O Homem, para além de ser um
fabricante de utensílios, é um impenitente fazedor de
paisagens.
Desde a pegada inicial que lhe
marcou a presença sobre a crosta da Terra que o seu afã de a
afeiçoar e de a colocar ao serviço do seu destino não abriu uma
lacuna. No princípio o gesto era titubeante e o utensílio canhestro
para desbastar os espinhos que lhe impediam os passos e lhe
limitavam os horizontes; e a impressão que deixou no caminho
percorrido, foi precária e de posterior leitura difícil.
Mas, desde o Neolítico que, talvez
cansado de insculturar na escuridão a parede da caverna e de a
policromar com a gama cromática que a sua inventiva se atreveu
descobrir, enjoado, possivelmente de abrir desenhos misteriosos nos
microssilexes do Mesolítico, atacou, decisivamente, a superfície do
planeta que lhe servia de peanha, começando a deixar sobre ele uma
pictografia que, aberta a sulco de arado, a arroteou, a desbravou, a
semeou, fazendo reverdescer, periodicamente, o chão danado à custa
da clorofila das gramíneas cultivadas intensiva e deliberadamente.
Mas, e não contente com isso, deu-se
a afeiçoar pedras descomunais e a erguer, direitos ao céu, os
megalitos que ocuparam improdutivamente o solo e que ficaram como
testemunhos, pelos tempos além, de uma actividade que saía fora do
cercado do pragmático para prestar culto a outra escala de valores –
a escala de valores que ficou como traço individualizante desta
pobre condição humana.
E os vindouros, ao toparem com as
«Antas» e com os «alinhamentos», esfregaram as córneas para lhes
decifrarem o significado e penetrarem o sentido dos desenhos
esquemáticos com que os enriqueceram.
A Ecúmena passou então a fazer
contraste flagrante com a paisagem natural e a diferenciar-se dela
por traços tão significativos que, só por si, assinalam a presença
do bípede pensante, do bípede pensante que «não pensava por ter
mãos, como queria Anaxágoras e que, ao contrário, tinha mãos porque
pensava» como objectou Aristóteles.
Então, a partir do momento em que o
homem põe a mão no leme do seu próprio destino e rompe,
decididamente, contra a negativa pétrea da litosfera, passámos a
poder ler na superfície da Terra a expressão de uma luta que Leôncio
de Urabayen virá a etiquetar de «precipitados geográficos»,
importando da Química o chamadoiro para o resultado da reacção
homem-geografia.
Quem hoje quiser provar o gosto
adstringente do suor humano, não precisa de mais do que olhar para a
superfície do Globo, anotando o caminho que se esfalfa pela montanha
acima, a urbe tentacular que a um tempo se concentra e alteia à
procura de espaço, a mancha industrial que enfarrusca o azul do céu
com baforadas de fumo negro, ou a actividade extractiva que esventra
o chão com bocarras escancaradoras.
Não se pretende, com o que fica
dito, fazer trabalhos de antropogeografia ou geografia humana, coisa
que existiu muito antes de os Ratzel & os Brunhes a terem baptizado
e que, longe de vir justificar um determinismo que coloque o bicho
pensante entre varais, vem, ao contrário, dar razão a quem disse que
«onde melhor se vê o efeito da geografia sobre o homem, é no efeito
do homem sobre a geografia».
O intróito que aí fica não tem
prosápias de eruditismo e visa, apenas, introduzir,
propedeuticamente, a mim e a quem me segue, no tema do Ambiente e do
Homem da nossa Região.
* * *
Para fazer a leitura da actividade
do homem nesta zona lagunar basta virar os olhos atentos para as
páginas abertas da paisagem geográfica que nos circunda,
envolvendo-nos num ambiente macio de aguarela, sem nos deixarmos
entorpecer pelo banho-maria que nos regala o sensório. Não se torna
necessária qualquer aptidão penetrante de paleógrafo para soletrar a
escrita ideográfica que ela deixa a fazer proeminência na duma
movediça e a disciplinar a água informe e desordenada numa
domesticação de rigor geométrico que se estende,
/ 30 / por aí fora, sob a
alçada da nossa visão até embater com o sopé do perfil arroxeado dos
montes do horizonte.
O simples contacto visual sincrético
é suficiente para deixar o texto escancarado ao alcance da pupila,
se ela não estiver embaciada por qualquer névoa de indiferença
oclusiva e se a sensibilidade se não negar, por preguiça, a descer
às funduras onde se catam as motivações.
Realmente, olhar para as lombas
cultivadas, para os rectângulos faiscantes das marinhas e para as
margens afeiçoadas dos canais e dos esteiros, é ter debaixo da visão
a escrita bem expressiva da paisagem mais humanizada que possa
conceber-se e, por isso mesmo, acessível sem necessidade de
binóculos exegéticos ou de prévias e penosas meditações de sondagem.
Some-se a isto uma luz impossível de
fixar em palavras a derramar-se sobre o azul-cobalto em que o Raul
Brandão veio «encharcar-se», para emergir das brumas cinzentas do
«Húmus» e em que uns discretos toques de verde, tenro e fresco, põem
bandeiras brilhantes de alegria, e temos, a largas pinceladas, a
ambiência da nossa paisagem lagunar – terra inundada e envergonhada
que a medo aflora da extensão aquática que tudo inunda e a tudo
serve de espelho.
Vista do alto, de qualquer miradouro
natural escolhido entre os montes que a circundam e a empurram para
o mar, a fragilidade da terra chega a meter medo, tão recortada se
mostra de canais, de lagos, de esteiros, de valas, de regadeiras
quase capilares que a penetram e a irrigam em todos os sentidos como
um sistema circulatório que se estende, divide e subdivide em
graciosas curvas serpentinas...
A humanização da nossa paisagem é
epidérmica por natureza: ela não inscultura a crosta com fundura,
nem faz avultar relevos flagrantes. Limita-se a realizar como que
uma espécie de tatuagem, aliás precária, porque as próprias tintas
que a embebem são vulneráveis às intempéries e desbotam ao ritmo das
estações, passando do branco cristalino dos meios, ao zinco oxidado
da água arrepiada pelo vento; da alvura nevada dos montes de sal no
estio, à estremenha humilde da «bajunça» que cobre de burel as mulas
quando o Outono começa a prometer chuva.
Inscrita sobre matéria movediça –
areia e água, a duna que o vento modela transmutando-Ihe o perfil
versátil e a água, a água informe que se avoluma até a inundação e
se encolhe até à secura – é uma humanização precária e provisória.
Sem rocha firme que lhe sirva de
plinto, sem consistência de chão que lhe consinta permanência, o
homem da região, apesar de tudo, lá foi arborizando as lombas para
as fixar, lá foi construindo muros de torrão para conter o ímpeto
das águas que, quando menos o espera, lhes perfura de «cambeias» o
trabalho de castores.
Todos os anos o marnoto se esfalfa a
refazer o que o Inverno lhe destruiu impiedosamente, colmatando com
torrão e lama as feridas que a intempérie lhes abre no trabalho; e
anos e anos levou o gafanhão antes que a areia estuporada que semeou
lhe desse prémio exíguo para o suor que gastou a surribá-la e a
fartá-la de moliço.
De modo que, debruçar-se a gente
sobre a nossa paisagem e, sobre ela, elaborar meditações, é o mesmo
que fazer a leitura da biografia do homem que, subtraída a matéria
dos elementos, é o seu autor ou, mais rigorosamente, o seu Demiurgo,
dado que foi ele que realmente a enformou. E fê-lo em todos os
aspectos e em todos os pormenores, dando-lhe o sentido profundo e
distribuindo-lhe, até, as cores com uma técnica tão apurada, que
parece importada da «paleta» de um pintor.
Não se trata de sondar etnias nem de
esgravatar em rotas genealógicas, aliás, confusas e mal iluminadas
por carência de combustível de ciência positiva.
Jaime de Magalhães Lima, no seu
formoso trabalho «Os Povos do Baixo Vouga», não tem outro
remédio para abordar o tema enigmático, que não seja o de seguir
pela vereda da intuição quase poética que, de resto, aproveitou
maravilhosamente.
Mas não é esse o nosso escopo.
|
Quando pergunto quem são estes
homens ponho, entre parêntesis o problema das origens remotas para,
muito modestamente, pretender saber quem foram e são os obreiros do
milagre.
Creio que será lícito arrumá-los da
seguinte forma, que até me parece fiel a um critério cronológico:
marnotos, pescadores, marinheiros e gafanhões. Os marnotos, dando o
pano de fundo; os pescadores, povoando a laguna de barcos e velas;
os marinheiros, projectando a região pelos rumos de todas as
latitudes e importando influências do exterior; os gafanhões,
cultivando vidro moído e transfigurando o perfil da orla ribeirinha.
|
Há vários milhares de anos caíram
aqui as célebres janelas do palácio do Céu. Ficaram intactas as
vidraças nos respectivos caixilhos, porque as janelas caíram
sobre a relva verdinha. Hoje são as salinas. – José de Almada
Negreiros |
Para estes seres anfíbios, primeiro
a água e depois a terra, sendo certo que estes lavradores de lombas
viviam com um pé na areia e outro na «toste» do «moliceiro», e,
quando abriam o ventre da terra bem sentiam que ela exalava um
intenso e acre odor a maresia...
As Marinhas!
Desde a fundura do tempo que os
homens se afadigaram na extracção e na difusão do sal que, no dizer
de Plínio, pode ser «nativo» e «factício».
Mas quer aquele que se arranca dos
jazigos, quer o que é fabricado com suor e sol, foi sempre, pelos
tempos fora, isca atractiva do interesse humano.
Os Gregos em tal conta o tinham que
o consagravam aos Deuses e atribuíram-lhe tal valor simbólico que
falavam do «Sal Ático» que corrigia, com a adição sápida da ironia e
da chispa, o espírito dos atenienses quando adocicado em demasia
pelo mel do Himeto.
/ 31 /
Roma prestou-lhe vassalagem e é o
Rei Anco Márcio quem, no Séc. VI a. C. estabelece as primeiras
salinas.
De resto, já na designação da «Via
Salária», por onde circulava o sal que vinha temperar o caldo dos
«sabinos», se vê a importância de que desfrutava o precioso
condimento.
Célebres na antiguidade foram os
Sais de Tarento, de Tragasa e da Bética, não falando já nos da Ática
e da Eubeia.
Como símbolo da sabedoria afeiçoou a
língua dos recém-nascidos romanos e esse simbolismo foi aproveitado
pelos Cristãos que o vieram a adoptar no ritual do Baptismo,
colocando-o na língua do neófito a quem dizem «...recebe o sal da
sabedoria...».
E, até de moeda corrente serviu o
precioso tempero da mantença que deixou o seu vestígio na palavra
«salário» que, ainda hoje, designa a retribuição do sagrado trabalho
humano.
Pois é este sal que, há mais de um
milénio, traz o homem da região vergado para o extrair das entranhas
da água e o tem esfalfado no afã de o difundir para condimento do
pão que mata a fome e estímulo do paladar dos que vão nascendo.
E desde quando marinhas na Ria de
Aveiro?
A faina das «Marinhas».
Porque a história não se pode fazer
sem papéis ou de coisa que os valha, temos de reportar-nos a um
diploma da «Mumadona» para lhe poder exibir o assento de baptismo.
É, com efeito, no latinório bárbaro de então que, pela primeira vez,
surge a referência à salicultura aveirense: «Terras in Alavario
et Salinas»... diz o texto do Séc. X em que a célebre «Comitissa»
doa terras em Aveiro e salinas ao Mosteiro de S. Salvador de
Guimarães. Para trás desta fonte escrita nada mais se encontrou até
hoje, que permita aprofundar no tempo a lonjura originária. E temos
de nos ficar pelo assento de baptismo...
Catando o que me foi possível para
topar com algum lastro histórico, encontrei que no tempo de D.
Afonso IV já existiam, no salgado de Aveiro, nada menos do que 500
marinhas e que, nas Cortes de Elvas, em 1361, os homens de Aveiro se
reportaram ao Rei Justiceiro para que «cada um fizesse o sal que
pudesse fazer»... e que o «milheiro», isto é, «mil moias», «que
/ 32 / soya dar pelas 4 ou 5
libras» fosse aumentado. «Pelo que se vê, que sempre houve
reivindicações... Reclamava-se ao que parece contra qualquer
condicionamento do fabrico e contra a magreza do preço. A isto
respondeu D. Pedro I que «noos sabemos a rezon que os moveo e
olharemos o que é nosso serviço e prol da nossa Terra».
No reinado de D. Duarte, as salinas
de Aveiro «jaziam em mortório», como se afirmou nas Cortes de
Santarém e isto por virtude de quaisquer disposições do Rei de
Boa-Memória.
Durante a primeira dinastia era já o
salgado de Aveiro que abastecia todo o norte do Reino...
A faina das «Marinhas».
Não se invocam as cãs e as rugas da
actividade salícola do homem da região por motivos de pura
inclinação historicista, mas, sobretudo, para homenagear uma labuta
que se vem processando há mais de um milénio sob a torreira cáustica
do Sol e investindo contra o bafo de fornalha do Nordeste, já que,
como asseverava o já referido Plínio, «...a flor do Sal não se forma
senão com o Vento do Aquilão»...
Realmente a «amanhação» da marinha é
uma rua da amargura que todos os anos se repete, em ritmo ofegante:
desde o «escoar das comedorias» e do «mandamento», até ao «estranger»...
com a «bimbadela» das «barachas» e das «canejas»; desde o tirar das
«bimbaduras» e do «apancar» das próprias pégadas, até ao «curar» da
marinha para a «botadela», com o seu «imoirar» da «andaina de cima»
e das «cabeceiras», ao «andoar», ao «vasculhar», ao «ariar» que o
fadário se prolonga com o corpo encharcado do esforço e da torreira.
É uma tarefa esfalfante, a correr
afadigado sobre «traves» e «barachas» com passos levezinhos de
gaivotas em terra, antes de chegar ao momento da colheita que,
aliás, continua a não dar tréguas ao marnoto que tem de «bulir» e de
«rer» sob a brasa viva do sol, de camisa desabotoada e de «manaias»
arregaçadas até às virilhas, envernizado por uma transpiração que,
sobre a pele tisnada, e coriácea, brilha como unguento.
Amontoam então, o sal em cones, e em
«mulas» com um rigorismo invulnerável de geómetras, restando-lhe
ainda ganas para gastar os últimos espasmos musculares a
«afagá-los», a «cobri-los» e a «chapeá-los» para que os vendavais do
Inverno os não dispam do seu gabão monástico de bajunça.
E por fim, quando o Sol cintila e o
«codeio» crepita, estendem-se os olhos e é um nunca acabar de
espelhos que faíscam lume e endurecem numa cristalização almofadada
de brancura.
Em dado momento, montes de sal
alvíssimo começam a crescer, a recortar-se no azul e a repercutir,
na água lisa como seda, a sua imagem imaculada. Só a fita estreita
do «Malhadal» separa os dois cones pela base – o que, concreto se
eleva para o Céu e o que, reflectido, mergulha na água que o recebe
depois de o ter dado.
De noite, quando a lua cheia vem
cobrir tudo de alumínio com a sua luminosidade fria, abre-se na
frente dos olhos um panorama surrealista – visão onírica onde se não
cata nem um vulto, nem um fantasma e onde, apenas, algum «maçarico»,
noctívago abre o bico numa queixa desolada de mágoa. Uma névoa
translúcida tremula,
/ 33 / esfumando a nitidez como um vidro despolido que oxidasse a prata do luar; e a água parece dormir, tão
branda e macia é a sua respiração. Só de tempos a tempos se ouve um
suspiro mais fundo, quando algum peixito tresnoitado risca a
camadinha ténue de um «tabuleiro» com o seu perfil incisivo e
nervoso...
Mas, entretanto, um clarim
estridente vibra na madrugada de luz indecisa que luta com a cinza
envolvente, quando o Sol surge no horizonte, vermelho e pagão, a
tingir a cor macilenta do antemanhã, com o escorrer dos seus
lampejos de rubi.
Como uma donzela violada, a paisagem
aquática estende à luz descarada e crua a sua nudez recatada e o
nocturno, lírico e pudico, é sacudido pelos sons da fanfarra que lhe
arranca das cordas a surdina discreta.
E os pescadores?
Foram eles quem povoou a laguna de
velas brancas e de pragas rasposas e quem semeou nela uma complexa
teoria de barcos onde nenhuma hibridização encontrou complacências
desfigurantes e que, apesar da taquicardia supersónica do nosso
tempo, ainda se mantém sem cifoses nas cavernas, nem dismorfias no
perfil castiço da origem.
O «Saleiro», a «Bateira Mercantel»,
o «Chinchorro», a «Bateira Marinhôa», a «ílhava», a «Caçadeira» e,
subtraio, o «Moliceiro» – o mais lindo barco da Ria – por ter as
raízes enterradas na lavoira ribeirinha, marcam à tona da água o
testemunho de uma ancestralidade que não se sabe ao certo donde
promana.
Ao longo da costa, lamentavelmente,
começa a deixar clareiras na praia o surpreendente «Barco do Mar», o
campeão das xávegas, alteroso como as vagas que tem de galgar e cujo
processo de investigação de paternidade tem de ir procurar-se ao
petroglifo Haggeby, que inculca, com uma nitidez especular, uma
origem Normanda. O seu perfil em crescente tem tentado a imaginação,
mais ou menos temerária, de viajantes cultos e levou D. Miguel de
Unamuno a recordar-se «do que deveriam ser as naves em que os «aqueus»
arribaram a Tróia – as naves Homéricas» – acrescentando que
«são de facto como exemplares de uma espécie em outras partes
extinta».
|
|
Barco moliceiro |
A tendência para a conjectura, tão
do temperamento do mocho de Salamanca, leva-o por caminhos
calcetados de fantasia, para o Mediterrâneo, na procura de uma
germinação que – tudo leva a crer – é de procurar nas geladas
paragens do Norte.
Certo é que, por outro lado, nos
barcos da Ria, não será a mesma progénie, porque, aí sim, é-se
tentado a conjecturar ancestralidades mediterrânicas nas proas
erguidos e recurvas dos Moliceiros e, até no olho esgazeado
que aparece pintado na proa de tantas embarcações ao longo da nossa
costa, e que não é raro encontrar nos nossos barcos, e que sugere o
olho que vigiava na proa da Barca de Ulisses, quando andou
errante pelos mares antes de aproar à Ítaca, onde o aguardavam os
braços fiéis de Penélope.
Mas deixemos a tentação de pesquisar
o impossível e de sondar genealogias esburacadas de lacunas sem
matéria para as preencher.
E quem são os homens?
Essencialmente são os «ÍIhavos» e os
«Murtoseiros» que constituem os ramos grossos donde jorra a resina
que anima a mão que caça a escota e faz ranger os remos nos «escalamões»...
De longe vem aos ílhavos a
sua vocação para as lides do Mar. De tão longe, com certeza, como a
terra de onde são oriundos e que já figurava como «Villa llliavo»
num vestuto pergaminho de 1027, vindo-lhe as barbas brancas do tempo
do Conde D. Sesnando e de Fernando Magno...
Com fama longínqua de «Altieiros»
certamente que, antes de se lançarem às rotas do Mar Alto teriam
sulcado a laguna em actividades piscatórias.
/ 34 /
O barco alteroso das Xávegas.
Insatisfeitos, porém, com a paz da
lagoa adormecida e sendo certo que, como disse o Poeta Brasileiro
Ribeiro Curto
«Nunca se naufraga
na ria inocente»
porque
«da crista da vaga
vêm braços à gente...»
os ílhavos não sofrearam a
ânsia da aventura e difundem-se pela costa fora numa espasmódica
actividade colonizadora, fundando núcleos de pescadores na Afurada,
na Nazaré, em Sesimbra, em Matosinhos, em Quiaios, em Lavos, na
Caparica e quiçá, até, no Reino dos Algarves.
É de ontem, por assim dizer, daqui
saírem barra fora, as «Enviadas» com dois homens apenas, rumando ao
Tejo e levando como único instrumento orientador, no dizer de
Alexandre da Conceição, um «relógio de Sol de trinta reis».
|
E é, até, numa daquelas sumárias
embarcações de fundo chato e de vela, pouco mais do que primitiva,
que o Tomé Ronca – um lobo do mar que aquele escritor
ilhavense desenha biograficamente – sai sozinho da Barra, rumando a
Lisboa, apenas confiado no seu raciocínio silogístico que o levava a
não acreditar em naufrágios pela razão simples de que – «sendo o
barco de tábuas e não indo as tábuas ao fundo, era claro que não
iria ao fundo o barco»...
/ 35 /
«Altieiros» como eram de raiz
acabaram por se virar para as viagens de longe curso esfumando a sua
actividade piscatória e vindo, assim, a dar razão aos que opinam que
«foi das colmeias de pescadores que saíram os navegantes»... e que
«as grandes navegações quase que acabaram com as pescarias»...
|
Proa de moliceiro. |
As Xávegas, realmente, eram para os
ílhavos uma espécie de actividade lúdica que até era acessível aos
ócios dos lavradores e que era incompatível com o seu horror inato
ao sedentarismo.
O Raul Brandão, por exemplo,
conta que a «Ti Ana Arrieira» «uma mulher capazona com cuja a
amizade se honrava», quando entendia que a sua ajuda era precisa não
hesitava em espetar a aguilhada na areia da praia e ir num barco à
pesca da sardinha, agarrada a um remo como um homem.
Aliás são os bois que lavram a terra
que, enfeitados com seus jugos entalhados e policromados, vão puxar
as redes grávidas de peixe faiscante, o que fez com que D. Miguel de
Unamuno, ao falar do fenómeno, o designasse como uma «ruralização do
Mar»...
Este ímpeto de deixar a terra para
fora do alcance da vista e de arrostar com a água sem balizas, sem
pontos de referência, foi vocação quando os lugres levaram os nossos
marinheiros às geladas paragens da Terra-Nova e, depois da
Groenlândia, como o é, agora em que o resfolgar dos motores fez
arrear as velas jeitosas que estavam à mercê do vento que soprava.
«Ao que parece», escreve António
Sérgio, «foram os de Aveiro e de Viana, os iniciadores da pesca do
bacalhau na Terra Nova», para logo a seguir informar de que, no
tempo de D. Manuel, o Venturoso, era este (o porto de Aveiro), de
toda a costa, o que mais Naus enviava àquela zona. Pelo ano de 1550
possuíam os pescadores do Porto de Aveiro nada menos do que 150
barcos apropriados à faina da Terra-Nova e, em 1552, e no Norte do
País, o que a todos superava em arqueação de navios (entre 50 a 60
tons.).
Mas, na actividade piscatória, seria
uma injustiça omitir, aqui, uma referência aos «Murtoseiros» que,
constituindo uma casta de gente muito diversa da dos «ílhavos», dado
que nela coexiste, misturada à vocação para a água, uma actividade
paralela de lavradores que os faz revolver a leiva marginal com
delicadezas de jardineiro, assina, pontualmente, o livro do ponto
dos trabalhadores da laguna e é barqueiro, pescador e homem com
raízes tão ténues na terra que cultiva que ela não consegue diluir
nele a insofrida vocação de emigrante impenitente.
Jaime de Magalhães Lima
estabelece o contraste entre os dois tipos humanos, sempre pelo
caminho de uma intuição lúcida, dizendo que pressentia «na voz da
gente de Ílhavo – Ecos de Tartassos», como na voz da gente da
Murtosa ouve «o rumor afreimado e rude de embarcadiços arrojados,
largando ávidos dos recifes do Báltico e do Mar do Norte em busca de
presas»...
Quer isto dizer que os ílhavos
seriam oriundos das suaves brisas mediterrânicas, de estirpe Fenícia
ou Pelasga, enquanto os Murtoseiros entroncariam na progénie
normanda, donde lhe viria a seiva que os empurra para a emigração.
|
|
Regata de moliceiros (Festa da Ria) |
Também Garrett, nas «Viagens
na Minha Terra», descrevendo uma acalorada disputa entre ílhavos e
Campinos, atribui aos primeiros uma origem mediterrânica, ao
escrever num retrato comparativo que, «em vez de calção amarelo e de
jaqueta de ramagens que caracterizavam o homem do forcado, estes (os
ílhavos) vestiam o «amplo saiote grego» dos varinos e o «Tabardo
arrequefado siciliano» de pano de varas. O campino, como o saloio,
tem o cunho da raça africana. Estes «(os ílhavos) são da família
pelasga: feições regulares e móveis, a forma ágil»...
Seja como for, aceitemos ou não
estes argumentos conjecturais, a presença destes dois tipos humanos,
tão específicos e tão dissemelhantes ao mesmo tempo, é solicitante
para aventuras temerárias à cata de raízes. E só numa prudência de
fundo positivista a que não sou capaz de me eximir, me inibe de dar
adesão completa
/ 37 / e entusiástica às
investidas pelo caminho de «pé-posto», do critério compreensivo que
tantas vezes se antecipa, luminosamente, à calçada solidamente
explicativa que a ciência, pacientemente e friamente, vai
construindo.
Falou-se de marnotos, falou-se de
pescadores e navegantes, faltando apenas falar dos «Gafanhões»
que vieram, por fim tratar da moldura, afeiçoando a terra que debrua
a laguna e substituindo a desolação da duna e da flora quaresmal
que, a medo, aflorava, por uma verdura indivisível de milheirais
frescos e viçosos e de batatais que lhe corroboram os tons abertos
com gradações sublinhantes que parecem oriundos de uma paleta de
pintor.
Quando aí por volta de 1677, os
foreiros do Conde de Aveiras, senhor de Vagos, vieram com os seus
enxadões violar a virgindade das lombas para as cultivar, não
toparam nelas com nenhuma quentura maternal para as sementes que
queriam lançar-lhe sobre o dorso, nem lhe sentiram nas entranhas
qualquer resquício de matéria orgânica capaz de dar alento a uma
vontade que não fosse dotada de ganas para teimar, independentemente
de qualquer aceno indutor.
A labuta ofegante do sal «factício». |
Terra gafada e mutável ao sabor do
vento onde, aqui e além, nalguma baixeira mais fresca, se
aventuravam a arrebitar vergônteas, umas tristes plantinhas
cinzentas, onde se não catava um indício de clorofila, ou um maciço
de junco hirto e agressivo como uma coroa de espinhos – a terra das
Gafanhas recebia, pasmada e interrogativa, as primeiras bagadas do
suor que o trabalho humano destila.
Dava-se uma cavadela e, antes de
levantar o gume faiscante da alfaia à altura do cabeça, logo a terra
arrunhava arrasando a cova que procurava o filão da esperança.
|
Momento a momento, o perfil da duna
mudava de cariz – quer planificando-se numa promessa de assentação,
quer avolumando-se a soterrar o vislumbre da confiança.
Os passos atolavam-se naquela areia
movediça, cambando os pés do caminheiro e, um quilómetro de percurso
era capaz de esfalfar um dromedário, quanto mais um homem!
Mas os «Gafanhões» não
desanimaram...
Foram-se a ela e, encharcados até ao
tutano, revolveram-lhe as entranhas a ponto de lhes nascer água
debaixo dos pés – água salobra, que ardia na língua, que cheirava a
ácido fénico e que não podia acalentar esperanças desmedidas.
E, então, os homens olharam para o
«Nilo» que lhe passava à ilharga, descansaram sobre a sua superfície
de aço polido os olhos fatigados e mordidos pela areia; atentaram no
oiro em fusão que o sol derramava nele e sulcaram-no decididamente à
procura de uma ajuda. O barco «Moliceiro», que no dizer de Virgílio
Correia «não tem parceiros em qualquer parte do Mundo», içou a vela
rectangular, lançou a «pá da borda», virou para trás,
petulantemente, a cabeça de gaivota que lhe termina a proa e rompeu
vaidoso, a bolinar pela Ria fora, com os ancinhos descomunais a
pentear o leito lodoso e a arrancar-lhe os cabelos verdes e frescos
que, depois, deixava em medas, na borda, a secar para que o tempo
lhe corrigisse a demasia do tempero!
/ 38 /
|
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Barco
moliceiro na faina. |
Ancinhos – Os pentes que penteiam o
leito da Ria na apanha do moliço
E voltaram à terra... Surribaram-na,
pacientemente, sem sofreguidão, deixando-a de ventre assoalhado,
para depois lhe misturar o «moliço» e o Iodo que a Ria lhes tinha
posto ao alcance da alfaia.
A duna mostrou-se avara para a
súplica do semeador e deu-lhe, em troca do esforço, uns pés de milho
raquítico, que mal embandeirou e não chegou, sequer, para matar a
fome dos bois que, todo o Inverno, ruminaram umas magras ervas
nascediças entremeadas com os caules fibrosos da milharada...
Mas aqueles homens sacaram da
desesperança novas energias e voltaram ao princípio, continuando
afanosamente a engodar a terra, misturando-lhe algas e «escasso» e
revolvendo-a com desvelos paternais.
Calafates no Canal de S. Roque, em
Aveiro. Uma actividade bem enquadrada na paisagem envolvente.
Nos intervalos tiveram, ainda, filão
de fantasia para ir decorando, carinhosamente, as proas elegantes
dos seus «moliceiros», salpicando-as do sal da ironia nas figurinhas
e nas legendas em que os próprios erros de ortografia corroboravam,
inconscientemente, a malícia das ilustrações.
E até tiveram a coragem para, uma
vez por outra, carregarem de esperança os sumários textos com um
confiado «ORA BAMUS LA CUM DEOS»...
E cegos à negativa hostil que lhe
respondia ao afago, fechados aos avisos uivados do vento que lhes
carreava sobre as culturas nuvens de areia, polvilhando-as de
palhetas de mica espelhante, não desanimaram.
E realizavam o milagre.
Então a laguna ficou encaixilhada
por uma orla de jardins verdejantes, onde se destaca um nunca acabar
de casitas alapadas – «casas de meia roda» como por lá lhe chamavam
– estendendo-se em lagarta e polvilhando a verdura com os seus
telhados de um vermelho vivo...
Fazedor de paisagem por excelência,
o homem da região tinha a obra concluída: quadriculou de brancura a
extensão aquática; infestou o espelho da laguna de velas e de barcos
e agricultou a terra marginal, assentando-lhe em cima cortiços de
gente...
Basta olhar para lhes ver as
impressões digitais; basta respirar para lhes sentir o cheiro do
suor milagroso, que só a fronte humana é capaz de destilar.
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NOTA:
(1) – Conferência proferida no
Museu Marítimo e Municipal de Ílhavo em 3 de Abril de 1981, do qual
era então director. |