NOS 150 ANOS DA BANDA
AMIZADE
Resolveu a «Banda Amizade», de Aveiro, comemorar
festivamente, no ano em curso, o seu sesquicentenário; é justo que todos
nos congratulemos com a efeméride de uma prestimosa colectividade que,
desde há muito, faz parte do nosso panorama citadino e social.
Cento e cinquenta anos da «Banda Amizade»! Todavia, por
incrível que pareça, a data da sua fundação não é testificada com rigor
histórico. Acontece assim frequentemente. Um homem não se torna herói ou
uma colectividade não se enobrece logo ao nascer; são-no passadas
dezenas de anos.
Depois, ao procurar pormenores dos seus primórdios,
deparamos com dúvidas insolúveis ou com interrogações sem respostas
convincentes. É o caso.
Segundo João Calisto Grilo, de Lisboa, que se dedicou ao
estudo das sociedades filarmónicas, a nossa «Banda Amizade» haveria
iniciado a sua marcha histórica em Novembro de 1834. «Terá sido – diz
ele – a primeira filarmónica aveirense com carácter popular».
António dos Santos Lé, conhecido e credenciado professor
de música e regente em Aveiro, tendo sido solicitado por Pedro de
Freitas a dar a sua opinião autorizada, apenas se limitou a informar, em
1942: – «A Banda Amizade é a mais antiga desta Cidade, pois tem mais de
cem anos de existência». Nesta ocasião – em 1942 – havia em Aveiro, além
da referida, a Banda do Asilo-Escola Distrital, a Banda da Escola
Musical de José Estêvão e a Banda dos Bombeiros Novos.
Uma curiosidade do século XVI foi o aparecimento da
música militar – designação corrente das bandas regimentais,
constituídas então unicamente por instrumentos de palheta, sopro e
percussão; lembremos, porém, que já o cronista Fernão Lopes citou os
trombeteiros de el-rei D. Pedro I, como componentes de grupos musicais,
compostos por instrumentos de sopro, que o monarca português do século
XIV tinha ao seu serviço.
Durante muito tempo, a música militar não conheceu
organização nem repertório próprios; reduzia-se a certos toques breves e
empregava apenas os instrumentos de percussão. Foi nos finais de
seiscentos e durante o século XVIII que tal música tomou forma e se
individualizou, surgindo então as primeiras bandas, sobretudo com
pífaros, oboés, trombetas e tambores, cujo leque instrumental se foi
alargando aos clarinetes, às trompas e aos fagotes. As marchas, as
aberturas, os passo dobles, faziam parte dos seus repertórios nos
concertos públicos.
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Vieram depois os flautins, as flautas, as requintas, os
baixos, os saxofones, os cornetins, os bombardinos, os trombones, os
contrabaixos, o bombo, os rufos, os pratos, os ferrinhos... Todos esses
instrumentos, acrescidos aos anteriores, vieram constituir as bandas
militares, que se vulgarizaram por todo o século XIX; quase não se
conhecia um regimento ou um simples destacamento que não tivesse o seu
agrupamento musical.
Para o gosto da música no Exército concorreu muito a
presença das tropas britânicas em Portugal. Deve-se até a Beresford um
novo regulamento que mandava pagar trezentos réis por dia ao mestre da
música nos corpos militares e duzentos réis a cada músico, uns e outros
com direito a farda, soldo e pão, enquanto durasse o tempo de ajuste.
Todavia, para cercear despesas, em 1813 entendeu-se manter apenas as
bandas nos regimentos de Infantaria e nos batalhões de Caçadores.
As bandas militares foram uma das formas – e de grande
importância – da divulgação da música sinfónica instrumental e das
filarmónicas civis e populares.
Em 1817, contudo, instituiu-se em Aveiro uma capela de
padres, regida pelo Padre José Joaquim Plácido – o Padre Parracho –
irmão do hábil jurisconsulto aveirense Joaquim António Plácido. Essa
capela organizou-se para se fazerem com solenidade as festas litúrgicas
na sé de Aveiro, que era então na igreja da Misericórdia; imitava
certamente a charamela do Arcebispo de Braga, criada para abrilhantar as
festividades religiosas, à míngua de bandas populares. Foi aquele
sacerdote que deu as primeiras lições de música ao então menino de coro
da igreja da Misericórdia (onde também havia uma colegiada), José
Pinheiro Nobre – o Marcela – que depois foi discípulo do espanhol Cléder,
exímio tocador de trombone de varas.
Em princípios de 1834, organizou-se, em diversas
localidades do País, a chamada «Guarda Nacional» que, em Aveiro e
Ílhavo, teve existência jurídica por decreto de 29 de Março desse ano.
José Pinheiro Nobre, o tal menino de coro da igreja da Misericórdia e
pequeno discípulo do Padre Parracho, contava agora treze anos e era um
já apreciável executante de trompa; nesta qualidade, fazia parte da
banda daquela «Guarda Nacional», ao mesmo tempo que prosseguia no estudo
de música com D. Rumán Avias, de nacionalidade espanhola, que foi mestre
da banda do regimento de Caçadores n.º 28. Como este e como Cléder, foi
depois José Pinheiro Nobre notável executante de trombone de varas.
Nem todos os corpos militares tinham bandas privativas;
por vezes, as filarmónicas eram contratadas por períodos anuais. José
Pinheiro Nobre, findo o contrato com a «Guarda Nacional», foi para o
regimento de Viana do Castelo; todavia, transferida esta unidade para
Viseu, ele continuaria naquela cidade, ao serviço do novo regimento, aí
instalado. Contudo, após os sucessivos contratos que ali assinara, José
Pinheiro Nobre regressava a Aveiro, em 1844. Dois anos depois,
juntando-se ao Padre João de Pinho, reagrupou a antiga «Filarmónica de
Aveiro», com os elementos saídos da «Guarda Nacional», então dissolvida;
eram quase todos espanhóis e entre eles contava-se o célebre André
Navarro – segundo o depoimento de José Ferreira Pinto de Sousa.
Lamento não apresentar aqui qualquer dado histórico que
apoditicamente nos certifique a data exacta da fundação da «Música
Velha». Se não fosse a afirmação de que José Pinheiro Nobre, em 1846,
reorganizou a antiga «Filarmónica de Aveiro», concluir-se-ia que esta
teria sido fundada em 1846, e não em 1834, como se supõe. Teria sido
José Pinheiro Nobre, aos treze anos de idade (1834), o elemento
preponderante na fundação da «Música Velha»? A afirmativa não é muito de
acreditar.
Em 1844, no dia 14 de Maio, rebentara a revolução chamada
da «Patuleia» ou da «Maria da Fonte». Para a apoiar, formaram-se «corpos
populares», que logo fundaram bandas privativas ou contrataram bandas
civis. Em Aveiro, a banda da «Maria da Fonte» foi organizada e regida
por José Pinheiro Nobre. Apesar de esse batalhão de populares ser
extinto em 23 de Junho de 1847, a filarmónica prosseguiu, sob a mesma
batuta, até 26 de Outubro de 1849, data em que José Pinheiro Nobre foi
para Anadia dirigir a filarmónica local. Entretanto, a «Música Velha» lá
ia continuando, pior ou melhor, embora sem a batuta de José Pinheiro
Nobre.
Todavia, em 1 de Junho de 1853, José Pinheiro Nobre
regressou a Aveiro e reassumiu a regência da antiga filarmónica que
dirigira – a tal organizada com elementos da «Guarda Nacional» de 1834.
Era a que se chamava «Filarmónica de Aveiro» – para nós desde há muito
«Música Velha».
Entretanto, surgia um contratempo em 1855. Alguns
elementos da «Filarmónica de Aveiro» recusavam-se a tocar gratuitamente
na festividade que a Ordem Terceira de S. Francisco tomara a iniciativa
de levar a efeito em honra da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, cujo
dogma pontifício havia sido solenemente proclamado em 8 de Dezembro do
ano anterior. Em face disso, José Pinheiro Nobre e diversos componentes
da referida banda uniram-se à filarmónica da Vista Alegre. Pouco depois,
José Pinheiro Nobre, continuando desligado da banda donde saíra, fundava
e regia em Aveiro uma nova filarmónica, cuja estreia seria em 12 de Maio
de 1856 e à qual dera o título de «Filarmónica Aveirense». Em face da
ocorrência, e para evitar confusões, a «Filarmónica de Aveiro» passou a
designar-se por «Banda Amizade».
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Por motivos que se ignoram, José Pinheiro Nobre, em 1870,
abandonou a «Filarmónica Aveirense» que, após várias regências,
extinguir-se-ia mais tarde. A «Banda Amizade», por seu turno, também
esteve incorporada na Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários
(Bombeiros Velhos), desde 1890 até 1918, usando o fardamento dos
bombeiros.
Outras bandas musicais apareceram e desapareceram em
Aveiro – o que prova, pelo menos, uma extraordinária afeição dos
Aveirenses pela arte dos sons. Foi a charanga do Asilo-Escola Distrital,
organizada em 1889 por José Pinheiro Nobre e depois, em 1908,
transformada em banda marcial por António dos Santos Lé; foi a banda da
Escola Musical de José Estêvão, de António dos Santos Lé, criada em 1908
após a dissolução da «Filarmónica Aveirense»; foi a banda dos Bombeiros
Novos – a «Banda dos Guilhermes» – fundada em 1933 por António de Pinho
Nascimento e primeiramente regida por Delfim Matias.
Por estas palavras, podemos facilmente concluir que tem
sido relevante em Aveiro o gosto, o carinho e o culto pela Música, ao
longo dos últimos séculos. Muitas associações musicais aqui viram a luz
do dia e aqui viveram com maior ou menor duração; contudo, a «Banda
Amizade» – a filarmónica mais antiga de Aveiro, – apesar de momentos de
crise e de grandes dificuldades, tem-se mantido, porque alguns carolas –
dirigentes, executantes e amigos – deram-se e dão-se as mãos para
conservá-la e fazê-la progredir. Conta 150 anos... se é certa a data que
se convencionou marcar para o seu nascimento: ano – 1834; dia – 22 de
Novembro, festa litúrgica da mártir Santa Cecília, a celeste padroeira
dos músicos.
No decorrer deste ano de 1984, o que de melhor podemos
augurar à «Banda Amizade» – a velha «Filarmónica de Aveiro» – no dia em
que lhe apresentamos as nossas congratulações pelo seu sesquicentenário,
o que de melhor lhe podemos augurar é que os seus elementos constituam
verdadeiramente uma associação de amizade em família, que testemunhem
amizade aos outros e que difundam amizade à sua volta. Não será isto o
que pretendem, como supremo desejo, os componentes da «Música Velha»,
nas suas andanças pelo Pais e pela Europa, ao mesmo tempo que levam
consigo o nome de Aveiro?
João Gonçalves Gaspar
Ver
também o artigo:
Banda Amizade. Os primórdios
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