NOTA DA REDACÇÃO
– O presente artigo do Sr. Eng.º
Técnico-Agrário bairradino OCTÁVIO PATO estava para ser incluído nos
anteriores números da REVISTA, o que porém não foi possível, por se
pensar que o volume de artigos insertos era já suficiente.
– Embora não se trate de artigo que
diga respeito única e exclusivamente a temas do DISTRITO,
entendeu-se, pela graça e espírito nele revelados, por se reconhecer
que o DISTRITO DE AVEIRO, entre as múltiplas actividades em que o
mesmo é pródigo e se emprega a sua laboriosa população, a produção
do vinho é uma das suas importantes riquezas, aliás devidamente
reconhecida com a ainda relativamente recente criação da «REGIÃO
DEMARCADA DA BAIRRADA», entendeu-se que o mesmo se integrará
perfeitamente no âmbito da publicação ora dada ao prelo...
Não trago aqui novidade alguma ao
afirmar que o vinho é incontestavelmente a bebida que, desde remotas
eras, mais tem despertado a atenção do homem. Em cada hora que
passa, centenas de sábios de todo o mundo vitícola debruçam-se sobre
ele, numa tentativa constante e bem justificada de penetrarem, mais
e mais, a sua química complexa, a sua variadíssima flora microbiana.
Acendem-se discussões entre os higienistas no humano intuito de
esclarecer se o uso do vinho traz a morte ou a vida. Todos os anos
os inúmeros enólogos dos diferentes países vinhateiros, aglomerados
em congressos vitivinícolas, acrescentam mais um pormenor na técnica
da feitoria ou da conservação, ou mais uma variante na arte de o
apresentar ou de o beber.
Para além do aspecto material do
vinho, seja o problema económico que constitui para tantos milhões
de seres humanos que levam a vida produzindo-o, seja o problema
científico que constitui para tantos estudiosos, e cujo objectivo é
penetrar mais fundo o segredo dos seus fenómenos, não é difícil
perceber, no sumo fermentado da videira, algo de inconsistente que
nos extasia e se volatiliza dentro de nós, que foge ao controlo dos
números, como que a consubstanciação de uma mensagem de felicidade
que toca quem o bebe. Mensagem essa que ilumina o espírito sem
excitar os nervos, que envolve o coração sem perturbar o cérebro.
Não falamos já dos seus efeitos sob
as musas dos poetas que o vêm cantando em poemas imortais, conquanto
não demos fé de que a água mais «bacteriologicamente puríssima», o
leite mais fresco, a cerveja mais espumante ou ainda a aguardente
mais quente, tenham soltado algum dia a imaginação dos vates para os
voos da fantasia. A nossa atenção deter-se-á, por momentos, sobre o
que poderemos definir de diálogo homem-vinho, tema em que a Natureza
se nos revela em toda a sua extraordinária sensibilidade.
Queremos transmitir a quem nos lê
algo das nossas convicções, mau grado nos acusem de deambular sem
proveito no campo irreal das afirmações cor de rosa. Enfim, serão
considerações de ordem sentimental a fugirem à aridez dos números e
ao materialismo dos fenómenos.
A verdade é que, para nós, o vinho
não é simplesmente esse complexo fluido em permanente evolução
química e biológica. Ele tem vida, sem dúvida; mais: ele tem alma.
Bem entendido que nos referimos ao vinho genuíno, puro, natural: ao
vinho que é insubstituível complemento no todo gastronómico e
elemento ideal na ponderada libação.
Considerado nas suas sedutoras
propriedades, o vinho é tido justamente como bebida própria dos
deuses.
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É sol engarrafado nas encostas
privilegiadas. É sumo excelso que refresca e dispõe bem. Como disse
Frei Lucas de St.ª Catarina (1753), o vinho «é a muleta dos
velhos, a bengala dos moços, o apisto dos enfermos, as cócegas dos
tristes, a esmola dos pobres, o melaço dos marotos, o cachimbo dos
pretos, o chocolate dos lacaios, o mimo das damas, o beijo das
freiras, a mecha das moças, o borralho dos velhos». Nós diremos
ainda que ele é a chave da verdade, a força dos cobardes, a
mitigação da dor, a terapêutica das paixões não correspondidas.
Qual é, nele, então o corpo de onde
dimana toda esta força transcendente e comunicativa que nos cala a
razão e torna afáveis os seus apreciadores.
Em boa verdade não é válido
considerar o vinho tão-somente um produto hidroalcoólico contendo em
maior ou menor percentagem determinadas substâncias úteis ao nosso
organismo. Por isso mesmo o professor Amerine entende que o vinho,
quando digno de tal nome, desperta a nossa curiosidade intelectual,
levando-nos a distinguir entre o belo e o ordinário. Sim, no vinho,
além dos componentes que o caracterizam na apreciação grosseira,
componentes identificáveis pela análise química ou física, neles
incluídos os que transparecem em fruta, espírito e «bouquet»,
qualquer coisa mais lhe dá foros de bebida única, por aliciante e
sublime. São os elementos imponderáveis que lhe definem a
fragrância, moléculas incorpóreas que lhe insuflam a vida, numa
palavra: que nele formam a alma.
Naturalmente que a alma não é
perceptível em qualquer vinho, nem está na condição de todo o que
bebe dar fé desta mística que é, como vimos de dizer, privilégio dos
vinhos puros. Aceitável é que esta comunhão de entendimentos, o
diálogo a que aludimos entre o apreciador e a bebida excelsa,
resulte de semelhantes estados de sensibilidade, da parte do homem e
do vinho. Não admira, pois, que um diálogo espiritual jamais possa
ter lugar entre o bebedor encartado, digamos o borracho, e um vinho
de classe, – ou entre o apreciador intelectual e a pisorga
detestável. O entendimento perfeito é recíproco que se estabelece
entre o vinho e o homem, vem de facto da identidade de
características e do grau de pureza alcançados por um e outro.
Indo um pouco mais longe neste
paralelo de caracteres que estamos formulando entre o homem e o
vinho, não vemos relutância em admitir que, tal qual se passa no
plano social, onde os indivíduos por convivência prolongada
transmitem reciprocamente a índole e o carácter, também entre o
homem e o vinho se pode aperceber uma transmissão de qualidades
próprias processada ao longo dos anos. Assim, o homem pacífico e
sossegado prefere relacionar-se com os vinhos macios e leves; por
isso os fabrica deste jeito. Inversamente, os vinhos rijos e
alcoólicos do Douro ou do Cartaxo fazem destemidos os transmontanos
e temerários os do Ribatejo.
Correlação ainda mais destacável
existe entre o vinho e a mulher, talvez por esta ser mais receptiva.
Há uma nítida identidade de sentimentos no vinho e na mulher, como
se Deus ao criar este e aquela quisesse em seus altos desígnios
oferecer ao homem dois frutos de sabor insinuante, apetitosos no uso
comedido e amargos no abuso.
Concretizemos a opinião: Apelida-se
correntemente de adamado o vinho que é doce ao beber. Pode
inferir-se da aplicação da palavra adamar, no sentido de tornar doce
o vinho, que a doçura é uma virtude permanente na mulher? Não, a
doçura é na mulher um estado da alma como no vinho. A doçura é dada
pelo açúcar, e salientemos a propósito a facilidade com que ele
fermenta, substituindo a macieza pela secura...
Mas a correlação entre um e outra é
perceptível em múltiplos aspectos. Pode observar-se sem grandes
esforços de ordem literária que uma sinonímia qualificativa se
ajusta indiferentemente à mulher e ao vinho. Na realidade, o vinho
como a mulher pode ser delicado ou rude, espirituoso ou ensimesmado,
inofensivo ou excitante, insípido ou saboroso, perfumado ou inodoro,
apetecido ou indiferente, quente ou frio, expansivo ou retraído,
amortecido ou sensual, insensível ou voluptuoso, vivo ou
inexpressivo... Enfim, como a mulher, o vinho pode ser macio até à
doçura ou áspero até ao azedo.
Oh! Quanto os vinhos mais leves,
perfumados, bonitos e atraentes, se assemelham às mulheres mais
gentis e sedutoras! Reparai quanto estas e aqueles são precisamente
os mais expostos às contingências que levam à degradação: degradação
biológica dos vinhos mais finos; degradação moral das mulheres mais
belas.
Uma característica, talvez única,
toma aspectos opostos no vinho e nas damas. Referimo-nos à velhice.
É um facto que os vinhos se tornam mais atraentes com a idade, ao
contrário das mulheres. E se tivermos em mente que, enquanto estas
perdem certas qualidades com os anos, os vinhos as adquirem, podendo
pois a acentuação aromática do vinho compensar o declínio da mulher,
isso vem ainda reforçar a nossa afirmação de que o criador, ao dar
ao homem a mulher e o vinho, teve em vista a nossa felicidade.
Tenhamos em conta todavia uma
afirmação da Bíblia que nos põe de sobreaviso contra o predomínio de
qualquer deles sobre o homem, que pode levá-lo à degradação mental.
Mais do que em qualquer outra ocasião vem agora a propósito a
citação das Escrituras:
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«Vinum et mulieres apostatare
faciunt sapienta» (O
vinho e as mulheres fazem apostatar os sábios).
Não completaríamos a nossa ideia se
terminássemos estas desarticuladas considerações sem focar outro
aspecto desta correlação evidente que se observa entre o vinho e a
mulher: melhor diremos, entre o tipo dos vinhos de determinada
região e a índole ou o temperamento, como quem diz a alma das
mulheres naturais dessa mesma região. É assim que a tagarelice da
mulher algarvia se identifica com a espiritualidade dos vinhos da
Fuzeta e de Lagoa; que a agulha dos vinhos verdes se reflecte na
vivacidade da mulher minhota; que o cunho fidalgo da mulher beirã
não destoa da nobreza dos vinhos do Dão, que a virilidade da mulher
bairradina se irmana com o rascante dos vinhos da região...
Em face desta realidade, uma
pergunta poderia agora ser posta: – Com que região vinícola
deveremos relacionar a mulher lisboeta?
Bem, a mulher alfacinha não faz
parte de um tipo homogéneo. Ela surge de uma mescla que enferma
naturalmente das características próprias das várias zonas vitícolas
que abastecem a capital.
Assim, a mulher lisboeta será meiga
como os vinhos de Bucelas, arisca como os vinhos de Colares, macia
como os vinhos do Montijo, ou castiça como os vinhos do Cartaxo... E
nós frisaremos ainda que, se numa larga percentagem a mulher de
Lisboa é picante, salgada mesmo, tais propriedades são obra da
região vinícola do Poço do Bispo e do largo uso que ali se faz da
água do Tejo...
Em suma: no que viemos de dizer
poderão os nossos pacientes leitores ter encontrado demasiado
devaneio poético, ou o resultado de provável libação nocturna que
levou ao menosprezo pelas realidades de que se reveste tão sério
assunto. Desde já declaramos aqui, peremptoriamente, que não bebemos
de mais e que mantemos os pontos de vista expostos. Há que admitir,
sim, é que o sumo da cepa, bebido em peso, conta e medida, mesmo
assim desperta o pensamento para as divagações, sobretudo se há
entre ele e quem o bebe uma mútua compreensão. Mais diremos que o
normal apreciador do vinho procura nesta bebida, não a satisfação de
uma necessidade imediata – a dessedentação, que tem o seu lugar
próprio no tasco – o verdadeiro apreciador procura nele o
complemento da alimentação, o estimulante das energias e, de algum
modo, o lenitivo para as angústias que lhe tolhem a alma,
proporcionando a esta o voo sublime para o ambiente são e fresco,
como o das paisagens em que a vinha se deleita. E a propósito?...
Alguém disse, não sabemos onde, que
a qualidade dos vinhos está intimamente relacionado com o cenário
paisagístico usufruído pelas vinhas respectivas. Ver-se-ia deste
modo, nas virtudes dos deliciosos falernos, não apenas a sequência
geográfica ligada à casta, mas também uma manifestação de sentimento
artístico, o que
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arbusto nobre a génese da alma que atribuímos ao vinho.
Quem se debruçar sobre um mapa do
País notará esta coincidência curiosa: as vinhas de Monção olhando a
Serra da Peneda; as de Vila Real e Lamego voltadas ao Marão, e as do
Douro mirando sempre as encostas frontais; as da Bairrada mirando o
Caramulo e o Buçaco: as do Dão espreitando o Caramulo e a Estrela.
No Sul, o facto é ainda mais
convincente. Assim, os vinhos de Colares gozam o panorama de Sintra;
os de Borba beneficiam da Serra d'Ossa e os de Castelo de Vide da
Serra de São Mamede. Enfim, a Arrábida fará os vinhos de Setúbal e
Palmela; o Caldeirão os da Fuzeta e de Lagoa.
Na asserção não há tão somente
divagação filosófica, ou arroubo literário de poetas. Porque se
estes podem ter na sua fantasia a qualidade como consequência
panorâmica, o botânico, mais realista, justifica o facto
relacionando os elementos paisagísticos – florestas serranias, etc.
– com a sua comprovada influência sobre o clima a que a cepa é
incontestávelmente sensível.
Descendo um pouco os degraus da
realidade – e já não era sem tempo – temos de convir que o vinho, se
nos alicia pela fruta e pelo «bouquet» que exala, agrada-nos
particularmente pela essência euforizante que o personifica. Digamos
sem rodeios: ele agrada essencialmente pelo álcool que contém.
Tinto ou clarete, rosado ou branco,
verde ou maduro, não fora esse espírito que simultaneamente aquece e
levanta os ânimos, e o sumo da uva perderia o seu real interesse.
A despeito de ser o vinho a bebida
alcoólica mais harmoniosa e inofensiva nas suas consequências
fisiológicas, já pela sua natural riqueza em substâncias benéficas
para o organismo humano, já pelo equilíbrio perfeito em que estas se
encontram, incluindo o próprio álcool, é um facto por demais
verificado que a arte de beber se pratica algumas vezes
deploravelmente à beira do que poderemos definir como abismo
higiénico, em cujas proximidades deambulamos com o simples grão na
asa, euforizante e passageiro, ou no qual mergulhamos
vergonhosamente se a libação ultrapassou os limites da conveniência.
Logicamente, tal ligação deixa assim de ser uma arte para ser uma
porcaria imoral e ruinosa. Porque no meio termo está a virtude, não
devemos permanecer nem abstémios nem demasiado amigos do vinho.
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De resto, devemos ainda salientar,
tal como nos homens, há vinhos que são leais e vinhos traiçoeiros,
ou seja, os que levam o bebedor aos bordos até à cama ou o tombam
directamente ao chão. A falta de lealdade é muitas vezes
consequência dos maus tratos que lhes inflige o próprio homem.
Estamos referindo os lotes dos armazéns, a adição com exagero de
substâncias estranhas, como o sulfitos, a aguardente, etc., que
alteram o equilíbrio normal transmitido pelos mostos. Está
suficientemente verificado que todo o tratamento desvirtua o vinho
em maior ou menor grau. Eis um facto, da nossa própria experiência,
que abona a nossa afirmação.
Um vinho genuíno, mesmo com 14
graus, pode não fazer mal algum, se o tomamos parcimoniosamente. Se
este vinho sofrer, não diremos já operações de mixórdia, mas simples
operações técnicas autorizadas por lei, ainda que agora acuse menos
grau, uma menor quantidade ingerida é susceptível de ocasionar
perturbações no organismo. E isso provém de se ter quebrado o
equilíbrio natural que estava na origem do vinho.
Finalmente resta-nos dizer que todo
o trabalho do enólogo será louvável desde que permita ao viticultor
corrigir os seus vinhos por forma que estes, tanto quanto possível,
não se afastem da sua natural composição. Quer dizer: que mantenham
a sua alma.
Lisboa, 1963. |