REGIÃO DE ÁGUEDA
Sobre a espalda dos seus três outeiros, voltada para as
bandas do sul, desdobra-se aos pés da vila esse lindo Vale de Águeda,
sempre verde, através do qual, beijando-lhe as rendas finas dos
salgueiros e dos álamos graciosos, o rio passa esperto e gárrulo, de
águas claras, até ir casar-se lá abaixo com as águas do Vouga, aí por
alturas de Almear. – Só por si, o rio Águeda, o Vouga, o Cértima, cada
qual com a feição típica da gente que lhes mora à beira e das culturas
variadas que o torrão bendito das suas arribas oferece, fazem meia
lindeza dum painel. Larguem-lhes, ao correr da água, a vela branca dum
barco; pautem-lhes nas almargens húmidas o xadrez brunido duma lavrada;
armem-lhes a presa duma nora ou assentem-lhes nos cambalhões o velho
esqueleto dum estanca-rio ou duma cegonha esguia; – e logo
fica talhado o fundo artístico duma tela. Como que debruçadas sobre o
Vale de Águeda, a escutarem talvez os descantes das lavradeiras, das
mondadeiras, das sachadeiras, todas as povoações ribeirinhas por ali se
aquedam então, no cume e nas encostas dos outeiros.
E isto, notem bem, é só ali, à mão de semear, como o
outro diz. Que, se uma pessoa quiser ver o que é lindo a valer, dê-se
então ao doce regalo de passear ao longo de todo esse concelho. – Logo
lhe aparece, quase perdido do mundo, aquele trechozinho de paisagem
romântica, que se chama o Souto do Rio; aqueles varridos e desafogados
planaltos de Castanheira do Vouga e de Macieira de Alcoba, lá para as
bandas do Caramulo; aquele majestoso rincão do Alfusqueiro, com a sua
ponte de mistério que foi obra do demónio; aquele painel suíço da
Pateira de Fermentelos, pintalgada de ínsuas verdes, que até parece toda
ela um desenho à pena, com as velas gregas a emergirem das águas; aquela
histórica cavada do MarneI do Vouga, com o seu farrapo de história,
manchado de sangue ainda, a secar ao sol, pelos galhos das árvores
chamuscadas de pólvora miguelista; aquela recolhida cerca de Serém, com
a sombra dos seus frades em penitência eterna; todos esses pinhais das
gândaras, as encostas vestidas de carvalheiras, pomares opulentos,
fartos vinhedos... Que sei eu?
E então, as aldeias de Águeda, com os seus ramalhudos
parreirais em dossel sobre as vielas, os sou tos sombrios, os adros
alegres ao agasalho das grandes árvores centenárias, os eirados varridos
de bons ares onde se trabalha e onde se canta a toda a hora, os caminhos
velhos que levam até ao coração dos campos e dos montes... que lindos
retalhos de painel se não perdem por aí, ao desbarato, sem que Portugal
os veja! Aldeias montezinhas e aldeias ribeirinhas, umas no cimo rude
dos montes, abraçadas por espessos pinhais, outras à beira dos rios,
adormecidas à sombra fresca dos álamos... E, depois, tudo humilde, tudo
singelo, tudo à lei de natureza nos costumes e na tradição, sem a sombra
dum castelo velho que fale à gente de guerras ou de orgulhosas
suzeranias de senhorios históricos tudo, assim, em casas modestas, à
flor da própria terra, com o curral das vacas e o alpendre das ovelhas
ali mesmo à porta da rua, sem outro enfeite que não seja um canteiro de
manjericões ou de cravos a dizer a quem passa que mora ali, debaixo
daquelas telhas, a alma resignada e simples duma família de gente boa...
Se essa aldeia se dependura das espaldas negras do Caramulo, batidas do
suão, aí temos nós, a dar alma ao painel, a serraninha que vai
passando, embiocada na sua capucha de serguilha, toda a rever-se no seu
avental de riscadinho azul, bordado a trancinha e a roca do fiado sempre
à cintura; e o fuso, fia que fia, a trabalhar no burel da sua saia ou na
estopa da sua camisa... São mulheres de Agadão, de Belazaima, de
Castanheira do Vouga, de Macieira de Alcoba. – Mas, se a aldeia dorme
tranquila, a meio das planícies verdes e fartas, então eis que a
camponesa ribeirinha aparece por ali, de aguilhada ao ombro, a guiar
os bois da sua lavoura, de cantiga alegre a voar-lhe sempre da garganta,
olhos contentes, a andar com toda a graça esperta de quem dança que até
parece que veio agora mesmo da folia dum arraial.
Adolfo Portela
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