Rangel de Quadros, Aveirenses Notáveis. Aveiro, 1ª edição, Aveiro, Câmara Municipal de Aveiro, 2000, (Revisão de J. Gonçalves Gaspar), pp. 8-13.


Fernão de Oliveira
(1507-c.1581)

Talvez nenhum aveirense e muitos poucos portugueses tivessem uma vida tão cheia de peripécias, como Fernão de Oliveira. Alguns escritores dão-lhe diversos nomes, o que faz crer na existência de indivíduos diversos, posto que esses nomes se refiram ao mesmo. Assim lhe chamam Fernão de Oliveira, ou Fernão Oliveira; Fernando Oliveira, ou Fernando de Oliveira.

Inocêncio Francisco da Silva afirma que ele nascera em Pedrógão, na Província da Beira. Nesta parte seguiu a opinião do Abade de Sever, na Biblioteca Lusitana. Também afirma que ele era presbítero secular. Parece-me, porém, que Fernão de Oliveira havia sido frade dominicano, ou pelo menos fora noviço, e que depois se houvera secularizado.

As notícias biográficas, que vou expor, assim indicarão, e por elas facilmente se vê que Aveiro fora a pátria de tão notável escritor.

Por uma carta do Sr. Henrique Lopes de Mendonça, datada de 23 de Novembro de 1882 e dirigida ao Sr. Marques Gomes, sabe-se que Fernão de Oliveira nascera em 1507 e fora baptizado em Couto do Mosteiro, no actual concelho de Santa Comba Dão, no Bispado de Coimbra, Distrito de Viseu.(1)

Parece que era filho de Heitor de Oliveira e D. Branca da Costa. O pai fora juiz dos Órfãos em Pedrógão e aí, por certo, passou o biografado os primeiros anos da sua existência. E é de crer que disso viesse o engano.

Crê-se, pois, que Fernão de Oliveira era descendente de uma família aveirense, que usava do mesmo apelido e cujo tronco havia sido um Pedro ou um Diogo de Oliveira que, havendo casado com Leonor Ribeiro, teve duas filhas e um filho, chamado Diogo de Oliveira. Este foi casado com D. Catarina Rangel, filha de Miguel Pires Pericão e Isabel Miguéis, que parecia ser da família dos Rangéis de Aveiro. Desse matrimónio nasceu Francisco de Oliveira Rangel Barreto, que se casou em 1628.

/ pág. 9 / Desde a idade de nove ou dez anos foi Fernão de Oliveira educado no convento de S. Domingos em Aveiro, donde foi levado para o convento da mesma Ordem, em Évora, e aí recebeu as lições de André de Resende. Muito inteligente e muito estudioso, aproveitou sempre as prelecções desse e de outros mestres não menos insignes.

Quando, porém, chegou aos vinte e cinco anos e porque tinha um espírito irrequieto, fugiu do convento e retirou-se para Castela, onde viveu alguns anos e onde se dedicou muito ao estudo da língua espanhola.

Tendo regressado a Lisboa, publicou em 1536 a sua Grammatica da Língoagem Portuguesa, impressa na oficina de Germão Galhardo e oferecida a D. Fernando de Almeida.

Desde que chegou a Lisboa até 1540, empregou-se em leccionar diversas disciplinas e, além de outros alunos, pertencentes a famílias ilustres, teve os filhos de João de Barros, D. António, filho do mesmo D. Fernando de Almeida e os filhos do barão de Alvito.

Para lhe ser perdoada a sua fuga do convento, valeu-lhe a protecção do conde da Castanheira(2) e de outros indivíduos de alta posição social.

No ano de 1541 ou no imediato, e por motivos que se ignoram, retirou-se para Itália. Em 1543, veio de Roma e demorou-se em Portugal até ao meado do ano seguinte. Pouco depois, teve uma divergência com um livreiro, a quem mandou encadernar uma obra, e receou que ele o acusasse à Inquisição.

Efectivamente, o livreiro declarou-se inimigo de Fernão de Oliveira, e este deixou as vestes sacerdotais e fugiu para a França. Aí alistou-se como soldado e serviu na guerra, que Francisco I, rei daquela nação, movera contra a Inglaterra. Depois de muitas e muito variadas peripécias, em que se tornou notável, praticando actos de valor, achava-se em Rouen, em 1546.

Na primavera desse ano, saiu da Foz do Sena numa armada, que tentara perseguir outra dos ingleses. Estes, por hábeis estratégias e porque os ventos lhes eram favoráveis, aprisionaram a armada francesa. Fernão de Oliveira, com outros companheiros, foi levado cativo para a Inglaterra.

Enquanto estivera na França, deu-se ao estudo das coisas marítimas. E as guerras, em que entrou, mais concorreram, para que o seu espírito, bastante lúcido, mais se desenvolvesse no conhecimento desta matéria.

E a respeito das construções das naus foi a sua opinião tida como autorizada e foi consultada muitas vezes. Também foi ouvida e seguida em certos actos de guerra e na divisão das presas.

Não esteve Fernão de Oliveira muito tempo na Inglaterra, porque já no Outono de 1547 conseguiu voltar à pátria, protegido pelo conde da Castanheira, a quem muitas vezes escrevera, pedindo a sua valiosa protecção e queixando-se de nostalgia.

/ pág. 10 / Enquanto esteve naquele país, assistiu ás lutas e mútuas perseguições, que ali se deram por causa das ideias religiosas e políticas. E, pelos elogios que fazia a Henrique VIII, parecia inclinar-se um pouco ao protestantismo, e porque o monarca inglês o protegera e lhe havia estabelecido uma tença. Henrique VIII mandou por Fernão de Oliveira uma carta a D. João III.(3)

O rei de Portugal estranhou os modos do portador, bem como o traje e o aspecto, impróprios de um religioso. Oliveira prometeu que havia de mudar de traje, desculpando-se de que não o fizera por falta de tempo; assim como prometeu de se emendar dos erros passados e tratar da salvação da sua alma.

Infelizmente, porém, nem os cristãos velhos nem os cristãos novos simpatizavam com ele. Aqueles consideravam-no um ímpio, um rebelde ás leis da Igreja Católica. Os cristãos novos chamavam-lhe traidor, supondo que ele tinha ido a Roma para conseguir, a pedido do Rei, uma bula para em Portugal se estabelecer o Tribunal do Santo Oficio.

João de Borgonha, que era o livreiro que dele se tornara inimigo, encontrou-o um dia à porta de outro livreiro e travou conversação com Oliveira. Depois de longa e renhida questão, ouviu-lhe frases pouco ortodoxas. Logo tomou testemunhas e tratou de o acusar à Inquisição. E, para isso, também concorreu André de Resende que, no convento de Évora, havia sido o seu professor de gramática.

Este incidente deu-se em 18 de Novembro do mesmo ano de 1547. O processo foi tão rapidamente instaurado e tão rapidamente depuseram as testemunhas, que no dia 21 já Fernão de Oliveira comparecia perante os juízes.

Escusado será narrar tudo o que se passou no Tribunal. No entanto, direi que se tornou muito notável a franqueza, com que falou o réu, defendendo as suas opiniões. E foi então que, fazendo o seu depoimento, declarou que era natural da vila de Aveiro.

Apesar(4) de ter declarado que era cristão velho, ficou encerrado nas masmorras do Santo Oficio.

Para dali sair, lembrou-se de recorrer à protecção do mencionado conde da Castanheira, a quem dirigiu uma carta em 5 de Dezembro na qual se mostrava muito humilde, ainda que se dizia que, em todas as coisas de que o acusavam, não havia pecado mortal.

São bem notáveis os documentos da sua defesa, especialmente o que escreveu em

latim e que em 23 de Dezembro foi, por mão do seu procurador, apresentado aos juízes.

Depois de instado, por vezes, para abjurar os seus erros, fazer deles confissão pública e deles pedir perdão a Deus, recorreu ao cardeal-infante para que lhe fosse comutada a pena em clausura, em qualquer mosteiro.

/ pág. 11 / A 3 de Setembro de 1550, foi-lhe concedido o ser enclausurado no mosteiro de Belém, onde deveria viver tonsurado e com hábito e donde não poderia sair, senão depois do tempo preciso, para sossego da sua consciência e salvação da sua alma.

O cardeal D. Henrique, em provisão de 22 de Agosto de 1551, concedeu-lhe a liberdade, sob a condição de não se ausentar deste país, sem licença do mesmo cardeal.

Livre da jurisdição inquisitorial, Fernão de Oliveira procurou ensejo para novas aventuras e, em Agosto de 1552, embarcou numa frota, que se dirigia à Africa, numa expedição destinada a restituir a Buharen os estados, que o Xerife Muley Hamed lhe havia usurpado.

São bem curiosas as descrições que ele fizera dos diversos combates, dos muitos trabalhos e dos grandes perigos por que passaram ele e seus companheiros.

Cativos em Argel, foi ele um dos escolhidos para, do rei daquele estado, alcançarem o resgate para todos.

Mas o seu génio irrequieto foi motivo de queixas a Inácio Nunes, um dos capitães da frota, e a D. Pedro de Meneses, capitão da praça de Ceuta, aonde os emissários chegaram no dia 24 de Novembro e onde se demoraram cinco dias, por causa de Gaspar Fernandes ter de aí curar-se de um ferimento, que recebera num braço.

Depois de diversos contractos, em 1553 voltaram a este país os cativos.

No ano seguinte concluiu Fernão de Oliveira a sua obra Arte da Guerra do Mar que, em 28 de Outubro, ofereceu a D. Nuno da Cunha, capitão das galés do Rei de Portugal. Esta obra foi impressa em Coimbra na oficina de João Álvares. Os trabalhos da impressão acabaram em 4 de Julho de 1555.(5)

Na mesma cidade, estava então o autor exercendo o emprego de revisor ou corrector da Imprensa da Universidade e, tendo sido levado em conta os seus estudos no convento de S. Domingos de Évora, foi-lhe dado o título honorífico de licenciado. Também aí se dedicou ao ensino da retórica, talvez particularmente.

Mas, em 26 de Outubro do mesmo ano, já ele estava novamente nos cárceres da Inquisição de Lisboa. Para isso serviu de pretexto o haver publicado aquela obra, em vez de se dedicar a exercícios religiosos, o que fora uma das condições, sob que lhe havia sido permitido, em 1551, o sair de Belém.

A verdadeira causa, porém, foram os falsos amigos, talvez alguns invejosos, o seu génio e, principalmente, a acrimónia, com que nessa obra censura alguns dos nossos capitães marítimos.

Não se sabe quanto tempo estivera preso, mas sabe-se que D. Sebastião, por um alvará de 20 de Julho de 1565 lhe concedeu uma tença de 20:000 réis anuais, a começar em 6 desse mês e que ele receberia, enquanto não fosse provido em qualquer benefício eclesiástico, de rendimento superior.

/ pág. 12 /  Depois dessa data e, portanto, quando já estava gasto de desvarios e cansado de aventuras, compôs o Livro da Fabrica das Naos.

Antes disso, compôs em latim a Arte da Navegação (Ars Nautica) — obra que não se sabe se chegou a ser impressa ou se levou descaminho, ainda manuscrita.(6)

A sua Grammatica da Lingoagem Portuguesa é hoje obra muito rara, e é impressa em quarto e em letras góticas. Foi dirigida «ao mui magnífico senhor e nobre fidalgo o senhor dom Fernando de Almada, filho herdeiro do mui prudente e animoso senhor dom Antão, capitão-geral de Portugal.»

Foi impressa por ordem do mesmo D. Fernando, em casa de Germão Galharde a 27 de Janeiro de 1536. Assim o diz o fim do livro, que termina por estas palavras: — "Deo gratias. Todas coisas têm seu tempo e os ociosos o perdem".

Esta obra foi reproduzida em caracteres modernos, no Porto e em 1871, na Tipografia Portuguesa, de que era proprietário o falecido Anselmo Evaristo de Morais Sarmento, natural de Aveiro e de uma família, aqui bem conhecida.(7)

O Livro da Fabrica das Naos pertenceu à biblioteca do Mosteiro de Alcobaça, à qual fora dado pelo Padre Mestre Frei José Sanches. Depois da extinção das Ordens religiosas, foi levado para a Biblioteca Nacional de Lisboa, onde se conserva. É obra de linguagem apurada e muito clara.

O Sr. Henrique Lopes de Mendonça publicou-a em volume de grandes dimensões, apresentando duas páginas litografadas, cópia exacta e perfeita imitação da letra do autor, e com as emendas, que ele à margem havia feito. Precede-a uma longa e bem elaborada biografia de Fernão de Oliveira, a qual muito me auxiliou para as notícias, que aí ficam, e que bem pode ser consultada pelas pessoas que desejarem notícias mais amplas e mais circunstanciadas acerca da vida deste aveirense. Tanto as notícias biográficas como as bibliografias são enriquecidas com documentos e notas muito importantes que, explicando o texto, muito elucidam os leitores.(8)

Além das obras, já indicadas, deixou Fernão de Oliveira algumas inéditas, tais como:

- Uma Hestorea de Portugal, em três livros; e mais três capítulos a respeito de D. Sancho I;

/ pág. 13 /

- A Primeyra parte do Livro da antiguidade, nobresa, liberdade e imunidade do Reyno de Portugal (Faltam a esta obra os sete primeiros capítulos);

- Uma tradução da Re Rustica de Columela (foi interrompida no capítulo IX e foi publicada nos "Anais das Ciências, das Artes e das Letras", Paris, 1819 a 1821; Livro IV a XII);

- Cópia de parte da Arte de Gramática de Língua Castelhana, por el doutíssimo maestro António Nebrissa, compuesta em castelhano. Impressa em SaIamanca, pela primeira vez, em 1492.

Estas obras estão na Biblioteca Nacional de Paris e figuram no Catálogo dos Manuscritos Portugueses, coligido por MoreI Fatio.

Não será fácil saber-se quando e onde faleceu Fernão de Oliveira. Segundo algumas opiniões, parece ter falecido em 1581 e é de crer que fosse em Lisboa, pois não consta que houvesse mudado de terra, depois que começou a receber a tença, concedida por el-rei D. Sebastião.(9) 

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(1) - Sobre a sua genealogia e nascimento, escreveu o Padre Fernão de Oliveira, que foi frade dominicano do convento de Évora, no seu livro Ars Nautica, fl. 7v, redigido em latim: - "Aveiro é o lugar onde me geraram os pais, da Ordem da Cavalaria, de costumes modestos e de fortuna vulgar; mas o recém-nascido soltou os primeiros vagidos na Geslosa; a igreja matriz de S.ta Columba [Couto do Mosteiro] deu-lhe o baptismo da fé; Fernando Oliveira foi-me posto como nome; como oliveira produtiva dou frutos ao navegante". O referido manuscrito, nunca editado, conserva-se na biblioteca da Universidade de Leiden, Holanda. Embora natural da povoação da Gestosa, da freguesia de Couto do Mosteiro, Fernão de Oliveira não negou a sua génese aveirense, dizendo-se mesmo filho de Aveiro, porque aqui concebido (Processo lnquisitorial em que foi réu, depoimento de 21 de Novembro de 1547). 

(2) - D. António de Ataíde, primeiro conde da Castanheira.

(3) - Henrique VlII faleceu em Janeiro de 1547; por isso, a referida carta terá sido escrita e enviada pelo seu sucessor,

(4) - Eduardo VI. - Vd. nota n.º 1.

(5) - A Arte da Guerra do Mar. Foi novamente editada em 1937, 1969 e 1983 (Edições Culturais da Marinha).

(6) - O manuscrito Ars Nautica conserva-se na biblioteca da Universidade de Leiden — Holanda e foi descoberto e dado a conhecer pelo Prof. Luís de Matos, em 1960, no Boletim Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira, Vol. I, n.º 1, pgs.239-251.

(7) - Depois de 1871, outras edições se seguiram: - 1933, 1975 (Imprensa Nacional - Casa da Moeda) e 1988 (edição fac-similada - Biblioteca Nacional de Lisboa)

(8) - Título do livro de Mendonça, publicado em 1898, na Tipografia da Academia Real das Ciências: - O Padre Fernando Oliveira e a sua Obra Náutica.

(9) - Ou terá emigrado para França com os partidários de D. António, Prior do Crato, e aí tenha falecido, uma vez que os últimos manuscritos se encontram em Paris e pertenceram ao espólio do Cardeal Mazarino.


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