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Boletim n.º 12 - Ano VII - 1988

Aveiro "Empório do Sal"

numa evocação de António Sérgio

Por Júlio de Sousa Martins

 

Na "Introdução Geográfica-Sociológica à História de Portugal", de António Sérgio, Aveiro ocupa lugar de destaque, que melhor se compreende se recordarmos a perspectivação que o autor entende dever ser a da nossa História, e que aqui exprimimos nas suas próprias palavras: "(...) actuou na formação e consolidação da Grei um factor cosmopolita e comercial-burguês, apoiado sobretudo na pescaria e no sal e não na exportação de produtos agrícolas". E ainda: "Se não erro muito (...), base agrícola à navegação da Grei só existiu com vulto (...) com o açúcar que nos vinha do Brasil. Propendemos a crer que na Idade Média o mais importante da exportação do País consistiu em riquezas que do mar se tiravam. Ao que se nos antolha, nunca esteve na terra mas sim no Oceano (e na riqueza buscada pela via marítima) o mais forte esteio da vitalidade da Pátria. Continuidade, portanto, da 1.ª dinastia para a 2.ª, como temos aventado desde há muito, em oposição a tese da monarquia agrária".

Começa, pois, a entender-se a razão da importância por António Sérgio implicitamente atribuída a Aveiro, que lhe mereceu, na obra em destaque, dezenas de referências, como, por exemplo: "(...) a condição geográfica na criação e expansão da nação portuguesa como corpo político independente foi o significado topográfico dos nossos portos para a actividade marítima-comercial' europeia unido ao valor das costas e das condições do clima para a obtenção da riqueza tirada do mar (pescarias, sal)".

Já em 1930, Silvério Ribeiro da Rocha e Cunha, no seu "Relance da História Económica de Aveiro", salientava a importância dessa tese de António Sérgio, citando a seguinte passagem, a propósito da função dos portos na fase da vida da nacionalidade que procedeu os Descobrimentos: "Os portos eram mais numerosos do que hoje, e constituíam uma escala indispensável entre o Norte e o Sul da Europa. Daí proveio a formação no litoral de uma burguesia cosmopolita, oposta em mentalidade e interesse aos senhores rurais do interior. O antagonismo entre a burguesia comercial marítima e os senhores do interior teve uma participação importantíssima na evolução da sociedade. As cruzadas do século XI promoveram o desenvolvimento dos portos e portanto a não incorporação de Portugal no todo político a que presidia Castela".

E prossegue Silvério da Rocha e Cunha: "A teoria de António Sérgio corresponde incontestavelmente à evidência dos factos. Ela explica a formação da vila de Aveiro, e da sua psicologia especial em qualidades e defeitos, que a distinguem ainda hoje das outras povoações da região. Uma corrente comercial, se representa materialmente um intercâmbio de mercadorias, representa também espiritualmente um intercâmbio de ideias de civilizações diferentes. O contacto que essa corrente estabeleceu com os povos do Norte, sobretudo ingleses, flamengos, holandeses, a larga permanência de elementos destes povos na própria vila, imprimiram à burguesia aveirense um carácter e uma mentalidade diferente das outras populações, que a ensimesmou, alheando-a quase inteiramente da vida do interior. A jurisdição da vila nunca excedeu material e espiritualmente o alcance de um tiro de besta disparado das suas muralhas; este aspecto da sua mentalidade da sua burguesia dos séculos XV e XVI ainda hoje é um facto, como ainda é um facto o amor pela ordem, pela liberdade, pela economia, a tolerância, a morigeração dos costumes, o asseio doméstico e o gosto pela pompa dos cortejos religiosos. / 56 /

"(...) O movimento demográfico do interior para o litoral depois da conquista de Lisboa (…) acentuou-se com o progresso material e moral dos agrupamentos urbanos litorais.

"(...) A importância social da burguesia marítima assegurava maior soma de liberdade, a sua riqueza multiplicava actividades e criava o desafogo e o conforto, e assim as vilas marítimas eram centros de aspiração das populações rurais, que sofriam uma vida dura de trabalho, servidão e aspirações".

Mais adiante, Rocha e Cunha, a propósito da decadência económica do País nos séculos XV e XVI e da desorganização da sua vida nos séculos seguintes, interpreta assim António Sérgio: "A crise rural manifestava-se desde o século XIV; as providências tomadas para fomentar o trabalho agrícola poucos resultados tinham produzido. A nobreza, em vez de acompanhar e dirigir o trabalho produtor, agravava a terra e as indústrias com encargos parasitários; D. Dinis não consegue convencê-la da dignidade e da nobreza dos trabalhos agrícolas. Assim, a vida campestre e as profissões manuais assustavam e arruinavam os indivíduos que as exerciam; as crises de subsistência eram frequentes. Os campos despovoavam-se para as terras do litoral, entregando as suas energias ao tráfego marítimo, favorecido pela situação geográfica do País e pelas necessidades económicas da Europa do Norte.

"A política de transportes venceu a política de produção; este fenómeno dominou a vida económica da Nação, intensificou-se com os Descobrimentos e conquistas, e arruinou-a promovendo a crise que veio até ao nosso século".

E continua Rocha e Cunha: "Resumindo: o Sr. António Sérgio demonstra que não foi possível equilibrar a política de produção com a política de transportes. A falta de comunicações terrestres deve ter sido uma causa importante desta crise. De que serviria produzir muito nas terras interiores, se o excedente do consumo local não podia ser transportado para centros não produtores ou de consumo superior à produção? A mesma dificuldade impedia a colocação no interior dos produtos do litoral e dos que por via marítima afluíam aos portos.

"O fenómeno económico, tão lucidamente exposto pelo Sr. A. Sérgio, tem causas muito complexas, e entre elas a que acabamos de indicar".

No que tem a ver com referências directas a Aveiro e sua região, eis algumas, entre as mais significativas, em páginas que António Sérgio dedicou (na obra referida) à Beira Litoral:

"Esta Beira, ao norte, é cortada pelo vale inferior do Vouga, distrito de polders fertilíssimo e plano, todo ele retalhado por canais pequenos, que partem e irradiam da grande 'ria' de Aveiro. É a chamada Holanda portuguesa. Os campos rectangulares, o rectilíneo dos valos dividem o terreno como um xadrez. A ria é um ambiente ideal para a pesca, de que Raul Brandão nos deu telas magníficas no seu livro intitulado Os Pescadores, e um foco de irradiação de trabalhadores para variados pontos da nossa costa (...). Além da pesca, a cultura do arroz e o fabrico do sal são fainas características do habitante da ria - um ser anfíbio, por assim dizer, dado à pescaria e à lavoura, a qual nasceu aqui do que lhe vem do mar, por isso que emprega para adubar as terras o moliço de algas e de mariscos. Graças a este, conseguiu-se transformar um areal (...) numa das regiões mais férteis do distrito (faixa de Mira, Vagos, Ílhavo, ao sul de Aveiro). Em torno de Aveiro, os barcos parecem navegar nos campos sobre os quais se elevam como manchas vivas as suas velas brancas ou purpurinas. No décimo segundo e décimo terceiro século o Vouga comunicava francamente com o mar, por uma barra aberta; e subiam por ele embarcações de tráfico, pois foi somente no século XIII que começaram a avultar paralelamente à costa as línguas de areia que determinaram o hafe. O sal produzido na ria de Aveiro cobrou a fama do melhor do nosso país e chamou-se à cidade o empório do sal (36.000 toneladas anuais). O rendimento das salinas era dividido a meias, por via de regra, entre o indivíduo que a explora e o proprietário".

E prossegue António Sérgio: "A sueste de Aveiro está a região da Bairrada (Mealhada, Anadia, Mogofores, etc.), a dos vinhos célebres – vinhos fortes e bem maduros, bastante alcoólicos, taninosos. A cultura da vinha é aí antiquíssima; decaiu no tempo do marquês de Pombal, o qual deu ordem de arrancar os vinhedos, a fim de evitar a competição desleal aos vinhos da Companhia do Alto Douro, por ele próprio fundada (1759). No reinado de D. Maria lI, no entanto, foi dada licença de replantar as vides. Actualmente, uma boa parte dos vinhos brancos é aí transformada em tipo espumoso, com perfeito êxito".

Após referir que "a viuvez (...) é a sina da mulher da beira-mar", a propósito dos numerosos naufrágios ao longo da costa, Sérgio cita Duarte Nunes do Leão (século XVII), que, em notícias sobre o peixe que se pescava nas nossas costas, incluía Aveiro entre os portos em que "é cousa notável a multidão que dão de pescado, e a sua bondade", acrescentando o cronista, mais adiante, acerca da exportação de peixe: "se levam também muitos linguados sapateiros de Aveiro, feitos e adubados em barris" .

Seguidamente, António Sérgio apresenta fundamentadas opiniões acerca da importância do sal, tanto na economia medieval como na contemporânea, salientando que essa actividade era relevante "já nos primeiros tempos de Portugal", e explica: "Torna-nos aptos para tal indústria a secura prolongada do nosso Estio – com temperaturas elevadas, com evaporação activíssima. O sal português, por via de regra, distingue-se pela limpeza e pela brancura, e o tipo conhecido como sal grosso é bem menos deliquescente que os estrangeiros. Por isso, os comerciantes, os fabricantes, os / 57 / pescadores da Europa setentrional, da América do Norte e do Brasil têm dado preferência ao nosso sal".

Mais acrescenta António Sérgio: "O tráfego das salinas deu seu concurso para animar os portos nos tempos que precederam os Descobrimentos, porque o sal foi objecto de exportação (como o pescado, o vinho, o azeite, as frutas secas, a peletaria, as madeiras, o mel, a cera e a grã), e supomos nós que de muitíssima conta nas possibilidades de desenvolvimento da nossa Grei. Se não estamos em erro, à salina competia, então, no sistema económico de Portugal, um papel semelhante ao que séculos mais tarde representaram duas fontes de riqueza que explorámos em terras do Brasil: o engenho de açúcar e a mina de oiro.

"O sal servia para salgar peixe e carne, e o manjar salgado tinha lugar de vulto na alimentação dos povos da Idade Média: foi por isso mercadoria das de maior consequência, e factor económico de excepcional valia no sistema de troca dos portugueses. Quem o procurava com o mais vivo empenho eram as gentes circunspectas do mar do Norte. As costas deste mar, com efeito, oferecem-se riquíssimas de peixe, sobretudo nos bancos onde pesca o arenque; as águas marítimas, porém, são de fraca salinidade em tais paragens, e o frio e a humidade setentrionais não consentem ali uma evaporação bastante: portanto, faltam condições para a salicultura. Estabeleceu-se por isso um intercâmbio activo entre esses povos pescadores do Norte – escandinavos, neerlandeses, escoceses, irlandeses, etc. – e as terras ocidentais em que a evaporação é forte, e onde se pode por isso produzir sal. Nos Países Baixos, o grande centro da pescaria europeia, tão grave era o problema da importação do sal que pelas flutuações no preço dele se previam as crises da economia. Objecto, então, de intensíssimo tráfico, servia de frete de retorno aos navios estrangeiros que nos visitavam. As Cortes de Elvas de 1361 (reinado de D. Pedro I) exaltam o valor do comércio do sal na vida económica da nossa gente: item ao que diziam no quinquagésimo artigo, comenta o rei, que bem sabíamos quando sal é cumpridoiro (útil, vantajoso) e necessário aos nossos senhorios, porque por ele recudiam à nossa terra muitos mantimentos, e a nós muita prol (proveito, lucro), e muitos de muitas partes de fora de nossos reinos, quando aí havia avondamento, dele carregavam naves e outros navios para outras terras, de que nós tiramos grandes dízimos – e pelo resto do texto se fica sabendo que era então o concelho de Aveiro um centro primacial de tal comércio".

E António Sérgio interroga-se: "Não convirá lembrarmo-nos deste texto interessante acerca da importância do comércio do sal na economia da nação e na do erário régio, ao ouvirmos chamar monarquia agrária à da nossa dinastia de Borgonha?".

Mais adiante, escreve Sérgio:

/ 58 / "Para o sul do Douro, até ao Vouga, a costa é mais rectilínea que para a banda do Norte. Lisa e baixa, arenosa e dúnica, não oferece o menor abrigo contra os ventos tempestuosos dos quadrantes de oeste e não quebra a monotonia do seu aspecto para proporcionar conhecenças a um navegante. Na extremidade sul, era o Vouga outrora de barra franca, como dissemos já; mas termina actualmente num hafe-delta – e isto é num delta combinado com uma complexa laguna, a qual se encontra separada do mar por estreitas línguas arenosas.

"Aveiro, no século XV, foi um dos portos mais prósperos da nossa costa, e por ele se exportavam nesse mesmo século os vinhos e azeites de Coimbra. Hoje tem actividades bastantes variadas: pesca longínqua, do alto mar e do rio, assim como a indústria da produção do sal".

E prossegue António Sérgio: "Ao que parece, foram os de Aveiro e os de Viana os iniciadores da pesca do bacalhau na zona dos bancos da Terra Nova; e no tempo de D. Manuel (1459-1521) era este o porto de toda a costa que mais naus enviava àquela zona. Pelo ano de 1550 possuíam os pescadores do porto de Aveiro 150 barcos apropriados às fainas da Terra Nova.

"Pelo recenseamento de 1552, sabe-se que o porto de Aveiro era, do Norte do País, o que a todos superava na arqueação de navios (5.060 tonéis), por possuir grande número de embarcações pequenas (provavelmente para a pesca na Terra Nova e não para o tráfego comercial). Ao tempo da descrição de 1630, de Teixeira Albernaz, já a barra se apertara muito; e, no entanto, ela diz: "a sua população é tão grande como nobre, mostrando antiguidade em seus edifícios, mui rica de trato (comércio) pelo muito sal que em seu porto embarca para muitas partes... Fabricam-se neste porto, nas margens do rio, galões e navios, e outras embarcações usadas neste reino de Portugal, muito ligeiras, a que chamam caravelas.

"Em 1552, vinham depois do porto de Aveiro, no respeitante a arqueação de navios, Vila do Conde (4505 tonéis), Leça (3590), Matosinhos (2305), Porto e Massarelos (1810) e Azurara (1670).

"De Aveiro para baixo, a orla marítima, nos primeiros tempos da monarquia, deveria passar uma meia dúzia de quilómetros para leste da linha que apresenta hoje: com efeito, a povoação de Mira era então um porto".

E António Sérgio reproduz, depois, um saboroso texto de Raul Brandão que também aqui se transcreve:

"De Aveiro a Viana, do interior das terras, das areias solitárias do Douro, entre paredões temerosos e compactos (lá em cima reluz uma estrelinha), dos sítios perdidos de Trás-os-Montes, desce também neste tempo para a costa o formigueiro humano que vem atrás do apresigo do Inverno, do negócio que os tenta, e da fortuna que o mar prodigaliza. Não há terriola de seis cavadores submersa pelos montes, onde a sardinha não chegue viva da costa. É nesta época que reaparecem os bandos de homens negros e tisnados, as mulheres descalças com a saia pela cabeça, para disputarem a quem mais dá os lotes de sardinha dispersos no areal. Carregam-na os almocreves nos burros canastreiros, e os do Douro nos barcos rabelos de grande vela latina, com o arrais de pé sobre a gaiola de pinho descascado; os vareiros às costas, com a vara atravessada no ombro e um cesto em cada ponta, os regatões que a acamam em gigos ou a salgam no fundo das barricas, as sanjoaneiras e as varinas, que de perna à mostra e a canastra à cabeça correm pela estrada ribeirinha, a caminho do Porto. – De Espinho, viva!"

E prossegue António Sérgio: "A ria de Aveiro, que demora ao sul, é um centro de trabalhadores da pesca. De Ílhavo se dispersa muita gente marítima, que vai de ali empregar-se nos mesteres de transporte nos portos mais importantes da nossa costa. O caso teve já uma representação literária, pois são embarcadiços provenientes de Ílhavo os que vemos disputando com pegadores de toiros, num barco do Tejo, no início das Viagens na Minha Terra, a obra-prima da prosa de Almeida Garrett (1799-1854). O autor dá deles este retrato breve. Em vez do calção amarelo e da jaqueta de ramagem que caracterizam o homem do forcado, estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos, e o tabardo arrequifado siciliano de pano de varas. O campino, assim como o saloio, tem o cunho da raça africana; estes são da família pelasga: feições regulares e móveis, a forma ágil. Segundo Raul Brandão, encontra-se sempre o mesmo tipo de homens, tanto em Aveiro como na Nazaré, tanto em Sesimbra como na Caparica, e todos eles nos afirmam a sua origem de Ílhavo".

Como exemplos da importância concedida a Aveiro por António Sérgio, parecem suficientes os aqui já apresentados – não sendo, com certeza, exagerado pensar que pelo menos os aspectos focados nesta sua obra seriam desenvolvidos e complementados na sequência que Sérgio nunca viria a escrever.

A terminar esta evocação, que é também uma homenagem ao grande pensador, recorda-se mais uma prova da presença actuante dos aveirenses fora do seu rincão natal, ainda pela escrita de António Sérgio:

"Um povoado marroquino de cubos brancos, tal a aparência que tem Olhão. Seria aqui erróneo, todavia, o supor sobrevivências do tempo árabe. Ao longo do curso do século XVIII existiam apenas naquele local umas cabanas paupérrimas de pescadores, que da Ria de Aveiro teriam vindo (não se sabe ao certo como isso foi) e só no ano de 1790 se construíram casas de melhor aspecto, graças a lucros no contrabando, ocasionados pelo cerco de Gibraltar".

Júlio de Sousa Martins

Capítulo de "AVEIRO NA HISTÓRIA" (Obra a publicar)

 

 

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