Aveiro "Empório do
Sal"
numa evocação de
António Sérgio
Por Júlio de Sousa
Martins
Na "Introdução Geográfica-Sociológica à História
de Portugal", de António Sérgio, Aveiro ocupa lugar de destaque,
que melhor se compreende se recordarmos a perspectivação que o autor
entende dever ser a da nossa História, e que aqui exprimimos nas
suas próprias palavras: "(...) actuou na formação e consolidação da
Grei um factor cosmopolita e comercial-burguês, apoiado sobretudo na
pescaria e no sal e não na exportação de produtos agrícolas". E
ainda: "Se não erro muito (...), base agrícola à navegação da Grei
só existiu com vulto (...) com o açúcar que nos vinha do Brasil.
Propendemos a crer que na Idade Média o mais importante da
exportação do País consistiu em riquezas que do mar se tiravam. Ao
que se nos antolha, nunca esteve na terra mas sim no Oceano (e na
riqueza buscada pela via marítima) o mais forte esteio da vitalidade
da Pátria. Continuidade, portanto, da 1.ª dinastia para a 2.ª, como
temos aventado desde há muito, em oposição a tese da monarquia
agrária".
Começa, pois, a entender-se a razão da importância
por António Sérgio implicitamente atribuída a Aveiro, que lhe
mereceu, na obra em destaque, dezenas de referências, como, por
exemplo: "(...) a condição geográfica na criação e expansão da nação
portuguesa como corpo político independente foi o significado
topográfico dos nossos portos para a actividade marítima-comercial'
europeia unido ao valor das costas e das condições do clima para a
obtenção da riqueza tirada do mar (pescarias, sal)".
Já em 1930, Silvério Ribeiro da Rocha e Cunha, no seu
"Relance da História Económica de Aveiro", salientava a
importância dessa tese de António Sérgio, citando a seguinte
passagem, a propósito da função dos portos na fase da vida da
nacionalidade que procedeu os Descobrimentos: "Os portos eram mais
numerosos do que hoje, e constituíam uma escala indispensável entre
o Norte e o Sul da Europa. Daí proveio a formação no litoral de uma
burguesia cosmopolita, oposta em mentalidade e interesse aos
senhores rurais do interior. O antagonismo entre a burguesia
comercial marítima e os senhores do interior teve uma participação
importantíssima na evolução da sociedade. As cruzadas do século XI
promoveram o desenvolvimento dos portos e portanto a não
incorporação de Portugal no todo político a que presidia Castela".
E prossegue Silvério da Rocha e Cunha: "A teoria de António Sérgio
corresponde incontestavelmente à evidência dos factos. Ela explica a
formação da vila de Aveiro, e da sua psicologia especial em
qualidades e defeitos, que a distinguem ainda hoje das outras
povoações da região. Uma corrente comercial, se representa
materialmente um intercâmbio de mercadorias, representa também
espiritualmente um intercâmbio de ideias de civilizações diferentes.
O contacto que essa corrente estabeleceu com os povos do Norte,
sobretudo ingleses, flamengos, holandeses, a larga permanência de
elementos destes povos na própria vila, imprimiram à burguesia
aveirense um carácter e uma mentalidade diferente das outras
populações, que a ensimesmou, alheando-a quase inteiramente da vida
do interior. A jurisdição da vila nunca excedeu material e
espiritualmente o alcance de um tiro de besta disparado das suas
muralhas; este aspecto da sua mentalidade da sua burguesia dos
séculos XV e XVI ainda hoje é um facto, como ainda é um facto o amor
pela ordem, pela liberdade, pela economia, a tolerância, a
morigeração dos costumes, o asseio doméstico e o gosto pela pompa
dos cortejos religiosos.
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"(...) O movimento demográfico do interior para o
litoral depois da conquista de Lisboa (…) acentuou-se com o
progresso material e moral dos agrupamentos urbanos litorais.
"(...) A importância social da burguesia marítima
assegurava maior soma de liberdade, a sua riqueza multiplicava
actividades e criava o desafogo e o conforto, e assim as vilas
marítimas eram centros de aspiração das populações rurais, que
sofriam uma vida dura de trabalho, servidão e aspirações".
Mais adiante, Rocha e Cunha, a propósito da
decadência económica do País nos séculos XV e XVI e da
desorganização da sua vida nos séculos seguintes, interpreta assim
António Sérgio: "A crise rural manifestava-se desde o século XIV; as
providências tomadas para fomentar o trabalho agrícola poucos
resultados tinham produzido. A nobreza, em vez de acompanhar e
dirigir o trabalho produtor, agravava a terra e as indústrias com
encargos parasitários; D. Dinis não consegue convencê-la da
dignidade e da nobreza dos trabalhos agrícolas. Assim, a vida
campestre e as profissões manuais assustavam e arruinavam os
indivíduos que as exerciam; as crises de subsistência eram
frequentes. Os campos despovoavam-se para as terras do litoral,
entregando as suas energias ao tráfego marítimo, favorecido pela
situação geográfica do País e pelas necessidades económicas da
Europa do Norte.
"A política de transportes venceu a política de
produção; este fenómeno dominou a vida económica da Nação,
intensificou-se com os Descobrimentos e conquistas, e arruinou-a
promovendo a crise que veio até ao nosso século".
E continua Rocha e Cunha: "Resumindo: o Sr. António
Sérgio demonstra que não foi possível equilibrar a política de
produção com a política de transportes. A falta de comunicações
terrestres deve ter sido uma causa importante desta crise. De que
serviria produzir muito nas terras interiores, se o excedente do
consumo local não podia ser transportado para centros não produtores
ou de consumo superior à produção? A mesma dificuldade impedia a
colocação no interior dos produtos do litoral e dos que por via
marítima afluíam aos portos.
"O fenómeno económico, tão lucidamente exposto pelo
Sr. A. Sérgio, tem causas muito complexas, e entre elas a que
acabamos de indicar".
No que tem a ver com referências directas a Aveiro e
sua região, eis algumas, entre as mais significativas, em páginas
que António Sérgio dedicou (na obra referida) à Beira Litoral:
"Esta Beira, ao norte, é cortada pelo vale inferior
do Vouga, distrito de polders fertilíssimo e plano, todo ele
retalhado por canais pequenos, que partem e irradiam da grande 'ria'
de Aveiro. É a chamada Holanda portuguesa. Os campos rectangulares,
o rectilíneo dos valos dividem o terreno como um xadrez. A ria é um
ambiente ideal para a pesca, de que Raul Brandão nos deu telas
magníficas no seu livro intitulado Os Pescadores, e um foco
de irradiação de trabalhadores para variados pontos da nossa costa
(...). Além da pesca, a cultura do arroz e o fabrico do sal são
fainas características do habitante da ria - um ser anfíbio, por
assim dizer, dado à pescaria e à lavoura, a qual nasceu aqui do que
lhe vem do mar, por isso que emprega para adubar as terras o moliço
de algas e de mariscos. Graças a este, conseguiu-se transformar um
areal (...) numa das regiões mais férteis do distrito (faixa de
Mira, Vagos, Ílhavo, ao sul de Aveiro). Em torno de Aveiro, os
barcos parecem navegar nos campos sobre os quais se elevam como
manchas vivas as suas velas brancas ou purpurinas. No décimo segundo
e décimo terceiro século o Vouga comunicava francamente com o mar,
por uma barra aberta; e subiam por ele embarcações de tráfico, pois
foi somente no século XIII que começaram a avultar paralelamente à
costa as línguas de areia que determinaram o hafe. O sal produzido
na ria de Aveiro cobrou a fama do melhor do nosso país e chamou-se à
cidade o empório do sal (36.000 toneladas anuais). O rendimento das
salinas era dividido a meias, por via de regra, entre o indivíduo
que a explora e o proprietário".
E prossegue António Sérgio: "A sueste de Aveiro está
a região da Bairrada (Mealhada, Anadia, Mogofores, etc.), a dos
vinhos célebres – vinhos fortes e bem maduros, bastante alcoólicos,
taninosos. A cultura da vinha é aí antiquíssima; decaiu no tempo do
marquês de Pombal, o qual deu ordem de arrancar os vinhedos, a fim
de evitar a competição desleal aos vinhos da Companhia do Alto
Douro, por ele próprio fundada (1759). No reinado de D. Maria lI, no
entanto, foi dada licença de replantar as vides. Actualmente, uma
boa parte dos vinhos brancos é aí transformada em tipo espumoso, com
perfeito êxito".
Após referir que "a viuvez (...) é a sina da mulher
da beira-mar", a propósito dos numerosos naufrágios ao longo da
costa, Sérgio cita Duarte Nunes do Leão (século XVII), que, em
notícias sobre o peixe que se pescava nas nossas costas, incluía
Aveiro entre os portos em que "é cousa notável a multidão que dão de
pescado, e a sua bondade", acrescentando o cronista, mais adiante,
acerca da exportação de peixe: "se levam também muitos linguados
sapateiros de Aveiro, feitos e adubados em barris" .
Seguidamente, António Sérgio apresenta fundamentadas
opiniões acerca da importância do sal, tanto na economia medieval
como na contemporânea, salientando que essa actividade era relevante
"já nos primeiros tempos de Portugal", e explica: "Torna-nos aptos
para tal indústria a secura prolongada do nosso Estio – com
temperaturas elevadas, com evaporação activíssima. O sal português,
por via de regra, distingue-se pela limpeza e pela brancura, e o
tipo conhecido como sal grosso é bem menos deliquescente que os
estrangeiros. Por isso, os comerciantes, os fabricantes, os
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pescadores da Europa setentrional, da América do Norte e do Brasil
têm dado preferência ao nosso sal".
Mais acrescenta António Sérgio: "O tráfego das
salinas deu seu concurso para animar os portos nos tempos que
precederam os Descobrimentos, porque o sal foi objecto de exportação
(como o pescado, o vinho, o azeite, as frutas secas, a peletaria, as
madeiras, o mel, a cera e a grã), e supomos nós que de muitíssima
conta nas possibilidades de desenvolvimento da nossa Grei. Se não
estamos em erro, à salina competia, então, no sistema económico de
Portugal, um papel semelhante ao que séculos mais tarde
representaram duas fontes de riqueza que explorámos em terras do
Brasil: o engenho de açúcar e a mina de oiro.
"O sal servia para salgar peixe e carne, e o manjar
salgado tinha lugar de vulto na alimentação dos povos da Idade
Média: foi por isso mercadoria das de maior consequência, e factor
económico de excepcional valia no sistema de troca dos portugueses.
Quem o procurava com o mais vivo empenho eram as gentes
circunspectas do mar do Norte. As costas deste mar, com efeito,
oferecem-se riquíssimas de peixe, sobretudo nos bancos onde pesca o
arenque; as águas marítimas, porém, são de fraca salinidade em tais
paragens, e o frio e a humidade setentrionais não consentem ali uma
evaporação bastante: portanto, faltam condições para a salicultura.
Estabeleceu-se por isso um intercâmbio activo entre esses povos
pescadores do Norte – escandinavos, neerlandeses, escoceses,
irlandeses, etc. – e as terras ocidentais em que a evaporação é
forte, e onde se pode por isso produzir sal. Nos Países Baixos, o
grande centro da pescaria europeia, tão grave era o problema da
importação do sal que pelas flutuações no preço dele se previam as
crises da economia. Objecto, então, de intensíssimo tráfico, servia
de frete de retorno aos navios estrangeiros que nos visitavam. As
Cortes de Elvas de 1361 (reinado de D. Pedro I) exaltam o valor do
comércio do sal na vida económica da nossa gente: item ao que
diziam no quinquagésimo artigo, comenta o rei, que bem
sabíamos quando sal é cumpridoiro (útil, vantajoso) e
necessário aos nossos senhorios, porque por ele recudiam à nossa
terra muitos mantimentos, e a nós muita prol (proveito,
lucro), e muitos de muitas partes de fora de nossos reinos,
quando aí havia avondamento, dele carregavam naves e outros navios
para outras terras, de que nós tiramos grandes dízimos – e pelo
resto do texto se fica sabendo que era então o concelho de Aveiro um
centro primacial de tal comércio".
E António Sérgio interroga-se: "Não convirá
lembrarmo-nos deste texto interessante acerca da importância do
comércio do sal na economia da nação e na do erário régio, ao
ouvirmos chamar monarquia agrária à da nossa dinastia de Borgonha?".
Mais adiante, escreve Sérgio:
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"Para o sul do Douro, até ao Vouga, a costa é mais rectilínea que
para a banda do Norte. Lisa e baixa, arenosa e dúnica, não oferece o
menor abrigo contra os ventos tempestuosos dos quadrantes de oeste e
não quebra a monotonia do seu aspecto para proporcionar conhecenças
a um navegante. Na extremidade sul, era o Vouga outrora de barra
franca, como dissemos já; mas termina actualmente num hafe-delta – e
isto é num delta combinado com uma complexa laguna, a qual se
encontra separada do mar por estreitas línguas arenosas.
"Aveiro, no século XV, foi um dos portos mais
prósperos da nossa costa, e por ele se exportavam nesse mesmo século
os vinhos e azeites de Coimbra. Hoje tem actividades bastantes
variadas: pesca longínqua, do alto mar e do rio, assim como a
indústria da produção do sal".
E prossegue António Sérgio: "Ao que parece, foram os
de Aveiro e os de Viana os iniciadores da pesca do bacalhau na zona
dos bancos da Terra Nova; e no tempo de D. Manuel (1459-1521) era
este o porto de toda a costa que mais naus enviava àquela zona. Pelo
ano de 1550 possuíam os pescadores do porto de Aveiro 150 barcos
apropriados às fainas da Terra Nova.
"Pelo recenseamento de 1552, sabe-se que o porto de
Aveiro era, do Norte do País, o que a todos superava na arqueação de
navios (5.060 tonéis), por possuir grande número de embarcações
pequenas (provavelmente para a pesca na Terra Nova e não para o
tráfego comercial). Ao tempo da descrição de 1630, de Teixeira
Albernaz, já a barra se apertara muito; e, no entanto, ela diz: "a
sua população é tão grande como nobre, mostrando antiguidade em seus
edifícios, mui rica de trato (comércio) pelo muito sal que em seu
porto embarca para muitas partes... Fabricam-se neste porto, nas
margens do rio, galões e navios, e outras embarcações usadas neste
reino de Portugal, muito ligeiras, a que chamam caravelas.
"Em 1552, vinham depois do porto de Aveiro, no
respeitante a arqueação de navios, Vila do Conde (4505 tonéis), Leça
(3590), Matosinhos (2305), Porto e Massarelos (1810) e Azurara
(1670).
"De Aveiro para baixo, a orla marítima, nos primeiros
tempos da monarquia, deveria passar uma meia dúzia de quilómetros
para leste da linha que apresenta hoje: com efeito, a povoação de
Mira era então um porto".
E António Sérgio reproduz, depois, um saboroso texto
de Raul Brandão que também aqui se transcreve:
"De Aveiro a Viana, do interior das terras, das
areias solitárias do Douro, entre paredões temerosos e compactos (lá
em cima reluz uma estrelinha), dos sítios perdidos de
Trás-os-Montes, desce também neste tempo para a costa o formigueiro
humano que vem atrás do apresigo do Inverno, do negócio que os
tenta, e da fortuna que o mar prodigaliza. Não há terriola de seis
cavadores submersa pelos montes, onde a sardinha não chegue
–
viva da costa. É nesta época que reaparecem os bandos de homens
negros e tisnados, as mulheres descalças com a saia pela cabeça,
para disputarem a quem mais dá os lotes de sardinha dispersos no
areal. Carregam-na os almocreves nos burros canastreiros, e os do
Douro nos barcos rabelos de grande vela latina, com o arrais de pé
sobre a gaiola de pinho descascado; os vareiros às costas, com a
vara atravessada no ombro e um cesto em cada ponta, os regatões que
a acamam em gigos ou a salgam no fundo das barricas, as sanjoaneiras
e as varinas, que de perna à mostra e a canastra à cabeça correm
pela estrada ribeirinha, a caminho do Porto. – De Espinho, viva!"
E prossegue António Sérgio: "A ria de Aveiro, que
demora ao sul, é um centro de trabalhadores da pesca. De Ílhavo se
dispersa muita gente marítima, que vai de ali empregar-se nos
mesteres de transporte nos portos mais importantes da nossa costa. O
caso teve já uma representação literária, pois são embarcadiços
provenientes de Ílhavo os que vemos disputando com pegadores de
toiros, num barco do Tejo, no início das Viagens na Minha
Terra, a obra-prima da prosa de Almeida Garrett (1799-1854).
O autor dá deles este retrato breve. Em vez
do calção amarelo e da jaqueta de ramagem
que caracterizam o homem do forcado, estes vestiam o
amplo saiote grego dos varinos, e o tabardo arrequifado siciliano de
pano de varas. O campino, assim como o saloio, tem o cunho da raça
africana; estes são da família pelasga: feições regulares e móveis,
a forma ágil.
Segundo Raul Brandão, encontra-se sempre o mesmo tipo de homens,
tanto em Aveiro como na Nazaré, tanto em Sesimbra como na Caparica,
e todos eles nos afirmam a sua origem de Ílhavo".
Como exemplos da importância concedida a Aveiro por
António Sérgio, parecem suficientes os aqui já apresentados – não
sendo, com certeza, exagerado pensar que pelo menos os aspectos
focados nesta sua obra seriam desenvolvidos e complementados na
sequência que Sérgio nunca viria a escrever.
A terminar esta evocação, que é também uma homenagem
ao grande pensador, recorda-se mais uma prova da presença actuante
dos aveirenses fora do seu rincão natal, ainda pela escrita de
António Sérgio:
"Um povoado marroquino de cubos brancos, tal a
aparência que tem Olhão. Seria aqui erróneo, todavia, o supor
sobrevivências do tempo árabe. Ao longo do curso do século XVIII
existiam apenas naquele local umas cabanas paupérrimas de
pescadores, que da Ria de Aveiro teriam vindo (não se sabe ao certo
como isso foi) e só no ano de 1790 se construíram casas de melhor
aspecto, graças a lucros no contrabando, ocasionados pelo cerco de
Gibraltar".
Júlio de Sousa Martins
Capítulo de "AVEIRO NA HISTÓRIA" (Obra a publicar)
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