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Boletim n.º 4 - Ano II - 1984


NOS 150 ANOS DA BANDA AMIZADE

 

 

Resolveu a «Banda Amizade», de Aveiro, comemorar festivamente, no ano em curso, o seu sesquicentenário; é justo que todos nos congratulemos com a efeméride de uma prestimosa colectividade que, desde há muito, faz parte do nosso panorama citadino e social.

Cento e cinquenta anos da «Banda Amizade»! Todavia, por incrível que pareça, a data da sua fundação não é testificada com rigor histórico. Acontece assim frequentemente. Um homem não se torna herói ou uma colectividade não se enobrece logo ao nascer; são-no passadas dezenas de anos.

Depois, ao procurar pormenores dos seus primórdios, deparamos com dúvidas insolúveis ou com interrogações sem respostas convincentes. É o caso.

Segundo João Calisto Grilo, de Lisboa, que se dedicou ao estudo das sociedades filarmónicas, a nossa «Banda Amizade» haveria iniciado a sua marcha histórica em Novembro de 1834. «Terá sido – diz ele – a primeira filarmónica aveirense com carácter popular».

António dos Santos Lé, conhecido e credenciado professor de música e regente em Aveiro, tendo sido solicitado por Pedro de Freitas a dar a sua opinião autorizada, apenas se limitou a informar, em 1942: – «A Banda Amizade é a mais antiga desta Cidade, pois tem mais de cem anos de existência». Nesta ocasião – em 1942 – havia em Aveiro, além da referida, a Banda do Asilo-Escola Distrital, a Banda da Escola Musical de José Estêvão e a Banda dos Bombeiros Novos.

Uma curiosidade do século XVI foi o aparecimento da música militar – designação corrente das bandas regimentais, constituídas então unicamente por instrumentos de palheta, sopro e percussão; lembremos, porém, que já o cronista Fernão Lopes citou os trombeteiros de el-rei D. Pedro I, como componentes de grupos musicais, compostos por instrumentos de sopro, que o monarca português do século XIV tinha ao seu serviço.

Durante muito tempo, a música militar não conheceu organização nem repertório próprios; reduzia-se a certos toques breves e empregava apenas os instrumentos de percussão. Foi nos finais de seiscentos e durante o século XVIII que tal música tomou forma e se individualizou, surgindo então as primeiras bandas, sobretudo com pífaros, oboés, trombetas e tambores, cujo leque instrumental se foi alargando aos clarinetes, às trompas e aos fagotes. As marchas, as aberturas, os passo dobles, faziam parte dos seus repertórios nos concertos públicos. / 42 /

Vieram depois os flautins, as flautas, as requintas, os baixos, os saxofones, os cornetins, os bombardinos, os trombones, os contrabaixos, o bombo, os rufos, os pratos, os ferrinhos... Todos esses instrumentos, acrescidos aos anteriores, vieram constituir as bandas militares, que se vulgarizaram por todo o século XIX; quase não se conhecia um regimento ou um simples destacamento que não tivesse o seu agrupamento musical.

Para o gosto da música no Exército concorreu muito a presença das tropas britânicas em Portugal. Deve-se até a Beresford um novo regulamento que mandava pagar trezentos réis por dia ao mestre da música nos corpos militares e duzentos réis a cada músico, uns e outros com direito a farda, soldo e pão, enquanto durasse o tempo de ajuste. Todavia, para cercear despesas, em 1813 entendeu-se manter apenas as bandas nos regimentos de Infantaria e nos batalhões de Caçadores.

As bandas militares foram uma das formas – e de grande importância – da divulgação da música sinfónica instrumental e das filarmónicas civis e populares.

Em 1817, contudo, instituiu-se em Aveiro uma capela de padres, regida pelo Padre José Joaquim Plácido – o Padre Parracho – irmão do hábil jurisconsulto aveirense Joaquim António Plácido. Essa capela organizou-se para se fazerem com solenidade as festas litúrgicas na sé de Aveiro, que era então na igreja da Misericórdia; imitava certamente a charamela do Arcebispo de Braga, criada para abrilhantar as festividades religiosas, à míngua de bandas populares. Foi aquele sacerdote que deu as primeiras lições de música ao então menino de coro da igreja da Misericórdia (onde também havia uma colegiada), José Pinheiro Nobre – o Marcela – que depois foi discípulo do espanhol Cléder, exímio tocador de trombone de varas.

Em princípios de 1834, organizou-se, em diversas localidades do País, a chamada «Guarda Nacional» que, em Aveiro e Ílhavo, teve existência jurídica por decreto de 29 de Março desse ano. José Pinheiro Nobre, o tal menino de coro da igreja da Misericórdia e pequeno discípulo do Padre Parracho, contava agora treze anos e era um já apreciável executante de trompa; nesta qualidade, fazia parte da banda daquela «Guarda Nacional», ao mesmo tempo que prosseguia no estudo de música com D. Rumán Avias, de nacionalidade espanhola, que foi mestre da banda do regimento de Caçadores n.º 28. Como este e como Cléder, foi depois José Pinheiro Nobre notável executante de trombone de varas.

Nem todos os corpos militares tinham bandas privativas; por vezes, as filarmónicas eram contratadas por períodos anuais. José Pinheiro Nobre, findo o contrato com a «Guarda Nacional», foi para o regimento de Viana do Castelo; todavia, transferida esta unidade para Viseu, ele continuaria naquela cidade, ao serviço do novo regimento, aí instalado. Contudo, após os sucessivos contratos que ali assinara, José Pinheiro Nobre regressava a Aveiro, em 1844. Dois anos depois, juntando-se ao Padre João de Pinho, reagrupou a antiga «Filarmónica de Aveiro», com os elementos saídos da «Guarda Nacional», então dissolvida; eram quase todos espanhóis e entre eles contava-se o célebre André Navarro – segundo o depoimento de José Ferreira Pinto de Sousa.

Lamento não apresentar aqui qualquer dado histórico que apoditicamente nos certifique a data exacta da fundação da «Música Velha». Se não fosse a afirmação de que José Pinheiro Nobre, em 1846, reorganizou a antiga «Filarmónica de Aveiro», concluir-se-ia que esta teria sido fundada em 1846, e não em 1834, como se supõe. Teria sido José Pinheiro Nobre, aos treze anos de idade (1834), o elemento preponderante na fundação da «Música Velha»? A afirmativa não é muito de acreditar.

Em 1844, no dia 14 de Maio, rebentara a revolução chamada da «Patuleia» ou da «Maria da Fonte». Para a apoiar, formaram-se «corpos populares», que logo fundaram bandas privativas ou contrataram bandas civis. Em Aveiro, a banda da «Maria da Fonte» foi organizada e regida por José Pinheiro Nobre. Apesar de esse batalhão de populares ser extinto em 23 de Junho de 1847, a filarmónica prosseguiu, sob a mesma batuta, até 26 de Outubro de 1849, data em que José Pinheiro Nobre foi para Anadia dirigir a filarmónica local. Entretanto, a «Música Velha» lá ia continuando, pior ou melhor, embora sem a batuta de José Pinheiro Nobre.

Todavia, em 1 de Junho de 1853, José Pinheiro Nobre regressou a Aveiro e reassumiu a regência da antiga filarmónica que dirigira – a tal organizada com elementos da «Guarda Nacional» de 1834. Era a que se chamava «Filarmónica de Aveiro» – para nós desde há muito «Música Velha».

Entretanto, surgia um contratempo em 1855. Alguns elementos da «Filarmónica de Aveiro» recusavam-se a tocar gratuitamente na festividade que a Ordem Terceira de S. Francisco tomara a iniciativa de levar a efeito em honra da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, cujo dogma pontifício havia sido solenemente proclamado em 8 de Dezembro do ano anterior. Em face disso, José Pinheiro Nobre e diversos componentes da referida banda uniram-se à filarmónica da Vista Alegre. Pouco depois, José Pinheiro Nobre, continuando desligado da banda donde saíra, fundava e regia em Aveiro uma nova filarmónica, cuja estreia seria em 12 de Maio de 1856 e à qual dera o título de «Filarmónica Aveirense». Em face da ocorrência, e para evitar confusões, a «Filarmónica de Aveiro» passou a designar-se por «Banda Amizade». / 43 /

Por motivos que se ignoram, José Pinheiro Nobre, em 1870, abandonou a «Filarmónica Aveirense» que, após várias regências, extinguir-se-ia mais tarde. A «Banda Amizade», por seu turno, também esteve incorporada na Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários (Bombeiros Velhos), desde 1890 até 1918, usando o fardamento dos bombeiros.

Outras bandas musicais apareceram e desapareceram em Aveiro – o que prova, pelo menos, uma extraordinária afeição dos Aveirenses pela arte dos sons. Foi a charanga do Asilo-Escola Distrital, organizada em 1889 por José Pinheiro Nobre e depois, em 1908, transformada em banda marcial por António dos Santos Lé; foi a banda da Escola Musical de José Estêvão, de António dos Santos Lé, criada em 1908 após a dissolução da «Filarmónica Aveirense»; foi a banda dos Bombeiros Novos – a «Banda dos Guilhermes» – fundada em 1933 por António de Pinho Nascimento e primeiramente regida por Delfim Matias.

Por estas palavras, podemos facilmente concluir que tem sido relevante em Aveiro o gosto, o carinho e o culto pela Música, ao longo dos últimos séculos. Muitas associações musicais aqui viram a luz do dia e aqui viveram com maior ou menor duração; contudo, a «Banda Amizade» – a filarmónica mais antiga de Aveiro, – apesar de momentos de crise e de grandes dificuldades, tem-se mantido, porque alguns carolas – dirigentes, executantes e amigos – deram-se e dão-se as mãos para conservá-la e fazê-la progredir. Conta 150 anos... se é certa a data que se convencionou marcar para o seu nascimento: ano – 1834; dia – 22 de Novembro, festa litúrgica da mártir Santa Cecília, a celeste padroeira dos músicos.

No decorrer deste ano de 1984, o que de melhor podemos augurar à «Banda Amizade» – a velha «Filarmónica de Aveiro» – no dia em que lhe apresentamos as nossas congratulações pelo seu sesquicentenário, o que de melhor lhe podemos augurar é que os seus elementos constituam verdadeiramente uma associação de amizade em família, que testemunhem amizade aos outros e que difundam amizade à sua volta. Não será isto o que pretendem, como supremo desejo, os componentes da «Música Velha», nas suas andanças pelo Pais e pela Europa, ao mesmo tempo que levam consigo o nome de Aveiro?

João Gonçalves Gaspar

Ver também o artigo: Banda Amizade. Os primórdios

 

 

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