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N.º 29

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Novembro de 1981 

O vinho no seu aspecto imaterial

Por Octávio Pato

Eng.º Técnico Agrário

NOTA DA REDACÇÃO

– O presente artigo do Sr. Eng.º Técnico-Agrário bairradino OCTÁVIO PATO estava para ser incluído nos anteriores números da REVISTA, o que porém não foi possível, por se pensar que o volume de artigos insertos era já suficiente.

 

– Embora não se trate de artigo que diga respeito única e exclusivamente a temas do DISTRITO, entendeu-se, pela graça e espírito nele revelados, por se reconhecer que o DISTRITO DE AVEIRO, entre as múltiplas actividades em que o mesmo é pródigo e se emprega a sua laboriosa população, a produção do vinho é uma das suas importantes riquezas, aliás devidamente reconhecida com a ainda relativamente recente criação da «REGIÃO DEMARCADA DA BAIRRADA», entendeu-se que o mesmo se integrará perfeitamente no âmbito da publicação ora dada ao prelo...

 

Não trago aqui novidade alguma ao afirmar que o vinho é incontestavelmente a bebida que, desde remotas eras, mais tem despertado a atenção do homem. Em cada hora que passa, centenas de sábios de todo o mundo vitícola debruçam-se sobre ele, numa tentativa constante e bem justificada de penetrarem, mais e mais, a sua química complexa, a sua variadíssima flora microbiana. Acendem-se discussões entre os higienistas no humano intuito de esclarecer se o uso do vinho traz a morte ou a vida. Todos os anos os inúmeros enólogos dos diferentes países vinhateiros, aglomerados em congressos vitivinícolas, acrescentam mais um pormenor na técnica da feitoria ou da conservação, ou mais uma variante na arte de o apresentar ou de o beber.

Para além do aspecto material do vinho, seja o problema económico que constitui para tantos milhões de seres humanos que levam a vida produzindo-o, seja o problema científico que constitui para tantos estudiosos, e cujo objectivo é penetrar mais fundo o segredo dos seus fenómenos, não é difícil perceber, no sumo fermentado da videira, algo de inconsistente que nos extasia e se volatiliza dentro de nós, que foge ao controlo dos números, como que a consubstanciação de uma mensagem de felicidade que toca quem o bebe. Mensagem essa que ilumina o espírito sem excitar os nervos, que envolve o coração sem perturbar o cérebro.

Não falamos já dos seus efeitos sob as musas dos poetas que o vêm cantando em poemas imortais, conquanto não demos fé de que a água mais «bacteriologicamente puríssima», o leite mais fresco, a cerveja mais espumante ou ainda a aguardente mais quente, tenham soltado algum dia a imaginação dos vates para os voos da fantasia. A nossa atenção deter-se-á, por momentos, sobre o que poderemos definir de diálogo homem-vinho, tema em que a Natureza se nos revela em toda a sua extraordinária sensibilidade.

Queremos transmitir a quem nos lê algo das nossas convicções, mau grado nos acusem de deambular sem proveito no campo irreal das afirmações cor de rosa. Enfim, serão considerações de ordem sentimental a fugirem à aridez dos números e ao materialismo dos fenómenos.

A verdade é que, para nós, o vinho não é simplesmente esse complexo fluido em permanente evolução química e biológica. Ele tem vida, sem dúvida; mais: ele tem alma. Bem entendido que nos referimos ao vinho genuíno, puro, natural: ao vinho que é insubstituível complemento no todo gastronómico e elemento ideal na ponderada libação.

Considerado nas suas sedutoras propriedades, o vinho é tido justamente como bebida própria dos deuses. / 10 /

É sol engarrafado nas encostas privilegiadas. É sumo excelso que refresca e dispõe bem. Como disse Frei Lucas de St.ª Catarina (1753), o vinho «é a muleta dos velhos, a bengala dos moços, o apisto dos enfermos, as cócegas dos tristes, a esmola dos pobres, o melaço dos marotos, o cachimbo dos pretos, o chocolate dos lacaios, o mimo das damas, o beijo das freiras, a mecha das moças, o borralho dos velhos». Nós diremos ainda que ele é a chave da verdade, a força dos cobardes, a mitigação da dor, a terapêutica das paixões não correspondidas.

Qual é, nele, então o corpo de onde dimana toda esta força transcendente e comunicativa que nos cala a razão e torna afáveis os seus apreciadores.

Em boa verdade não é válido considerar o vinho tão-somente um produto hidroalcoólico contendo em maior ou menor percentagem determinadas substâncias úteis ao nosso organismo. Por isso mesmo o professor Amerine entende que o vinho, quando digno de tal nome, desperta a nossa curiosidade intelectual, levando-nos a distinguir entre o belo e o ordinário. Sim, no vinho, além dos componentes que o caracterizam na apreciação grosseira, componentes identificáveis pela análise química ou física, neles incluídos os que transparecem em fruta, espírito e «bouquet», qualquer coisa mais lhe dá foros de bebida única, por aliciante e sublime. São os elementos imponderáveis que lhe definem a fragrância, moléculas incorpóreas que lhe insuflam a vida, numa palavra: que nele formam a alma.

Naturalmente que a alma não é perceptível em qualquer vinho, nem está na condição de todo o que bebe dar fé desta mística que é, como vimos de dizer, privilégio dos vinhos puros. Aceitável é que esta comunhão de entendimentos, o diálogo a que aludimos entre o apreciador e a bebida excelsa, resulte de semelhantes estados de sensibilidade, da parte do homem e do vinho. Não admira, pois, que um diálogo espiritual jamais possa ter lugar entre o bebedor encartado, digamos o borracho, e um vinho de classe, – ou entre o apreciador intelectual e a pisorga detestável. O entendimento perfeito é recíproco que se estabelece entre o vinho e o homem, vem de facto da identidade de características e do grau de pureza alcançados por um e outro.

Indo um pouco mais longe neste paralelo de caracteres que estamos formulando entre o homem e o vinho, não vemos relutância em admitir que, tal qual se passa no plano social, onde os indivíduos por convivência prolongada transmitem reciprocamente a índole e o carácter, também entre o homem e o vinho se pode aperceber uma transmissão de qualidades próprias processada ao longo dos anos. Assim, o homem pacífico e sossegado prefere relacionar-se com os vinhos macios e leves; por isso os fabrica deste jeito. Inversamente, os vinhos rijos e alcoólicos do Douro ou do Cartaxo fazem destemidos os transmontanos e temerários os do Ribatejo.

Correlação ainda mais destacável existe entre o vinho e a mulher, talvez por esta ser mais receptiva. Há uma nítida identidade de sentimentos no vinho e na mulher, como se Deus ao criar este e aquela quisesse em seus altos desígnios oferecer ao homem dois frutos de sabor insinuante, apetitosos no uso comedido e amargos no abuso.

Concretizemos a opinião: Apelida-se correntemente de adamado o vinho que é doce ao beber. Pode inferir-se da aplicação da palavra adamar, no sentido de tornar doce o vinho, que a doçura é uma virtude permanente na mulher? Não, a doçura é na mulher um estado da alma como no vinho. A doçura é dada pelo açúcar, e salientemos a propósito a facilidade com que ele fermenta, substituindo a macieza pela secura...

Mas a correlação entre um e outra é perceptível em múltiplos aspectos. Pode observar-se sem grandes esforços de ordem literária que uma sinonímia qualificativa se ajusta indiferentemente à mulher e ao vinho. Na realidade, o vinho como a mulher pode ser delicado ou rude, espirituoso ou ensimesmado, inofensivo ou excitante, insípido ou saboroso, perfumado ou inodoro, apetecido ou indiferente, quente ou frio, expansivo ou retraído, amortecido ou sensual, insensível ou voluptuoso, vivo ou inexpressivo... Enfim, como a mulher, o vinho pode ser macio até à doçura ou áspero até ao azedo.

Oh! Quanto os vinhos mais leves, perfumados, bonitos e atraentes, se assemelham às mulheres mais gentis e sedutoras! Reparai quanto estas e aqueles são precisamente os mais expostos às contingências que levam à degradação: degradação biológica dos vinhos mais finos; degradação moral das mulheres mais belas.

Uma característica, talvez única, toma aspectos opostos no vinho e nas damas. Referimo-nos à velhice. É um facto que os vinhos se tornam mais atraentes com a idade, ao contrário das mulheres. E se tivermos em mente que, enquanto estas perdem certas qualidades com os anos, os vinhos as adquirem, podendo pois a acentuação aromática do vinho compensar o declínio da mulher, isso vem ainda reforçar a nossa afirmação de que o criador, ao dar ao homem a mulher e o vinho, teve em vista a nossa felicidade.

Tenhamos em conta todavia uma afirmação da Bíblia que nos põe de sobreaviso contra o predomínio de qualquer deles sobre o homem, que pode levá-lo à degradação mental. Mais do que em qualquer outra ocasião vem agora a propósito a citação das Escrituras: / 11 /

«Vinum et mulieres apostatare faciunt sapienta» (O vinho e as mulheres fazem apostatar os sábios).

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Não completaríamos a nossa ideia se terminássemos estas desarticuladas considerações sem focar outro aspecto desta correlação evidente que se observa entre o vinho e a mulher: melhor diremos, entre o tipo dos vinhos de determinada região e a índole ou o temperamento, como quem diz a alma das mulheres naturais dessa mesma região. É assim que a tagarelice da mulher algarvia se identifica com a espiritualidade dos vinhos da Fuzeta e de Lagoa; que a agulha dos vinhos verdes se reflecte na vivacidade da mulher minhota; que o cunho fidalgo da mulher beirã não destoa da nobreza dos vinhos do Dão, que a virilidade da mulher bairradina se irmana com o rascante dos vinhos da região...

Em face desta realidade, uma pergunta poderia agora ser posta: – Com que região vinícola deveremos relacionar a mulher lisboeta?

Bem, a mulher alfacinha não faz parte de um tipo homogéneo. Ela surge de uma mescla que enferma naturalmente das características próprias das várias zonas vitícolas que abastecem a capital.

Assim, a mulher lisboeta será meiga como os vinhos de Bucelas, arisca como os vinhos de Colares, macia como os vinhos do Montijo, ou castiça como os vinhos do Cartaxo... E nós frisaremos ainda que, se numa larga percentagem a mulher de Lisboa é picante, salgada mesmo, tais propriedades são obra da região vinícola do Poço do Bispo e do largo uso que ali se faz da água do Tejo...

Em suma: no que viemos de dizer poderão os nossos pacientes leitores ter encontrado demasiado devaneio poético, ou o resultado de provável libação nocturna que levou ao menosprezo pelas realidades de que se reveste tão sério assunto. Desde já declaramos aqui, peremptoriamente, que não bebemos de mais e que mantemos os pontos de vista expostos. Há que admitir, sim, é que o sumo da cepa, bebido em peso, conta e medida, mesmo assim desperta o pensamento para as divagações, sobretudo se há entre ele e quem o bebe uma mútua compreensão. Mais diremos que o normal apreciador do vinho procura nesta bebida, não a satisfação de uma necessidade imediata – a dessedentação, que tem o seu lugar próprio no tasco – o verdadeiro apreciador procura nele o complemento da alimentação, o estimulante das energias e, de algum modo, o lenitivo para as angústias que lhe tolhem a alma, proporcionando a esta o voo sublime para o ambiente são e fresco, como o das paisagens em que a vinha se deleita. E a propósito?...

Alguém disse, não sabemos onde, que a qualidade dos vinhos está intimamente relacionado com o cenário paisagístico usufruído pelas vinhas respectivas. Ver-se-ia deste modo, nas virtudes dos deliciosos falernos, não apenas a sequência geográfica ligada à casta, mas também uma manifestação de sentimento artístico, o que / 12 / levaria a localizar no arbusto nobre a génese da alma que atribuímos ao vinho.

Quem se debruçar sobre um mapa do País notará esta coincidência curiosa: as vinhas de Monção olhando a Serra da Peneda; as de Vila Real e Lamego voltadas ao Marão, e as do Douro mirando sempre as encostas frontais; as da Bairrada mirando o Caramulo e o Buçaco: as do Dão espreitando o Caramulo e a Estrela.

No Sul, o facto é ainda mais convincente. Assim, os vinhos de Colares gozam o panorama de Sintra; os de Borba beneficiam da Serra d'Ossa e os de Castelo de Vide da Serra de São Mamede. Enfim, a Arrábida fará os vinhos de Setúbal e Palmela; o Caldeirão os da Fuzeta e de Lagoa.

Na asserção não há tão somente divagação filosófica, ou arroubo literário de poetas. Porque se estes podem ter na sua fantasia a qualidade como consequência panorâmica, o botânico, mais realista, justifica o facto relacionando os elementos paisagísticos – florestas serranias, etc. – com a sua comprovada influência sobre o clima a que a cepa é incontestávelmente sensível.

Descendo um pouco os degraus da realidade – e já não era sem tempo – temos de convir que o vinho, se nos alicia pela fruta e pelo «bouquet» que exala, agrada-nos particularmente pela essência euforizante que o personifica. Digamos sem rodeios: ele agrada essencialmente pelo álcool que contém.

Tinto ou clarete, rosado ou branco, verde ou maduro, não fora esse espírito que simultaneamente aquece e levanta os ânimos, e o sumo da uva perderia o seu real interesse.

A despeito de ser o vinho a bebida alcoólica mais harmoniosa e inofensiva nas suas consequências fisiológicas, já pela sua natural riqueza em substâncias benéficas para o organismo humano, já pelo equilíbrio perfeito em que estas se encontram, incluindo o próprio álcool, é um facto por demais verificado que a arte de beber se pratica algumas vezes deploravelmente à beira do que poderemos definir como abismo higiénico, em cujas proximidades deambulamos com o simples grão na asa, euforizante e passageiro, ou no qual mergulhamos vergonhosamente se a libação ultrapassou os limites da conveniência. Logicamente, tal ligação deixa assim de ser uma arte para ser uma porcaria imoral e ruinosa. Porque no meio termo está a virtude, não devemos permanecer nem abstémios nem demasiado amigos do vinho.

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De resto, devemos ainda salientar, tal como nos homens, há vinhos que são leais e vinhos traiçoeiros, ou seja, os que levam o bebedor aos bordos até à cama ou o tombam directamente ao chão. A falta de lealdade é muitas vezes consequência dos maus tratos que lhes inflige o próprio homem. Estamos referindo os lotes dos armazéns, a adição com exagero de substâncias estranhas, como o sulfitos, a aguardente, etc., que alteram o equilíbrio normal transmitido pelos mostos. Está suficientemente verificado que todo o tratamento desvirtua o vinho em maior ou menor grau. Eis um facto, da nossa própria experiência, que abona a nossa afirmação.

Um vinho genuíno, mesmo com 14 graus, pode não fazer mal algum, se o tomamos parcimoniosamente. Se este vinho sofrer, não diremos já operações de mixórdia, mas simples operações técnicas autorizadas por lei, ainda que agora acuse menos grau, uma menor quantidade ingerida é susceptível de ocasionar perturbações no organismo. E isso provém de se ter quebrado o equilíbrio natural que estava na origem do vinho.

Finalmente resta-nos dizer que todo o trabalho do enólogo será louvável desde que permita ao viticultor corrigir os seus vinhos por forma que estes, tanto quanto possível, não se afastem da sua natural composição. Quer dizer: que mantenham a sua alma.

Lisboa, 1963.

 

páginas 9 a 12

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