIMA, Batista de – Terras
Portuguesas, Arquivo Histórico e Corográfico, Póvoa do Varzim, ed.
Camões, 1932; PINHO LEAL, A. S. AB. – Portugal Antigo e Moderno,
Lisboa, ed. Matos Moreira, 1873, e ainda, no que se refere aos
dicionários etimológicos e obras de etimologia, MACHADO, José Pedro –
Diccionário Etimológico da Língua Portuguesa, 3.ª ed., Lisboa,
livros Horizonte, 1977, bem como NEVES, F. F. – Origem e etimologia
de Aveiro, Fig.ª da Foz, Popular, 1936, e SERRA, Pedro Cunha e – "Toponómios
do Distrito de Aveiro.., separatas do AD.A., Aveiro, Coimbra ed.,
1960, 1966, 1967,1968,1970,1971,1973.
(3)
– Cf. Colectânea de recortes de jornal, reunidos pelo padre João Gaspar,
fotocopiados e encadernados, VII vols., Bib. Câmara Municipal de Aveiro,
s.d.
(4)
– Especialmente nos seus dois livros: Memórias de Aveiro, Aveiro, typ.
Comercial, 1875, e Subsidios para a história de Aveiro, Aveiro, typ.
Campeão das Províncias, 1899.
(5)
– Cf. NEVES, Francisco Ferreira –, MADAHIL, António Rocha –, TAVARES,
José (drs.), “Arquivo do Distrito de Aveiro”, vols. I-XLII, Aveiro,
Coimbra ed., 1935-1976.
(6)
– Trata-se da publicação da Câmara, levada a cabo por ROCHA MADAHIL,
Milenário de Aveiro, colectânea de documentos históricos, vol. I
(959-1516), Aveiro, Câmara Municipal, 1959.
(7)
– Cf. MADAHIL, A G. Rocha – Crónica da fundação do Mosteiro de Jesus
de Aveiro e memorial da Infanta Santa Joana, filha del Rey D. Afonso V,
Aveiro, ed. F. F. Neves, 1939.
(8)
– Cf. IDEM. Constituições que no século XV regeram o mosteiro de
Jesus de Aveiro, na ordem de S. Domingos, separata do Arquivo do
Distrito de Aveiro, Aveiro, 1951.
(9)
– Cf. IDEM, Livro dos títulos do Convento de S. Domingos da cidade de
Aveiro, séculos XV a XVIII, Coimbra, ofic. Gráficas, 1961.
(10)
– Cf. NEVES, Francisco Ferreira – A Confraria dos pescadores e
mareantes de Aveiro (1200-1855).. in A D.A. , n.º 156, vol. XXXIX,
1973, pp. 240-278.
(11)
– Cf. MAURICIO, Domingos – O Mosteiro de Jesus de Aveiro, vol. I
e II, Lisboa, Companhia de Diamantes de Angola, 1963, 1967.
(12)
– Cf. GASPAR, João Gonçalves, Aveiro, notas históricas, Aveiro,
Câmara Municipal, 1983.
(13)
– Cf. Idem e CHRISTO, Ant.º – Calendário Histórico de Aveiro,
Câmara Municipal, Aveiro, 1986.
(14)
– É o caso de NEVES, Amaro – Aveiro, História e Arte, Aveiro, Lit.
Águeda. 1984.
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Em face do propósito decidido da Princesa Santa Joana em se
fixar em Aveiro (em cujo Mosteiro de Jesus acabaria por entrar
no dia 4 de Agosto de 1472) ...«O Príncipe seu Irmão e sua Tia e
os outros Senhores com grande ímpeto e desprazer trabalhavam por
embargar a ida sua a tal lugar, parecendo-lhes mui pequeno e
desprezível e em edifícios pobre e pouco sumptuoso para tal
Princesa haver de entrar nem estar um só dia», o qual «mais
parece ilha de desterro que vila; em aquele tempo era esta vila
mui pobre e desapovoada de gente e moradas».
(Memorial da Princesa Santa Joana, fls. 65
v b – 66 r a)
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