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N.º 30

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1982 

A Mão do Homem Paisagem (1)

Por Frederico de Moura

O Homem, para além de ser um fabricante de utensílios, é um impenitente fazedor de paisagens.

Desde a pegada inicial que lhe marcou a presença sobre a crosta da Terra que o seu afã de a afeiçoar e de a colocar ao serviço do seu destino não abriu uma lacuna. No princípio o gesto era titubeante e o utensílio canhestro para desbastar os espinhos que lhe impediam os passos e lhe limitavam os horizontes; e a impressão que deixou no caminho percorrido, foi precária e de posterior leitura difícil.

Mas, desde o Neolítico que, talvez cansado de insculturar na escuridão a parede da caverna e de a policromar com a gama cromática que a sua inventiva se atreveu descobrir, enjoado, possivelmente de abrir desenhos misteriosos nos microssilexes do Mesolítico, atacou, decisivamente, a superfície do planeta que lhe servia de peanha, começando a deixar sobre ele uma pictografia que, aberta a sulco de arado, a arroteou, a desbravou, a semeou, fazendo reverdescer, periodicamente, o chão danado à custa da clorofila das gramíneas cultivadas intensiva e deliberadamente.

Mas, e não contente com isso, deu-se a afeiçoar pedras descomunais e a erguer, direitos ao céu, os megalitos que ocuparam improdutivamente o solo e que ficaram como testemunhos, pelos tempos além, de uma actividade que saía fora do cercado do pragmático para prestar culto a outra escala de valores – a escala de valores que ficou como traço individualizante desta pobre condição humana.

E os vindouros, ao toparem com as «Antas» e com os «alinhamentos», esfregaram as córneas para lhes decifrarem o significado e penetrarem o sentido dos desenhos esquemáticos com que os enriqueceram.

A Ecúmena passou então a fazer contraste flagrante com a paisagem natural e a diferenciar-se dela por traços tão significativos que, só por si, assinalam a presença do bípede pensante, do bípede pensante que «não pensava por ter mãos, como queria Anaxágoras e que, ao contrário, tinha mãos porque pensava» como objectou Aristóteles.

Então, a partir do momento em que o homem põe a mão no leme do seu próprio destino e rompe, decididamente, contra a negativa pétrea da litosfera, passámos a poder ler na superfície da Terra a expressão de uma luta que Leôncio de Urabayen virá a etiquetar de «precipitados geográficos», importando da Química o chamadoiro para o resultado da reacção homem-geografia.

Quem hoje quiser provar o gosto adstringente do suor humano, não precisa de mais do que olhar para a superfície do Globo, anotando o caminho que se esfalfa pela montanha acima, a urbe tentacular que a um tempo se concentra e alteia à procura de espaço, a mancha industrial que enfarrusca o azul do céu com baforadas de fumo negro, ou a actividade extractiva que esventra o chão com bocarras escancaradoras.

Não se pretende, com o que fica dito, fazer trabalhos de antropogeografia ou geografia humana, coisa que existiu muito antes de os Ratzel & os Brunhes a terem baptizado e que, longe de vir justificar um determinismo que coloque o bicho pensante entre varais, vem, ao contrário, dar razão a quem disse que «onde melhor se vê o efeito da geografia sobre o homem, é no efeito do homem sobre a geografia».

O intróito que aí fica não tem prosápias de eruditismo e visa, apenas, introduzir, propedeuticamente, a mim e a quem me segue, no tema do Ambiente e do Homem da nossa Região.

*   *   *

Para fazer a leitura da actividade do homem nesta zona lagunar basta virar os olhos atentos para as páginas abertas da paisagem geográfica que nos circunda, envolvendo-nos num ambiente macio de aguarela, sem nos deixarmos entorpecer pelo banho-maria que nos regala o sensório. Não se torna necessária qualquer aptidão penetrante de paleógrafo para soletrar a escrita ideográfica que ela deixa a fazer proeminência na duma movediça e a disciplinar a água informe e desordenada numa domesticação de rigor geométrico que se estende, / 30 / por aí fora, sob a alçada da nossa visão até embater com o sopé do perfil arroxeado dos montes do horizonte.

O simples contacto visual sincrético é suficiente para deixar o texto escancarado ao alcance da pupila, se ela não estiver embaciada por qualquer névoa de indiferença oclusiva e se a sensibilidade se não negar, por preguiça, a descer às funduras onde se catam as motivações.

Realmente, olhar para as lombas cultivadas, para os rectângulos faiscantes das marinhas e para as margens afeiçoadas dos canais e dos esteiros, é ter debaixo da visão a escrita bem expressiva da paisagem mais humanizada que possa conceber-se e, por isso mesmo, acessível sem necessidade de binóculos exegéticos ou de prévias e penosas meditações de sondagem.

Some-se a isto uma luz impossível de fixar em palavras a derramar-se sobre o azul-cobalto em que o Raul Brandão veio «encharcar-se», para emergir das brumas cinzentas do «Húmus» e em que uns discretos toques de verde, tenro e fresco, põem bandeiras brilhantes de alegria, e temos, a largas pinceladas, a ambiência da nossa paisagem lagunar – terra inundada e envergonhada que a medo aflora da extensão aquática que tudo inunda e a tudo serve de espelho.

Vista do alto, de qualquer miradouro natural escolhido entre os montes que a circundam e a empurram para o mar, a fragilidade da terra chega a meter medo, tão recortada se mostra de canais, de lagos, de esteiros, de valas, de regadeiras quase capilares que a penetram e a irrigam em todos os sentidos como um sistema circulatório que se estende, divide e subdivide em graciosas curvas serpentinas...

A humanização da nossa paisagem é epidérmica por natureza: ela não inscultura a crosta com fundura, nem faz avultar relevos flagrantes. Limita-se a realizar como que uma espécie de tatuagem, aliás precária, porque as próprias tintas que a embebem são vulneráveis às intempéries e desbotam ao ritmo das estações, passando do branco cristalino dos meios, ao zinco oxidado da água arrepiada pelo vento; da alvura nevada dos montes de sal no estio, à estremenha humilde da «bajunça» que cobre de burel as mulas quando o Outono começa a prometer chuva.

Inscrita sobre matéria movediça – areia e água, a duna que o vento modela transmutando-Ihe o perfil versátil e a água, a água informe que se avoluma até a inundação e se encolhe até à secura – é uma humanização precária e provisória.

Sem rocha firme que lhe sirva de plinto, sem consistência de chão que lhe consinta permanência, o homem da região, apesar de tudo, lá foi arborizando as lombas para as fixar, lá foi construindo muros de torrão para conter o ímpeto das águas que, quando menos o espera, lhes perfura de «cambeias» o trabalho de castores.

Todos os anos o marnoto se esfalfa a refazer o que o Inverno lhe destruiu impiedosamente, colmatando com torrão e lama as feridas que a intempérie lhes abre no trabalho; e anos e anos levou o gafanhão antes que a areia estuporada que semeou lhe desse prémio exíguo para o suor que gastou a surribá-la e a fartá-la de moliço.

De modo que, debruçar-se a gente sobre a nossa paisagem e, sobre ela, elaborar meditações, é o mesmo que fazer a leitura da biografia do homem que, subtraída a matéria dos elementos, é o seu autor ou, mais rigorosamente, o seu Demiurgo, dado que foi ele que realmente a enformou. E fê-lo em todos os aspectos e em todos os pormenores, dando-lhe o sentido profundo e distribuindo-lhe, até, as cores com uma técnica tão apurada, que parece importada da «paleta» de um pintor.

Não se trata de sondar etnias nem de esgravatar em rotas genealógicas, aliás, confusas e mal iluminadas por carência de combustível de ciência positiva.

Jaime de Magalhães Lima, no seu formoso trabalho «Os Povos do Baixo Vouga», não tem outro remédio para abordar o tema enigmático, que não seja o de seguir pela vereda da intuição quase poética que, de resto, aproveitou maravilhosamente.

Mas não é esse o nosso escopo.

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Quando pergunto quem são estes homens ponho, entre parêntesis o problema das origens remotas para, muito modestamente, pretender saber quem foram e são os obreiros do milagre.

Creio que será lícito arrumá-los da seguinte forma, que até me parece fiel a um critério cronológico: marnotos, pescadores, marinheiros e gafanhões. Os marnotos, dando o pano de fundo; os pescadores, povoando a laguna de barcos e velas; os marinheiros, projectando a região pelos rumos de todas as latitudes e importando influências do exterior; os gafanhões, cultivando vidro moído e transfigurando o perfil da orla ribeirinha.

Há vários milhares de anos caíram aqui as célebres janelas do palácio do Céu. Ficaram intactas as vidraças nos respectivos caixilhos, porque as janelas caíram sobre a relva verdinha. Hoje são as salinas. – José de Almada Negreiros

Para estes seres anfíbios, primeiro a água e depois a terra, sendo certo que estes lavradores de lombas viviam com um pé na areia e outro na «toste» do «moliceiro», e, quando abriam o ventre da terra bem sentiam que ela exalava um intenso e acre odor a maresia...

As Marinhas!

Desde a fundura do tempo que os homens se afadigaram na extracção e na difusão do sal que, no dizer de Plínio, pode ser «nativo» e «factício».

Mas quer aquele que se arranca dos jazigos, quer o que é fabricado com suor e sol, foi sempre, pelos tempos fora, isca atractiva do interesse humano.

Os Gregos em tal conta o tinham que o consagravam aos Deuses e atribuíram-lhe tal valor simbólico que falavam do «Sal Ático» que corrigia, com a adição sápida da ironia e da chispa, o espírito dos atenienses quando adocicado em demasia pelo mel do Himeto. / 31 /

Roma prestou-lhe vassalagem e é o Rei Anco Márcio quem, no Séc. VI a. C. estabelece as primeiras salinas.

De resto, já na designação da «Via Salária», por onde circulava o sal que vinha temperar o caldo dos «sabinos», se vê a importância de que desfrutava o precioso condimento.

Célebres na antiguidade foram os Sais de Tarento, de Tragasa e da Bética, não falando já nos da Ática e da Eubeia.

Como símbolo da sabedoria afeiçoou a língua dos recém-nascidos romanos e esse simbolismo foi aproveitado pelos Cristãos que o vieram a adoptar no ritual do Baptismo, colocando-o na língua do neófito a quem dizem «...recebe o sal da sabedoria...».

E, até de moeda corrente serviu o precioso tempero da mantença que deixou o seu vestígio na palavra «salário» que, ainda hoje, designa a retribuição do sagrado trabalho humano.

Pois é este sal que, há mais de um milénio, traz o homem da região vergado para o extrair das entranhas da água e o tem esfalfado no afã de o difundir para condimento do pão que mata a fome e estímulo do paladar dos que vão nascendo.

E desde quando marinhas na Ria de Aveiro?

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A faina das «Marinhas».

Porque a história não se pode fazer sem papéis ou de coisa que os valha, temos de reportar-nos a um diploma da «Mumadona» para lhe poder exibir o assento de baptismo. É, com efeito, no latinório bárbaro de então que, pela primeira vez, surge a referência à salicultura aveirense: «Terras in Alavario et Salinas»... diz o texto do Séc. X em que a célebre «Comitissa» doa terras em Aveiro e salinas ao Mosteiro de S. Salvador de Guimarães. Para trás desta fonte escrita nada mais se encontrou até hoje, que permita aprofundar no tempo a lonjura originária. E temos de nos ficar pelo assento de baptismo...

Catando o que me foi possível para topar com algum lastro histórico, encontrei que no tempo de D. Afonso IV já existiam, no salgado de Aveiro, nada menos do que 500 marinhas e que, nas Cortes de Elvas, em 1361, os homens de Aveiro se reportaram ao Rei Justiceiro para que «cada um fizesse o sal que pudesse fazer»... e que o «milheiro», isto é, «mil moias», «que / 32 / soya dar pelas 4 ou 5 libras» fosse aumentado. «Pelo que se vê, que sempre houve reivindicações... Reclamava-se ao que parece contra qualquer condicionamento do fabrico e contra a magreza do preço. A isto respondeu D. Pedro I que «noos sabemos a rezon que os moveo e olharemos o que é nosso serviço e prol da nossa Terra».

No reinado de D. Duarte, as salinas de Aveiro «jaziam em mortório», como se afirmou nas Cortes de Santarém e isto por virtude de quaisquer disposições do Rei de Boa-Memória.

Durante a primeira dinastia era já o salgado de Aveiro que abastecia todo o norte do Reino...

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A faina das «Marinhas».

Não se invocam as cãs e as rugas da actividade salícola do homem da região por motivos de pura inclinação historicista, mas, sobretudo, para homenagear uma labuta que se vem processando há mais de um milénio sob a torreira cáustica do Sol e investindo contra o bafo de fornalha do Nordeste, já que, como asseverava o já referido Plínio, «...a flor do Sal não se forma senão com o Vento do Aquilão»...

Realmente a «amanhação» da marinha é uma rua da amargura que todos os anos se repete, em ritmo ofegante: desde o «escoar das comedorias» e do «mandamento», até ao «estranger»... com a «bimbadela» das «barachas» e das «canejas»; desde o tirar das «bimbaduras» e do «apancar» das próprias pégadas, até ao «curar» da marinha para a «botadela», com o seu «imoirar» da «andaina de cima» e das «cabeceiras», ao «andoar», ao «vasculhar», ao «ariar» que o fadário se prolonga com o corpo encharcado do esforço e da torreira.

É uma tarefa esfalfante, a correr afadigado sobre «traves» e «barachas» com passos levezinhos de gaivotas em terra, antes de chegar ao momento da colheita que, aliás, continua a não dar tréguas ao marnoto que tem de «bulir» e de «rer» sob a brasa viva do sol, de camisa desabotoada e de «manaias» arregaçadas até às virilhas, envernizado por uma transpiração que, sobre a pele tisnada, e coriácea, brilha como unguento.

Amontoam então, o sal em cones, e em «mulas» com um rigorismo invulnerável de geómetras, restando-lhe ainda ganas para gastar os últimos espasmos musculares a «afagá-los», a «cobri-los» e a «chapeá-los» para que os vendavais do Inverno os não dispam do seu gabão monástico de bajunça.

E por fim, quando o Sol cintila e o «codeio» crepita, estendem-se os olhos e é um nunca acabar de espelhos que faíscam lume e endurecem numa cristalização almofadada de brancura.

Em dado momento, montes de sal alvíssimo começam a crescer, a recortar-se no azul e a repercutir, na água lisa como seda, a sua imagem imaculada. Só a fita estreita do «Malhadal» separa os dois cones pela base – o que, concreto se eleva para o Céu e o que, reflectido, mergulha na água que o recebe depois de o ter dado.

De noite, quando a lua cheia vem cobrir tudo de alumínio com a sua luminosidade fria, abre-se na frente dos olhos um panorama surrealista – visão onírica onde se não cata nem um vulto, nem um fantasma e onde, apenas, algum «maçarico», noctívago abre o bico numa queixa desolada de mágoa. Uma névoa translúcida tremula, / 33 / esfumando a nitidez como um vidro despolido que oxidasse a prata do luar; e a água parece dormir, tão branda e macia é a sua respiração. Só de tempos a tempos se ouve um suspiro mais fundo, quando algum peixito tresnoitado risca a camadinha ténue de um «tabuleiro» com o seu perfil incisivo e nervoso...

Mas, entretanto, um clarim estridente vibra na madrugada de luz indecisa que luta com a cinza envolvente, quando o Sol surge no horizonte, vermelho e pagão, a tingir a cor macilenta do antemanhã, com o escorrer dos seus lampejos de rubi.

Como uma donzela violada, a paisagem aquática estende à luz descarada e crua a sua nudez recatada e o nocturno, lírico e pudico, é sacudido pelos sons da fanfarra que lhe arranca das cordas a surdina discreta.

E os pescadores?

Foram eles quem povoou a laguna de velas brancas e de pragas rasposas e quem semeou nela uma complexa teoria de barcos onde nenhuma hibridização encontrou complacências desfigurantes e que, apesar da taquicardia supersónica do nosso tempo, ainda se mantém sem cifoses nas cavernas, nem dismorfias no perfil castiço da origem.

O «Saleiro», a «Bateira Mercantel», o «Chinchorro», a «Bateira Marinhôa», a «ílhava», a «Caçadeira» e, subtraio, o «Moliceiro» – o mais lindo barco da Ria – por ter as raízes enterradas na lavoira ribeirinha, marcam à tona da água o testemunho de uma ancestralidade que não se sabe ao certo donde promana.

Ao longo da costa, lamentavelmente, começa a deixar clareiras na praia o surpreendente «Barco do Mar», o campeão das xávegas, alteroso como as vagas que tem de galgar e cujo processo de investigação de paternidade tem de ir procurar-se ao petroglifo Haggeby, que inculca, com uma nitidez especular, uma origem Normanda. O seu perfil em crescente tem tentado a imaginação, mais ou menos temerária, de viajantes cultos e levou D. Miguel de Unamuno a recordar-se «do que deveriam ser as naves em que os «aqueus» arribaram a Tróia – as naves Homéricas» – acrescentando que «são de facto como exemplares de uma espécie em outras partes extinta».

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Barco moliceiro

A tendência para a conjectura, tão do temperamento do mocho de Salamanca, leva-o por caminhos calcetados de fantasia, para o Mediterrâneo, na procura de uma germinação que – tudo leva a crer – é de procurar nas geladas paragens do Norte.

Certo é que, por outro lado, nos barcos da Ria, não será a mesma progénie, porque, aí sim, é-se tentado a conjecturar ancestralidades mediterrânicas nas proas erguidos e recurvas dos Moliceiros e, até no olho esgazeado que aparece pintado na proa de tantas embarcações ao longo da nossa costa, e que não é raro encontrar nos nossos barcos, e que sugere o olho que vigiava na proa da Barca de Ulisses, quando andou errante pelos mares antes de aproar à Ítaca, onde o aguardavam os braços fiéis de Penélope.

Mas deixemos a tentação de pesquisar o impossível e de sondar genealogias esburacadas de lacunas sem matéria para as preencher.

E quem são os homens?

Essencialmente são os «ÍIhavos» e os «Murtoseiros» que constituem os ramos grossos donde jorra a resina que anima a mão que caça a escota e faz ranger os remos nos «escalamões»...

De longe vem aos ílhavos a sua vocação para as lides do Mar. De tão longe, com certeza, como a terra de onde são oriundos e que já figurava como «Villa llliavo» num vestuto pergaminho de 1027, vindo-lhe as barbas brancas do tempo do Conde D. Sesnando e de Fernando Magno...

Com fama longínqua de «Altieiros» certamente que, antes de se lançarem às rotas do Mar Alto teriam sulcado a laguna em actividades piscatórias. / 34 /

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O barco alteroso das Xávegas.

Insatisfeitos, porém, com a paz da lagoa adormecida e sendo certo que, como disse o Poeta Brasileiro Ribeiro Curto

«Nunca se naufraga

na ria inocente»

porque

«da crista da vaga

vêm braços à gente...»

os ílhavos não sofrearam a ânsia da aventura e difundem-se pela costa fora numa espasmódica actividade colonizadora, fundando núcleos de pescadores na Afurada, na Nazaré, em Sesimbra, em Matosinhos, em Quiaios, em Lavos, na Caparica e quiçá, até, no Reino dos Algarves.

É de ontem, por assim dizer, daqui saírem barra fora, as «Enviadas» com dois homens apenas, rumando ao Tejo e levando como único instrumento orientador, no dizer de Alexandre da Conceição, um «relógio de Sol de trinta reis».

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E é, até, numa daquelas sumárias embarcações de fundo chato e de vela, pouco mais do que primitiva, que o Tomé Ronca – um lobo do mar que aquele escritor ilhavense desenha biograficamente – sai sozinho da Barra, rumando a Lisboa, apenas confiado no seu raciocínio silogístico que o levava a não acreditar em naufrágios pela razão simples de que – «sendo o barco de tábuas e não indo as tábuas ao fundo, era claro que não iria ao fundo o barco»... / 35 /

«Altieiros» como eram de raiz acabaram por se virar para as viagens de longe curso esfumando a sua actividade piscatória e vindo, assim, a dar razão aos que opinam que «foi das colmeias de pescadores que saíram os navegantes»... e que «as grandes navegações quase que acabaram com as pescarias»...

Proa de moliceiro.

As Xávegas, realmente, eram para os ílhavos uma espécie de actividade lúdica que até era acessível aos ócios dos lavradores e que era incompatível com o seu horror inato ao sedentarismo.

O Raul Brandão, por exemplo, conta que a «Ti Ana Arrieira» «uma mulher capazona com cuja a amizade se honrava», quando entendia que a sua ajuda era precisa não hesitava em espetar a aguilhada na areia da praia e ir num barco à pesca da sardinha, agarrada a um remo como um homem.

Aliás são os bois que lavram a terra que, enfeitados com seus jugos entalhados e policromados, vão puxar as redes grávidas de peixe faiscante, o que fez com que D. Miguel de Unamuno, ao falar do fenómeno, o designasse como uma «ruralização do Mar»...

Este ímpeto de deixar a terra para fora do alcance da vista e de arrostar com a água sem balizas, sem pontos de referência, foi vocação quando os lugres levaram os nossos marinheiros às geladas paragens da Terra-Nova e, depois da Groenlândia, como o é, agora em que o resfolgar dos motores fez arrear as velas jeitosas que estavam à mercê do vento que soprava.

«Ao que parece», escreve António Sérgio, «foram os de Aveiro e de Viana, os iniciadores da pesca do bacalhau na Terra Nova», para logo a seguir informar de que, no tempo de D. Manuel, o Venturoso, era este (o porto de Aveiro), de toda a costa, o que mais Naus enviava àquela zona. Pelo ano de 1550 possuíam os pescadores do Porto de Aveiro nada menos do que 150 barcos apropriados à faina da Terra-Nova e, em 1552, e no Norte do País, o que a todos superava em arqueação de navios (entre 50 a 60 tons.).

Mas, na actividade piscatória, seria uma injustiça omitir, aqui, uma referência aos «Murtoseiros» que, constituindo uma casta de gente muito diversa da dos «ílhavos», dado que nela coexiste, misturada à vocação para a água, uma actividade paralela de lavradores que os faz revolver a leiva marginal com delicadezas de jardineiro, assina, pontualmente, o livro do ponto dos trabalhadores da laguna e é barqueiro, pescador e homem com raízes tão ténues na terra que cultiva que ela não consegue diluir nele a insofrida vocação de emigrante impenitente.

Jaime de Magalhães Lima estabelece o contraste entre os dois tipos humanos, sempre pelo caminho de uma intuição lúcida, dizendo que pressentia «na voz da gente de Ílhavo – Ecos de Tartassos», como na voz da gente da Murtosa ouve «o rumor afreimado e rude de embarcadiços arrojados, largando ávidos dos recifes do Báltico e do Mar do Norte em busca de presas»...

Quer isto dizer que os ílhavos seriam oriundos das suaves brisas mediterrânicas, de estirpe Fenícia ou Pelasga, enquanto os Murtoseiros entroncariam na progénie normanda, donde lhe viria a seiva que os empurra para a emigração.

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Regata de moliceiros (Festa da Ria)

Também Garrett, nas «Viagens na Minha Terra», descrevendo uma acalorada disputa entre ílhavos e Campinos, atribui aos primeiros uma origem mediterrânica, ao escrever num retrato comparativo que, «em vez de calção amarelo e de jaqueta de ramagens que caracterizavam o homem do forcado, estes (os ílhavos) vestiam o «amplo saiote grego» dos varinos e o «Tabardo arrequefado siciliano» de pano de varas. O campino, como o saloio, tem o cunho da raça africana. Estes «(os ílhavos) são da família pelasga: feições regulares e móveis, a forma ágil»...

Seja como for, aceitemos ou não estes argumentos conjecturais, a presença destes dois tipos humanos, tão específicos e tão dissemelhantes ao mesmo tempo, é solicitante para aventuras temerárias à cata de raízes. E só numa prudência de fundo positivista a que não sou capaz de me eximir, me inibe de dar adesão completa / 37 / e entusiástica às investidas pelo caminho de «pé-posto», do critério compreensivo que tantas vezes se antecipa, luminosamente, à calçada solidamente explicativa que a ciência, pacientemente e friamente, vai construindo.

Falou-se de marnotos, falou-se de pescadores e navegantes, faltando apenas falar dos «Gafanhões» que vieram, por fim tratar da moldura, afeiçoando a terra que debrua a laguna e substituindo a desolação da duna e da flora quaresmal que, a medo, aflorava, por uma verdura indivisível de milheirais frescos e viçosos e de batatais que lhe corroboram os tons abertos com gradações sublinhantes que parecem oriundos de uma paleta de pintor.

Quando aí por volta de 1677, os foreiros do Conde de Aveiras, senhor de Vagos, vieram com os seus enxadões violar a virgindade das lombas para as cultivar, não toparam nelas com nenhuma quentura maternal para as sementes que queriam lançar-lhe sobre o dorso, nem lhe sentiram nas entranhas qualquer resquício de matéria orgânica capaz de dar alento a uma vontade que não fosse dotada de ganas para teimar, independentemente de qualquer aceno indutor.

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A labuta ofegante do sal «factício».

Terra gafada e mutável ao sabor do vento onde, aqui e além, nalguma baixeira mais fresca, se aventuravam a arrebitar vergônteas, umas tristes plantinhas cinzentas, onde se não catava um indício de clorofila, ou um maciço de junco hirto e agressivo como uma coroa de espinhos – a terra das Gafanhas recebia, pasmada e interrogativa, as primeiras bagadas do suor que o trabalho humano destila.

Dava-se uma cavadela e, antes de levantar o gume faiscante da alfaia à altura do cabeça, logo a terra arrunhava arrasando a cova que procurava o filão da esperança.

Momento a momento, o perfil da duna mudava de cariz – quer planificando-se numa promessa de assentação, quer avolumando-se a soterrar o vislumbre da confiança.

Os passos atolavam-se naquela areia movediça, cambando os pés do caminheiro e, um quilómetro de percurso era capaz de esfalfar um dromedário, quanto mais um homem!

Mas os «Gafanhões» não desanimaram...

Foram-se a ela e, encharcados até ao tutano, revolveram-lhe as entranhas a ponto de lhes nascer água debaixo dos pés – água salobra, que ardia na língua, que cheirava a ácido fénico e que não podia acalentar esperanças desmedidas.

E, então, os homens olharam para o «Nilo» que lhe passava à ilharga, descansaram sobre a sua superfície de aço polido os olhos fatigados e mordidos pela areia; atentaram no oiro em fusão que o sol derramava nele e sulcaram-no decididamente à procura de uma ajuda. O barco «Moliceiro», que no dizer de Virgílio Correia «não tem parceiros em qualquer parte do Mundo», içou a vela rectangular, lançou a «pá da borda», virou para trás, petulantemente, a cabeça de gaivota que lhe termina a proa e rompeu vaidoso, a bolinar pela Ria fora, com os ancinhos descomunais a pentear o leito lodoso e a arrancar-lhe os cabelos verdes e frescos que, depois, deixava em medas, na borda, a secar para que o tempo lhe corrigisse a demasia do tempero! / 38 /

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Barco moliceiro na faina.

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Ancinhos – Os pentes que penteiam o leito da Ria na apanha do moliço

E voltaram à terra... Surribaram-na, pacientemente, sem sofreguidão, deixando-a de ventre assoalhado, para depois lhe misturar o «moliço» e o Iodo que a Ria lhes tinha posto ao alcance da alfaia.

A duna mostrou-se avara para a súplica do semeador e deu-lhe, em troca do esforço, uns pés de milho raquítico, que mal embandeirou e não chegou, sequer, para matar a fome dos bois que, todo o Inverno, ruminaram umas magras ervas nascediças entremeadas com os caules fibrosos da milharada...

Mas aqueles homens sacaram da desesperança novas energias e voltaram ao princípio, continuando afanosamente a engodar a terra, misturando-lhe algas e «escasso» e revolvendo-a com desvelos paternais.

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Calafates no Canal de S. Roque, em Aveiro. Uma actividade bem enquadrada na paisagem envolvente.

Nos intervalos tiveram, ainda, filão de fantasia para ir decorando, carinhosamente, as proas elegantes dos seus «moliceiros», salpicando-as do sal da ironia nas figurinhas e nas legendas em que os próprios erros de ortografia corroboravam, inconscientemente, a malícia das ilustrações.

E até tiveram a coragem para, uma vez por outra, carregarem de esperança os sumários textos com um confiado «ORA BAMUS LA CUM DEOS»...

E cegos à negativa hostil que lhe respondia ao afago, fechados aos avisos uivados do vento que lhes carreava sobre as culturas nuvens de areia, polvilhando-as de palhetas de mica espelhante, não desanimaram.

E realizavam o milagre.

Então a laguna ficou encaixilhada por uma orla de jardins verdejantes, onde se destaca um nunca acabar de casitas alapadas – «casas de meia roda» como por lá lhe chamavam – estendendo-se em lagarta e polvilhando a verdura com os seus telhados de um vermelho vivo...

Fazedor de paisagem por excelência, o homem da região tinha a obra concluída: quadriculou de brancura a extensão aquática; infestou o espelho da laguna de velas e de barcos e agricultou a terra marginal, assentando-lhe em cima cortiços de gente...

Basta olhar para lhes ver as impressões digitais; basta respirar para lhes sentir o cheiro do suor milagroso, que só a fronte humana é capaz de destilar.

_________________________ 

NOTA:

(1) – Conferência proferida no Museu Marítimo e Municipal de Ílhavo em 3 de Abril de 1981, do qual era então director.

 

páginas 29 a 38

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