Talvez nenhum
aveirense e muitos poucos portugueses tivessem uma vida tão cheia de
peripécias, como Fernão de Oliveira. Alguns escritores dão-lhe diversos
nomes, o que faz crer na existência de indivíduos diversos, posto que
esses nomes se refiram ao mesmo. Assim lhe chamam Fernão de Oliveira, ou
Fernão Oliveira; Fernando Oliveira, ou Fernando de Oliveira.
Inocêncio Francisco
da Silva afirma que ele nascera em Pedrógão, na Província da Beira.
Nesta parte seguiu a opinião do Abade de Sever, na Biblioteca Lusitana.
Também afirma que ele era presbítero secular. Parece-me, porém, que
Fernão de Oliveira havia sido frade dominicano, ou pelo menos fora
noviço, e que depois se houvera secularizado.
As notícias
biográficas, que vou expor, assim indicarão, e por elas facilmente se vê
que Aveiro fora a pátria de tão notável escritor.
Por uma carta do Sr.
Henrique Lopes de Mendonça, datada de 23 de Novembro de 1882 e dirigida
ao Sr. Marques Gomes, sabe-se que Fernão de Oliveira nascera em 1507 e
fora baptizado em Couto do Mosteiro, no actual concelho de Santa Comba
Dão, no Bispado de Coimbra, Distrito de Viseu.(1)
Parece que era filho
de Heitor de Oliveira e D. Branca da Costa. O pai fora juiz dos Órfãos
em Pedrógão e aí, por certo, passou o biografado os primeiros anos da
sua existência. E é de crer que disso viesse o engano.
Crê-se, pois, que
Fernão de Oliveira era descendente de uma família aveirense, que usava
do mesmo apelido e cujo tronco havia sido um Pedro ou um Diogo de
Oliveira que, havendo casado com Leonor Ribeiro, teve duas filhas e um
filho, chamado Diogo de Oliveira. Este foi casado com D. Catarina
Rangel, filha de Miguel Pires Pericão e Isabel Miguéis, que parecia ser
da família dos Rangéis de Aveiro. Desse matrimónio nasceu Francisco de
Oliveira Rangel Barreto, que se casou em 1628.
/
pág. 9 / Desde a
idade de nove ou dez anos foi Fernão de Oliveira educado no convento de
S. Domingos em Aveiro, donde foi levado para o convento da mesma Ordem,
em Évora, e aí recebeu as lições de André de Resende. Muito inteligente
e muito estudioso, aproveitou sempre as prelecções desse e de outros
mestres não menos insignes.
Quando, porém, chegou
aos vinte e cinco anos e porque tinha um espírito irrequieto, fugiu do
convento e retirou-se para Castela, onde viveu alguns anos e onde se
dedicou muito ao estudo da língua espanhola.
Tendo regressado a
Lisboa, publicou em 1536 a sua Grammatica da Língoagem Portuguesa,
impressa na oficina de Germão Galhardo e oferecida a D. Fernando de
Almeida.
Desde que chegou a
Lisboa até 1540, empregou-se em leccionar diversas disciplinas e, além
de outros alunos, pertencentes a famílias ilustres, teve os filhos de
João de Barros, D. António, filho do mesmo D. Fernando de Almeida e os
filhos do barão de Alvito.
Para lhe ser perdoada
a sua fuga do convento, valeu-lhe a protecção do conde da Castanheira(2)
e de outros indivíduos de alta posição social.
No ano de 1541 ou no
imediato, e por motivos que se ignoram, retirou-se para Itália. Em 1543,
veio de Roma e demorou-se em Portugal até ao meado do ano seguinte.
Pouco depois, teve uma divergência com um livreiro, a quem mandou
encadernar uma obra, e receou que ele o acusasse à Inquisição.
Efectivamente, o
livreiro declarou-se inimigo de Fernão de Oliveira, e este deixou as
vestes sacerdotais e fugiu para a França. Aí alistou-se como soldado e
serviu na guerra, que Francisco I, rei daquela nação, movera contra a
Inglaterra. Depois de muitas e muito variadas peripécias, em que se
tornou notável, praticando actos de valor, achava-se em Rouen, em 1546.
Na primavera desse
ano, saiu da Foz do Sena numa armada, que tentara perseguir outra dos
ingleses. Estes, por hábeis estratégias e porque os ventos lhes eram
favoráveis, aprisionaram a armada francesa. Fernão de Oliveira, com
outros companheiros, foi levado cativo para a Inglaterra.
Enquanto estivera na
França, deu-se ao estudo das coisas marítimas. E as guerras, em que
entrou, mais concorreram, para que o seu espírito, bastante lúcido, mais
se desenvolvesse no conhecimento desta matéria.
E a respeito das
construções das naus foi a sua opinião tida como autorizada e foi
consultada muitas vezes. Também foi ouvida e seguida em certos actos de
guerra e na divisão das presas.
Não esteve Fernão de
Oliveira muito tempo na Inglaterra, porque já no Outono de 1547
conseguiu voltar à pátria, protegido pelo conde da Castanheira, a quem
muitas vezes escrevera, pedindo a sua valiosa protecção e queixando-se
de nostalgia.
/ pág. 10
/ Enquanto esteve naquele país, assistiu ás lutas e mútuas perseguições,
que ali se deram por causa das ideias religiosas e políticas. E, pelos
elogios que fazia a Henrique VIII, parecia inclinar-se um pouco ao
protestantismo, e porque o monarca inglês o protegera e lhe havia
estabelecido uma tença. Henrique VIII mandou por Fernão de Oliveira uma
carta a D. João III.(3)
O rei de Portugal
estranhou os modos do portador, bem como o traje e o aspecto, impróprios
de um religioso. Oliveira prometeu que havia de mudar de traje,
desculpando-se de que não o fizera por falta de tempo; assim como
prometeu de se emendar dos erros passados e tratar da salvação da sua
alma.
Infelizmente, porém,
nem os cristãos velhos nem os cristãos novos simpatizavam com ele.
Aqueles consideravam-no um ímpio, um rebelde ás leis da Igreja Católica.
Os cristãos novos chamavam-lhe traidor, supondo que ele tinha ido a Roma
para conseguir, a pedido do Rei, uma bula para em Portugal se
estabelecer o Tribunal do Santo Oficio.
João de Borgonha, que
era o livreiro que dele se tornara inimigo, encontrou-o um dia à porta
de outro livreiro e travou conversação com Oliveira. Depois de longa e
renhida questão, ouviu-lhe frases pouco ortodoxas. Logo tomou
testemunhas e tratou de o acusar à Inquisição. E, para isso, também
concorreu André de Resende que, no convento de Évora, havia sido o seu
professor de gramática.
Este incidente deu-se
em 18 de Novembro do mesmo ano de 1547. O processo foi tão rapidamente
instaurado e tão rapidamente depuseram as testemunhas, que no dia 21 já
Fernão de Oliveira comparecia perante os juízes.
Escusado será narrar
tudo o que se passou no Tribunal. No entanto, direi que se tornou muito
notável a franqueza, com que falou o réu, defendendo as suas opiniões. E
foi então que, fazendo o seu depoimento, declarou que era natural da
vila de Aveiro.
Apesar(4)
de ter declarado que era cristão velho, ficou encerrado nas masmorras do
Santo Oficio.
Para dali sair,
lembrou-se de recorrer à protecção do mencionado conde da Castanheira, a
quem dirigiu uma carta em 5 de Dezembro na qual se mostrava muito
humilde, ainda que se dizia que, em todas as coisas de que o acusavam,
não havia pecado mortal.
São bem notáveis os
documentos da sua defesa, especialmente o que escreveu em
latim e que em 23 de
Dezembro foi, por mão do seu procurador, apresentado aos juízes.
Depois de instado,
por vezes, para abjurar os seus erros, fazer deles confissão pública e
deles pedir perdão a Deus, recorreu ao cardeal-infante para que lhe
fosse comutada a pena em clausura, em qualquer mosteiro.
/
pág. 11 / A 3 de
Setembro de 1550, foi-lhe concedido o ser enclausurado no mosteiro de
Belém, onde deveria viver tonsurado e com hábito e donde não poderia
sair, senão depois do tempo preciso, para sossego da sua consciência e
salvação da sua alma.
O cardeal D.
Henrique, em provisão de 22 de Agosto de 1551, concedeu-lhe a liberdade,
sob a condição de não se ausentar deste país, sem licença do mesmo
cardeal.
Livre da jurisdição
inquisitorial, Fernão de Oliveira procurou ensejo para novas aventuras
e, em Agosto de 1552, embarcou numa frota, que se dirigia à Africa, numa
expedição destinada a restituir a Buharen os estados, que o Xerife Muley
Hamed lhe havia usurpado.
São bem curiosas as
descrições que ele fizera dos diversos combates, dos muitos trabalhos e
dos grandes perigos por que passaram ele e seus companheiros.
Cativos em Argel, foi
ele um dos escolhidos para, do rei daquele estado, alcançarem o resgate
para todos.
Mas o seu génio
irrequieto foi motivo de queixas a Inácio Nunes, um dos capitães da
frota, e a D. Pedro de Meneses, capitão da praça de Ceuta, aonde os
emissários chegaram no dia 24 de Novembro e onde se demoraram cinco
dias, por causa de Gaspar Fernandes ter de aí curar-se de um ferimento,
que recebera num braço.
Depois de diversos
contractos, em 1553 voltaram a este país os cativos.
No ano seguinte
concluiu Fernão de Oliveira a sua obra Arte da Guerra do Mar que, em 28
de Outubro, ofereceu a D. Nuno da Cunha, capitão das galés do Rei de
Portugal. Esta obra foi impressa em Coimbra na oficina de João Álvares.
Os trabalhos da impressão acabaram em 4 de Julho de 1555.(5)
Na mesma cidade,
estava então o autor exercendo o emprego de revisor ou corrector da
Imprensa da Universidade e, tendo sido levado em conta os seus estudos
no convento de S. Domingos de Évora, foi-lhe dado o título honorífico de
licenciado. Também aí se dedicou ao ensino da retórica, talvez
particularmente.
Mas, em 26 de Outubro
do mesmo ano, já ele estava novamente nos cárceres da Inquisição de
Lisboa. Para isso serviu de pretexto o haver publicado aquela obra, em
vez de se dedicar a exercícios religiosos, o que fora uma das condições,
sob que lhe havia sido permitido, em 1551, o sair de Belém.
A verdadeira causa,
porém, foram os falsos amigos, talvez alguns invejosos, o seu génio e,
principalmente, a acrimónia, com que nessa obra censura alguns dos
nossos capitães marítimos.
Não se sabe quanto
tempo estivera preso, mas sabe-se que D. Sebastião, por um alvará de 20
de Julho de 1565 lhe concedeu uma tença de 20:000 réis anuais, a começar
em 6 desse mês e que ele receberia, enquanto não fosse provido em
qualquer benefício eclesiástico, de rendimento superior.
/
pág. 12 / Depois
dessa data e, portanto, quando já estava gasto de desvarios e cansado de
aventuras, compôs o Livro da Fabrica das Naos.
Antes disso, compôs
em latim a Arte da Navegação (Ars Nautica) — obra que não se sabe
se chegou a ser impressa ou se levou descaminho, ainda manuscrita.(6)
A sua Grammatica
da Lingoagem Portuguesa é hoje obra muito rara, e é impressa em
quarto e em letras góticas. Foi dirigida «ao mui magnífico senhor e
nobre fidalgo o senhor dom Fernando de Almada, filho herdeiro do mui
prudente e animoso senhor dom Antão, capitão-geral de Portugal.»
Foi impressa por
ordem do mesmo D. Fernando, em casa de Germão Galharde a 27 de Janeiro
de 1536. Assim o diz o fim do livro, que termina por estas palavras: — "Deo
gratias. Todas coisas têm seu tempo e os ociosos o perdem".
Esta obra foi
reproduzida em caracteres modernos, no Porto e em 1871, na Tipografia
Portuguesa, de que era proprietário o falecido Anselmo Evaristo de
Morais Sarmento, natural de Aveiro e de uma família, aqui bem conhecida.(7)
O Livro da Fabrica
das Naos pertenceu à biblioteca do Mosteiro de Alcobaça, à qual fora
dado pelo Padre Mestre Frei José Sanches. Depois da extinção das Ordens
religiosas, foi levado para a Biblioteca Nacional de Lisboa, onde se
conserva. É obra de linguagem apurada e muito clara.
O Sr. Henrique Lopes
de Mendonça publicou-a em volume de grandes dimensões, apresentando duas
páginas litografadas, cópia exacta e perfeita imitação da letra do
autor, e com as emendas, que ele à margem havia feito. Precede-a uma
longa e bem elaborada biografia de Fernão de Oliveira, a qual muito me
auxiliou para as notícias, que aí ficam, e que bem pode ser consultada
pelas pessoas que desejarem notícias mais amplas e mais circunstanciadas
acerca da vida deste aveirense. Tanto as notícias biográficas como as
bibliografias são enriquecidas com documentos e notas muito importantes
que, explicando o texto, muito elucidam os leitores.(8)
Além das obras, já
indicadas, deixou Fernão de Oliveira algumas inéditas, tais como:
- Uma Hestorea de
Portugal, em três livros; e mais três capítulos a respeito de D.
Sancho I;
/
pág. 13 /
- A Primeyra parte
do Livro da antiguidade, nobresa, liberdade e imunidade do Reyno de
Portugal (Faltam a esta obra os sete primeiros capítulos);
- Uma tradução da
Re Rustica de Columela (foi interrompida no capítulo IX e foi
publicada nos "Anais das Ciências, das Artes e das Letras", Paris, 1819
a 1821; Livro IV a XII);
- Cópia de parte da
Arte de Gramática de Língua Castelhana, por el doutíssimo maestro
António Nebrissa, compuesta em castelhano. Impressa em SaIamanca, pela
primeira vez, em 1492.
Estas obras estão na
Biblioteca Nacional de Paris e figuram no Catálogo dos Manuscritos
Portugueses, coligido por MoreI Fatio.
Não será fácil
saber-se quando e onde faleceu Fernão de Oliveira. Segundo algumas
opiniões, parece ter falecido em 1581 e é de crer que fosse em Lisboa,
pois não consta que houvesse mudado de terra, depois que começou a
receber a tença, concedida por el-rei D. Sebastião.(9)
_____________________________
(1) - Sobre a sua genealogia e nascimento, escreveu o Padre Fernão
de Oliveira, que foi frade dominicano do convento de Évora, no seu livro
Ars Nautica, fl. 7v, redigido em latim: - "Aveiro é o lugar onde me
geraram os pais, da Ordem da Cavalaria, de costumes modestos e de
fortuna vulgar; mas o recém-nascido soltou os primeiros vagidos na
Geslosa; a igreja matriz de S.ta Columba [Couto do Mosteiro] deu-lhe o
baptismo da fé; Fernando Oliveira foi-me posto como nome; como oliveira
produtiva dou frutos ao navegante". O referido manuscrito, nunca
editado, conserva-se na biblioteca da Universidade de Leiden, Holanda.
Embora natural da povoação da Gestosa, da freguesia de Couto do
Mosteiro, Fernão de Oliveira não negou a sua génese aveirense,
dizendo-se mesmo filho de Aveiro, porque aqui concebido (Processo
lnquisitorial em que foi réu, depoimento de 21 de Novembro de 1547).
(2) - D. António de Ataíde, primeiro conde da Castanheira.
(3) - Henrique VlII faleceu em Janeiro de 1547; por isso, a referida
carta terá sido escrita e enviada pelo seu sucessor,
(4) - Eduardo VI. - Vd. nota n.º 1.
(5) - A Arte da Guerra do Mar. Foi novamente editada em 1937, 1969 e
1983 (Edições Culturais da Marinha).
(6) - O manuscrito Ars Nautica conserva-se na biblioteca da
Universidade de Leiden — Holanda e foi descoberto e dado a conhecer pelo
Prof. Luís de Matos, em 1960, no Boletim Internacional de Bibliografia
Luso-Brasileira, Vol. I, n.º 1, pgs.239-251.
(7) - Depois de 1871, outras edições se seguiram: - 1933, 1975
(Imprensa Nacional - Casa da Moeda) e 1988 (edição fac-similada -
Biblioteca Nacional de Lisboa)
(8) - Título do livro de Mendonça, publicado em 1898, na Tipografia
da Academia Real das Ciências: - O Padre Fernando Oliveira e a sua
Obra Náutica.
(9) - Ou terá emigrado para França com os partidários de D. António,
Prior do Crato, e aí tenha falecido, uma vez que os últimos manuscritos
se encontram em Paris e pertenceram ao espólio do Cardeal Mazarino. |