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Boletim n.º 1 - Ano I - 1983

REGIÃO DE ÁGUEDA

Sobre a espalda dos seus três outeiros, voltada para as bandas do sul, desdobra-se aos pés da vila esse lindo Vale de Águeda, sempre verde, através do qual, beijando-lhe as rendas finas dos salgueiros e dos álamos graciosos, o rio passa esperto e gárrulo, de águas claras, até ir casar-se lá abaixo com as águas do Vouga, aí por alturas de Almear. – Só por si, o rio Águeda, o Vouga, o Cértima, cada qual com a feição típica da gente que lhes mora à beira e das culturas variadas que o torrão bendito das suas arribas oferece, fazem meia lindeza dum painel. Larguem-lhes, ao correr da água, a vela branca dum barco; pautem-lhes nas almargens húmidas o xadrez brunido duma lavrada; armem-lhes a presa duma nora ou assentem-lhes nos cambalhões o velho esqueleto dum estanca-rio ou duma cegonha esguia; – e logo fica talhado o fundo artístico duma tela. Como que debruçadas sobre o Vale de Águeda, a escutarem talvez os descantes das lavradeiras, das mondadeiras, das sachadeiras, todas as povoações ribeirinhas por ali se aquedam então, no cume e nas encostas dos outeiros.

E isto, notem bem, é só ali, à mão de semear, como o outro diz. Que, se uma pessoa quiser ver o que é lindo a valer, dê-se então ao doce regalo de passear ao longo de todo esse concelho. – Logo lhe aparece, quase perdido do mundo, aquele trechozinho de paisagem romântica, que se chama o Souto do Rio; aqueles varridos e desafogados planaltos de Castanheira do Vouga e de Macieira de Alcoba, lá para as bandas do Caramulo; aquele majestoso rincão do Alfusqueiro, com a sua ponte de mistério que foi obra do demónio; aquele painel suíço da Pateira de Fermentelos, pintalgada de ínsuas verdes, que até parece toda ela um desenho à pena, com as velas gregas a emergirem das águas; aquela histórica cavada do MarneI do Vouga, com o seu farrapo de história, manchado de sangue ainda, a secar ao sol, pelos galhos das árvores chamuscadas de pólvora miguelista; aquela recolhida cerca de Serém, com a sombra dos seus frades em penitência eterna; todos esses pinhais das gândaras, as encostas vestidas de carvalheiras, pomares opulentos, fartos vinhedos... Que sei eu?

E então, as aldeias de Águeda, com os seus ramalhudos parreirais em dossel sobre as vielas, os sou tos sombrios, os adros alegres ao agasalho das grandes árvores centenárias, os eirados varridos de bons ares onde se trabalha e onde se canta a toda a hora, os caminhos velhos que levam até ao coração dos campos e dos montes... que lindos retalhos de painel se não perdem por aí, ao desbarato, sem que Portugal os veja! Aldeias montezinhas e aldeias ribeirinhas, umas no cimo rude dos montes, abraçadas por espessos pinhais, outras à beira dos rios, adormecidas à sombra fresca dos álamos... E, depois, tudo humilde, tudo singelo, tudo à lei de natureza nos costumes e na tradição, sem a sombra dum castelo velho que fale à gente de guerras ou de orgulhosas suzeranias de senhorios históricos tudo, assim, em casas modestas, à flor da própria terra, com o curral das vacas e o alpendre das ovelhas ali mesmo à porta da rua, sem outro enfeite que não seja um canteiro de manjericões ou de cravos a dizer a quem passa que mora ali, debaixo daquelas telhas, a alma resignada e simples duma família de gente boa... Se essa aldeia se dependura das espaldas negras do Caramulo, batidas do suão, aí temos nós, a dar alma ao painel, a serraninha que vai passando, embiocada na sua capucha de serguilha, toda a rever-se no seu avental de riscadinho azul, bordado a trancinha e a roca do fiado sempre à cintura; e o fuso, fia que fia, a trabalhar no burel da sua saia ou na estopa da sua camisa... São mulheres de Agadão, de Belazaima, de Castanheira do Vouga, de Macieira de Alcoba. – Mas, se a aldeia dorme tranquila, a meio das planícies verdes e fartas, então eis que a camponesa ribeirinha aparece por ali, de aguilhada ao ombro, a guiar os bois da sua lavoura, de cantiga alegre a voar-lhe sempre da garganta, olhos contentes, a andar com toda a graça esperta de quem dança que até parece que veio agora mesmo da folia dum arraial.

Adolfo Portela

 

 

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