Subimos, de lá da terra de ao
rez-do-mar, que a água na preia-mar rasa e em certos ensejos invade
e cobre, até Viseu. Para Viseu, efectivamente, quem vem de Aveiro,
como eu – como nós – e, por maioria de razão, se é de Aveiro,
sobe-se. Por imperativo orográfico, porque ascendemos de uma terra
que se estende numa horizontalidade sem mais altitude que um
ondulado suave, à serra altaneira, e por essa circunstância
subjectiva, mas não menos real, de virmos saudar a irmã mais robusta
de compleição, medida por estalão mais elevado.
Trazemos-lhe o abraço fraterno –
fraterno e como que quase filial – e a mão afectuosa estendida para
que no-la aperte com a simpatia familiar, beirã – que para nós
também ufanamente reivindicamos –, com carinho e vigor. Vimos ao
encontro da amizade, como amigos que se abrem em afecto e no apoio
fraterno buscam estímulos para prosseguirem, mais seguros e
confiantes, e, numa companhia estimada e alentadora, os caminhos
mais longos e promissores que nos propomos calcorrear.
Temos uma estirada rota a perseguir,
um caminho sem meta que se vislumbre, e que sabemos com etapas
sucessivas, como os horizontes que se afastam a cada avanço
parcelar, mas de que conhecemos os rumos convenientes e certos, e
vamos encontrando sucessivas perspectivas.
Aveiro, como contributo dos
materiais desta zona da serra, carreados pelo rio que aqui brota e
nos vincula indestrutivelmente a genetrizes factores de
hereditariedade, é uma urbe de características lagunares. É
mesopotâmica – ela ou a zona envolvente – e o seu solo empapado da
água doce do Vouga, que na ria se mescla com a do mar, salgada, que
reluta em não abandonar espaços que a terra lhe conquistou.
Aveiro, na exalção de diminutas
cotas, de origem aluvionar fixou-se e medrou à beira do oceano.
Caracterizada e irremissivelmente, por sua sina e sua fortuna,
nasceu subsidiária do mar, sob cuja égide e suserania perpetuamente
se encontra, e para ele voltada e aberta, porta larga para expansão
dos anseios, e pólo de atracção suscitador e acalentador.
Em cada uma das nossas ascensionais
visitas a Viseu e seu alfoz, há um efectivo remontar a uma das
origens, a uma «fons-vitae» da nossa existência e da nossa
persistência. Porque para persistirmos nós precisamos do mar, como
elemento primordial, do rio como factor complementar, e, na
sequência do que ambos operaram e mantêm com alguma volubilidade, da
nossa perseverança – ia dizer da nossa contumácia – em
aproveitar-lhes os favores e nos preservarmos das suas negaças.
Em todos os ensejos nos acode à
lembrança o Vouga genitor – de que Aveiro chamam, a acentuar-lhe a
louçania feminil, e uma feição inalteradamente moça, a princesa. O
Vouga, pela sua prestante acção efectiva, representa para nós um
símbolo e uma inspiração, um estímulo e um motivo de preito, de
vinculadora cativação. Em todos os ensejos.
Um rebocador não representa, no seu
prosaísmo utilitário, senão uma unidade de apetrechamento, um
utensílio para práticas e objectivas funções – um barco que conduz
consigo embarcações de maior porte, um
barco para utilizar onde os barcos
de distintas características pululam, e vogam a remos, à vela e a
motor, e navegam em todos os sentidos da roda dos ventos, à feição
destes ou ao seu revés, para fins de comércio, de específicas
funções do arranque de moliços, para a pesca lagunar, para recreio
nas horas feriadas ou para práticas desportivas.
Um rebocador é como que um esteio
que se desloca e flúi. É um dar um braço que conduz com a prévia
familiarização, com o itinerário conveniente,
/ 6 / como que um guia
experimentado para o caminho sem escolhos. É como um extrínseco
«governalho» – segundo o termo usado no tempo dessa apaixonante
figura aveirense do século de quinhentos, que foi o Padre Fernando
Oliveira, erudito e errabundo aventureiro, clérigo com laivos de
irreverência, diplomata, gramático e tratadista de construção naval.
Pois agora, quando à entidade
responsável pela administração portuária, surdiu a obrigação de
baptizar, ou mais propriamente, de recrismar uma unidade dessa
feição, que adquiriu, logo, imediata e clara, ia dizer fulmínea –
porque cintilou e resplendeu, indiscutível como símbolo e
inspiração, como preito filial e busca do que seja a essência
sentimental de concretas realizações de fomento económico – uma
denominação acudiu.
Nesta luta de tracção em que nos
empenhamos para alcançar um objectivo de bem comum, e dilatar-lhe os
benefícios por toda esta Beira, magnífica e carecida de suscitações
e rasgadas vias perspectivantes de prosperidade crescente, para este
quadrante volvemos a imaginação, o afecto, a confiança nos votos de
bom vaticínio.
A Beira Alta, gémea da nossa do
litoral – gémea e siamesa por indestrutível e congénita aliança
corográfica e humana, nesta longuíssima e infinda batalha milenária,
com triunfos e lauréis e proveitos, e desaires, desalentos e ruínas,
neste combate que andamos inalienavelmente empenhados em traduzir
por vitórias sucessivas – para nossa vantagem directa, e a vossa
consequente, e a de um país que cada um de nós começa a estimar com
devoção e fervor na sua «pátria-pequena», sempre contámos com o
vosso solidário amparo.
De onde o Vouga nasce e na pena de
água que brota entre rochas maciças, límpido e puro, e as rasga, e
engrossa e se nos oferece para amenizar o travo salgado da laguna,
vêm a água em discorrer de incontida propensão e o incentivo
perpétuo.
Ficará pois o nosso rebocador sob a
égide matricial da Serra da Lapa, num preito filial, como que numa
evocação permanente e na readopção de um nome que atesta a
genealogia que reivindicamos com todas as veras do sentimento
afectivo.
*
Esta digressão a Viseu, todavia,
ainda que a chamamento de penhorante generosidade, não visa apenas
proferir, e em baça monocordia, o sentimento de cordialidade em que
de cada vez mais se enlaçam os viseenses e os homens da minha terra,
que no seu aveirismo lato e centrífugo tem como galardão a amizade
de Viseu.
Membros do mesmo clã beirão,
encostados e unidos, os nossos comuns interesses, permanentes,
representam bens patrimoniais hereditários. Nós, lá em baixo – lá
onde a ascensão se opera na horizontalidade –temos um porto.
Naturalmente, se a vossa água nos avoluma a bacia lagunar, e com seu
caudal – e, por essa circunstância, se esperou, quando os meios
mecânicos ainda o não supriam, durante dilatados tempos, pela tarefa
benfazeja do que simbolicamente se apelidava de «Engenheiro Vouga» –
e com o seu caudal, ia dizendo, contribuía para que dispuséssemos de
uma barra rasgada às solicitações da navegação marítima, – o nosso
porto é o vosso porto. E disse, naturalmente, porque se trata de um
ditame orográfico da Natureza.
O rio que nesta serras beneméritas
mana e serpenteia, e incessante corre, lá busca o oceano. E o mar
acode ao seu encontro, acolhe-o dentro da terra, em cuja formação
ambos cooperaram com maior ou menor quota parte. O mar antecipa-lhe
a foz como que na certificação de um propósito de devolver uma
dádiva continuamente renovada.
Porto, ignoro se etimologicamente,
sugere porta, e, assim, algo que a seu turno significa abertura,
entrada e saída franqueadas, e um acolhimento. Porto é uma partida e
um destino alcançado, ou, quando menos, o início ou o termo de uma
longa rota parcelar de trocas comerciais, um entrosamento de vias
marítimas com as terrestres, e um factor potencial e efectivo de
estímulos económicos – pelo que propicia de movimentação
intercambial de produtos que excedem os consumos locais ou suprem de
carências.
Aveiro, quando ainda as comunicações
terrestres eram rudimentares e escassas, dispôs de um porto que até
ao último quartel da centúria de quinhentos satisfazia as exigências
do tempo e constituía um fautor de ascendente prosperidade. Atingiu
nessa quadra da nossa história o seu primeiro período de esplendor,
com uma desafogada economia, e uma burguesia comercial marítima
activa e empreendedora. Foi frequentada por navios estrangeiros de
várias procedências, contando, por cálculos de estudiosos probos e
esclarecidos (pouco propensos a exageros, para chamar à sua sardinha
a brasa que lhe competia), catorze mil almas, alojadas em 2500
fogos.
Pioneiros, com os desde então
dilectos amigos de Viana do Castelo, da pesca na Terra dos
Bacalhaus, salineiros desde a insipiência do povoado de fundação
mais que milenária, os aveirenses, marnotos e pescadores, em seguida
volvem-se mareantes (já com sua confraria ou corporação florescente
no século XIV, sob a égide de Nossa Senhora da Alegria).
Concomitantemente, autóctones já ou atraídos pelas oportunidades que
se lhes proporcionavam, radicando-se e integrando-se na vida local,
os profissionais das actividades
/ 7 / mercantis em relações
com mercados nacionais e externos sobem em número, capacidade e
poder económico. Os homens de Aveiro foram então os agentes mais
operosos e fecundos do transporte e distribuição de mercadorias de
toda a Beira e, provavelmente, para toda ela.
Rocha e Cunha, que foi o mais
arguto, consciencioso e esclarecido ensaísta da história económica
aveirense, com a prudência de quem não avança um passo se não em
solo firme, restringe a penetração do porto de Aveiro a um âmbito
muito estreito. Concebe-a em relação com a precaridade do sistema de
comunicações terrestres «que só a civilização do século XIX nos pôde
dar» e cinge-a, praticamente às possibilidades que lhe proporcionava
a laguna.
Desestima a navegabilidade do Vouga,
pelo menos até quase à zona de contacto dos dois distritos
administrativos, que ainda dava uma prática relativamente intensa de
tráfego fluvial nos nossos dias, já em plena florescência dos
caminhos-de-ferro, agora em ocaso nesta zona, ou porventura apenas
em eclipse.
Mas reconhece, desde esse período
longínquo, que esse porto, de intenso movimento, e que chegou a
armar quando se dobrava para o último quartel do século XVI, os seus
150 navios, possui atributos, se não de recíproco tráfego de bens de
consumo, para uma atracção, mais ou menos forte, sobre os homens:
«Não podia procurar – isto é, ir ao
encontro, dizia, reportando-se à corrente renovadora através de
actualizações estrangeiras de valorização de ideias e iniciativas –
as populações alheias, estimular a sua actividade, criar mais
conforto e riqueza, e muito mais facilmente elas desciam ao litoral
em sua procura, obedecendo às mesmas necessidades que hoje as
impelem para Além-mar.» Para Além-mar, então, e agora, para além das
fronteiras de terra.
Aliás, sabe-se que Luís Gomes de
Carvalho, o lúcido técnico, de visão por vezes percursora a que se
deve a ressurreição de Aveiro com a abertura e fixação da Barra
Nova, em 3 de Abril de 1808 – eu repito esta data e o nome do
benemérito engenheiro, sempre que se me oferece ensejo, porque mais
do que nascer trata-se do renascer da minha terra e do taumaturgo
que a possibilitou – sempre teve na mente a íntima correlação do
Vouga com a Ria e o Porto de Aveiro.
Chegou mesmo a elaborar um projecto
com a finalidade de tornar o rio navegável até S. Pedro do Sul, e a
iniciar-lhe os trabalhos de construção. «Assim, a concepção moderna
do porto regional – como se verifica algures e, claro, em relação às
possibilidades do seu tempo e às premissas que se lhe apresentavam,
aparece perfeitamente definida nos seus trabalhos». Aliás, estes
visavam já então a criação também de condições de navegabilidade nos
rios Águeda e Cértima, e a integração das respectivas áreas no
conjunto da economia regional.
Aveiro – Aspecto geral do porto
bacalhoeiro.
Mas, agora mesmo, se revolvem de
novo as atenções, com actualizado fito, no estudo e na proposição
consequente de sugestões fundamentadas, para o aproveitamento do
Vouga. E ao revés da marcha do rio
/ 8 / – como nós aqui viemos
– de baixo para mais alto, mas beneficiando-lhe o vale, e a bacia,
em três fases destrinçadas e caracterizadas, mas concatenadas e
complementares.
Esse trabalho, onde a ambição não
excede as viabilidades e cujas bases exegéticas concludentemente
certificadoras de resultados não só justifica, mas como que impõe os
investimentos requeridos. Que, na realidade, nem somos tão
desdenhosamente ricos que desprezemos riquezas potenciais,
enunciadas, calculadas e quase ao nosso alcance imediato, nem tão
carecidos de meios, e ânimo e cívico espírito de construir um futuro
mais desabafado, tão desprovidos de capacidade e sentido das
conveniências e obrigações, que se nos tolham os anseios dos
melhores prenúncios, traduzidos já em reprodutivas cifras, não
apenas consideradas como prováveis, mas tidas como certas.
O Vouga impõe a presença física e,
para além desta, tudo quanto desperta no âmbito das aspirações,
mormente no domínio agro-pecuário, na florestação das zonas
adjacentes ao curso alto, para além da barragem que se assentaria já
em terras do aro administrativo visiense e desempenharia uma função
de plurifacetados proveitos.
O relator do grupo de trabalhos da
Comissão de Planeamento da Região Centro – o nosso companheiro João
de Oliveira Barrosa, por tantos títulos prezado – revelou-nos, há
pouco, numa palestra rotária que nos acordou para esses problemas
fundamentais, com a minudência de sopesação e a exactidão global, o
nível dos estudos a que procedeu.
E é remontando – como nós, os de
Aveiro aqui chegamos para, fraternamente, conviver e conversar
convosco – do Baixo Vouga lagunar, e a estrada-dique Aveiro-Murtosa,
o que abraça, abraça ou beija, ou abraça e beija a Ria, pelo troço
em que ele já tranquiliza a corrida para o mar salgado. E é
grimpando até Ribeiradio, por onde se açuda, vivaz de irrequietude,
por entre as rochas por ele próprio rasgadas, e saltita pelas pedras
soltas. E é subindo até Ribeiradio, onde numa barragem de diversos
objectivos prestadios, o quereríamos deter, quebrar-lhe os ímpetos
moços, incontidos e por vezes desbordantes, que, por impaciências de
chegar se submergem e derribam, e arrastam e alvorotam, e no nosso
peito embatem com a violência que não sustentamos sem abalo, na
terra branda e rasa que é a nossa.
Advoga-se, e com a solidez de
argumentação que atesta a validade de um aproveitamento planificado
do Vouga para a constituição de uma efectiva região integrada que o
tome como corda dorsal e lhe abranja todas as vertebradas
ramificações subsidiárias e complementares, advoga-se, dizia, a
construção da barragem, entre outras resultantes, para regularização
dos caudais.
Já mesmo agora que se lhes patrocina
uma disciplinação, esses caudais têm uma função tendente ao
dispiciendo no aludido mister desobstrutor da barra – que é, repito,
a nossa e a vossa mais natural saída para o mar – a que outrora por
aquela missão útil, periódica e indispensável, o vulgo o chamou,
como disse, o «Engenheiro Vouga».
Processos mecânicos, com dragagens
adequadas, que absorveram à Administração do porto, em 1971, mais de
quatro milheiros de contos e em 1972, excederão a verba anterior,
suprem e avantajam-se ao meio natural das águas engrossadas e
velozes, que varram a entrada da barra de entraves, instáveis mas
renitentes.
Nesse conjunto de obras que se
apontam como convenientes e imperativas, e em que do meu ponto de
vista, pessoal e de função, encontro mais uma estrutura a consolidar
os condicionalismos propícios a um porto que recresce, avaliam-se os
investimentos em 481 600 contos e o acréscimo de produto bruto por
elas alcançado em 120 900. Vale a pena cuidar desse manancial de
riqueza.
Mas já antes desses empreendimentos,
tão vantajosos no aspecto financeiro, tão úteis no âmbito económico,
nós temos um porto. Ainda não o nosso porto, aquele que vislumbramos
e pelo qual anelamos, sem fantasias superlativantes, sem grandezas
miríficas, mas com aquela dose de imaginação que os concretos
factores sabidos e as suas lógicas resultantes exigem em todo o
rasgar de sendas com finalidades porvindouras.
Nós temos, ainda não esse, que
sistematicamente terá sempre o termo para além do que obtivermos,
mas um porto renascido, numa nova fase de progresso.
Ao cabo, Aveiro tem no porto, como
que o pulmão por onde respira, anfíbia que é, quando a boca da barra
lhe traz o elemento revivificante e saneador.
É nela, no período áureo de
quinhentos, a vila em que, pela actividade útil a gente do mar, e
das profissões a ele adstritas, e uma burguesia diligente,
esclarecida na própria experiência local, aberta de espírito contra
o entorpecimento rotineiro pelo contacto com gentes que a par da
troca de mercadorias, deixavam novidades, ideias, sugestões de
diferentes estilos e ritmos de vida, – tomavam sobre as demais
classes a primazia do desenvolvimento, da riqueza, do
desenvolvimento que não do mero fruimento, e da caracterização do
aveirense, que um dia seria quintessenciado em José Estêvão. Nesse
período de prosperidade armou centena e meia de navios, do porte
próprio das naves oceânicas da época, como é óbvio.
/ 9 /
Visitavam-no, na mera cabotagem ou
provindos de portos estrangeiros, ingleses, franceses, flamengos.
Recebia e servia de centro de distribuição, para uma área de maior
ou menor perímetro, ferro e chumbo, aduela e madeiras, linho e
tecidos manufacturados, breu e esparto, papel, vinhos, pólvora.
Por seu lado, veiculava, para os
portos metropolitanos nortenhos, onde as salinas de precário amanho
haviam deperecido, e para o exterior, o seu sal – que, entre os fins
utilitários de tempero e salga, teria, por algumas centúrias, a
correspondente participação quase exclusiva, concreta e
espiritualizada, como que num privilégio, no baptismo cristão dos
portugueses da parcela do país setentrional do Vouga. E, além desse,
que constituía a primordial riqueza aveirense, formava um centro
importante de exportação de peixe salgado e de bacalhau.
Uma série de maléficas vicissitudes,
resultantes do próprio processo evolutivo do cordão litoral (e,
assim, da infixidez da barra, de fundos sem coesão), reduziu-lhe as
possibilidades e repercutiu-se no solidário depauperamento da
própria vila – Aveiro só obteve o grau de cidade com o Marquês de
Pombal, em 1759 – que quase foi arrastada ao aniquilamento.
Os 14000 residentes de 1575, entre
os quais se contavam numerosos estrangeiros, – e que levaram o bispo
de Coimbra, D. João Soares, a instituir quatro freguesias, quando
até então se mantinha apenas a dos recuados tempos do foral velho,
com S. Miguel por orago, ainda cento e dez anos mais tarde, não
obstante o retrocesso, não haviam descido para menos de 10000 almas,
ainda não penadas, mas já pelas circunstâncias adversas a penar e a
tremer das mal agouradas perspectivas futuras.
Já todavia em 1736, a população
aveirense não ultrapassava os 5300 habitantes. E o declínio
acentuou-se, quase vertiginosa, quase catastroficamente, pois três
decénios depois já se computavam em apenas 4400, e chegaram ao
extremo de decadência, nos finais do século XVIII, com uns
escassíssimos 3500, o que representa uma emagrecida quarta parte de
pouco mais de dois séculos antes.
Aveiro – Um aspecto do porto comercial
Para não entrar em pormenores –
aliás incompatíveis com o tempo que me prescrevem para uma síntese
necessariamente fugaz e saltitante – e pois que estamos voltados
para o futuro e do passado não buscamos os temas pela predilecção
desinteressada que deles mesmos emane, mas a lição orientadora e
incentivadora, insistimos, partamos da obra renascedora de Luís
Gomes, que venceu com sagacidade e aplicação profícuas, as
adversidades, cegas e inclementes da Natureza, (que com uma mão
dera, com longanimidade maternal e, com outra tirava e punia,
insensível e violenta).
Data daí, como tem sido repetidas
vezes apontado, a reconstituição económica da estiolada Aveiro.
Haviam ficado infrutíferas todas as tentativas regenerativas que se
sucederam desde 1756, no consulado pombalino, tão atento a Aveiro,
em variados aspectos que lhe pudessem promover a prosperidade.
Malograram-se, sucessivamente, até
ao dobrar para
/ 10 / o século de
oitocentos, os trabalhos de engenheiros da mais alta qualificação,
nacionais ou chamados de países estranhos, como Mardel, Pochet,
Allincourt, Eldsen, Cabral e Isepi – mais exactamente designado, nos
diplomas oficiais, por arquitecto hidráulico, denominação que hoje
nos parecerá desprovida de rigor lógico.
O século XIX, com Luís Gomes e
igualmente com um dos seus sucessores, o categorizado Eng.º Silvério
Pereira da Silva, é o do renascimento portuário. Efectivamente, pode
considerar-se como o início de uma era nova da vida de Aveiro. O
recrescimento, a recuperação, o regresso ao mar e à vida mais
intensa e desafogada, a reconstrução e o gizar da expansão, não se
desenvolvem em curva de regular continuidade, no tráfego marítimo,
no reavivamento da agricultura e outras actividades e na
correspondente projecção urbana.
Verificam-se momentos, momentos ou
períodos dilatados, de pausa e de retrocesso, por vezes
desalentador; mas esse renascer de Fénix, das próprias cinzas, ou de
escombros, e do saber ganho na experiência, e da tenacidade do
íncola, essa potência ressurgente nunca mais caiu na inanidade.
Aveiro – Outro aspecto do porto
comercial
Os pretéritos quatro decénios
representam o período do efectivo recrescimento, mercê das duas
executadas fases de melhoramento da barra e dos empreendimentos
interiores que se vêm sucedendo – pontes-cais no porto bacalhoeiro;
instalações com satisfatórios requisitos para a pesca costeira; um
cais de 240 metros, no porto comercial, recém-criado, provido de
apetrechamento que corresponde em eficiência e brevidade de
operações às necessidades imediatas e próximas, e que já se encontra
em vias de acrescentamento para os quatro hectómetros; a utilização
progressiva da zona industrial, e das suas largas reservas de
espaço; uma almejada doca seca já em construção; a constituição de
acrescentadas áreas de terraplenos, antecipando a instância de
renovadas solicitações; o equipamento a visar uma crescente
eficiência e com maior garantia de presteza de serviço; as
sistemáticas dragagens dos canais de navegação.
Na década de vinte deste nosso
século, quando da reencetada luta pela regeneração desse fautor
primacial do progresso da região aveirense, um outro técnico insigne
que ao saber do estudo e da experiência aliava a inspiração
desvendadora das soluções capazes, o Eng.º João Henriques Von Hafe –
que Homem Cristo, pondo de parte antagonismos políticos atraíra ao
serviço prestadio da sua terra – ao encarar a função regional do
porto de Aveiro, parece contentar-se com um tráfego comercial de
100000 toneladas anuais.
Essa tonelagem, que, naquela altura,
aos espíritos mais rasgados e positivos se afiguram uma ambição
merecedora de uma luta denodada, já se encontra excedida. Tardámos a
alcançá-la. Ainda em 1957, por conseguinte há três lustros, se
cifrava o movimento de mercadorias no nosso porto nas 9 134
toneladas. A barreira da centena de milhares só a passaríamos em
1966. Para exceder as 200000 bastaram apenas mais dois anos. E agora
o crescimento tem-se verificado com um ritmo mais lento. Mas já em
1971 atingimos as 239102, e chegamos
/ 11 / ao fim dos três
primeiros meses do ano que decorre com esse montante mais que
prenunciado. Chegaremos, assim, com todas as probabilidades, ao
quarto de milhão.
Aliás, sem exageros de optimismo,
mas com previsão resultante do que já está requerido, registar-se-á
só através da entrada em laboração de uma grande unidade produtora
de adubos químicos – que interessa a toda a Beira e a todo o Norte
do País – uma súbita subida que não deverá tardar em exceder as
100000 toneladas.
Durante longuíssimos anos, nem um só
navio estrangeiro demandou a barra de Aveiro. Em 1971 puderam já
contar-se 264.
Poderia citar-se o género de
mercadorias importadas ou exportadas, mencionar concludentes cifras
demonstrativas de uma ascensão de cada vez mais promissora e
incentivante: ferro e aço; bacalhau e peixe congelado, carburantes
líquidos, gesso cru, bananas, carga geral, sei lá o que mais, que
entraram e a partir daqui se dispersaram; e exportaram-se: papel e
pasta de papel (na sua acentuada predominância), aguarrás, conservas
de peixe, vinhos, madeira, automóveis, bicicletas, artigos de
plástico, ferragens e similares, e poderia alongar o rol, talvez com
a menção de colchões, para que todos mais tranquilamente se sintam
no direito de conciliar um sono bem merecido.
Podia ajuntar cifras comprovativas
da função económica que este porto, que apenas subiu mais um degrau
na sua progressão, está a cumprir, já que o valor atribuído às
exportações ultrapassou, no ano transacto, um montante de 850000
contos e o das mercadorias recebidas subiu a mais de 180000 contos.
Mas, nem nas mercadorias importadas
há os perfumes, ou as novidades atraentes de tecidos macios e
gráceis, os atavios que realcem a beleza de quem os ostente e me
possam fazer absorver pelas senhoras tão gentilmente benévolas, que
desejaria enfadar no mínimo possível, nem um relatório fastidioso,
um rol e uma cegarrega são consentâneos com esta reunião de amizade,
e que requer amenidade cortês e afectuosa.
Parto de uma convicção, certo de que
todos a comungamos: a de que o porto de Aveiro, como nunca na sua
história, agora que o progresso das comunicações lhe abre
perspectivas mais vastas, está sendo uma realidade válida, com
perspectivas ainda incalculáveis.
Aveiro – Porto comercial em actividade.
O meu propósito incide em recordar,
na senda do que Rocha e Cunha e outros aveirenses pioneiros e
beneméritos, com o apoio dos mais lídimos intérpretes do pensamento
e predilecções visienses do tempo, que esse nosso porto, como aquele
culto homem público se incumbiu de evidenciar há quarenta e quatro
anos, apresenta «pontos essenciais de solidariedade com os
interesses económicos da Beira Alta».
Sem exclusivismos, sem descabidas
intenções monopolizadoras, mas com a irrefragável primazia que a
geografia e os factores humanos, a tradição e as suscitações da
distância e dos acidentes geográficos prescrevem à acção futura,
/ 12 / o mesmo autor – e hoje
com maioria de razão, já que passamos da fase das aspirações à das
primeiras realidades proporcionáveis – acentuava então, que o
desenvolvimento do porto de Aveiro deveria considerar-se
«intimamente ligado ao progresso das Beiras, não só pela situação
geográfica, mas também pelo predomínio de factores económicos que
estabelecem a comunidade de interesses da maior parte da população
de entre Douro e Mondego».
Essa comunidade não só subsiste, mas
com as novas circunstâncias e exigências reforça-se dia a dia. Os
vossos minérios, as vossas madeiras, quiçá os vossos vinhos de alto
apreço, os produtos dos vossos empreendimentos actuais e daqueles a
que a vossa iniciativa venha a dar corpo, tem a expansão aberta pelo
porto que pretendemos cada vez mais apto.
Não os leva o rio, mas indica o
caminho. Todos sabemos que, «dentro de certos limites, o preço do
transporte marítimo é independente da distância a percorrer», ou
praticamente, reduzidissimamente onerado por ela. E que, ao
contrário, o frete dos transportes terrestres está em relação com a
distância a vencer.
E essa é concretíssima, com
coordenadas relativamente exactas, e a mais propícia à movimentação
da vossa mercadoria, que obviamente procurará o trajecto mais
directo e menos dispendioso.
Viseu, por esses motivos – Viseu e a
região que lhe fica a leste – sempre propendeu para o porto de
Aveiro. Em todos os ensejos em que buscamos alentos para uma luta
que não cessa, para uma caminhada pertinaz a que não podemos
atribuir um termo, mas apenas etapas concatenadas a vencer
parcelarmente e em série continuada, encontrámos compreensão e
amparo, espírito de comunidade estreita e coesa e o estímulo
vigoroso e acalentador.
Na época que venho a reportar-me, a
articulação da Beira Alta e de uma parca parcela da Beira Baixa com
o porto de Aveiro, preconizava-se através do caminho-de-ferro
existente e da sua penetração em zonas dele desprovidas. Sobre o
tema se debruçam, em particular, com entusiasmo apostolizador e as
previsões possíveis no tempo, propondo traçados e definindo-lhe
funções, o Eng.º Tristão Ferreira de Almeida, autorizado
especialista nos problemas dessa feição – e que viria a ser dedicado
e operoso presidente da vossa Câmara Municipal.
A política mais desempoeirada do
tempo em matéria de transportes e distribuição produzia-se, então,
necessariamente em termos ferroviários. O transporte automóvel,
particularmente o de viaturas pesadas de carga encontrava-se ainda
fora dos previsões mais penetrantes.
Entretanto, a estrada, se não matou
a ferrovia, desferiu-lhe um profundo golpe e alterou os termos em
que se equaciona a distribuição terrestre das mercadorias e do
comércio interno, e mesmo internacional. Subverteu-os.
Há, assim, que rever o problema de
modo a que conduza a uma solução francamente benéfica para que a
potencial comunidade de interesses de Aveiro e Viseu, creio bem que
da Guarda, atrevo-me a supor, mais longinquamente, de uma zona
espanhola que tem em Aveiro a mais curta distância para o Atlântico,
se realize na plenitude que as evidências recomendam.
A rodovia ampla, de moderno traçado,
que possibilite e comodize a circulação de veículos pesados e
grandes tonelagens de carga de Aveiro a Viseu, de Viseu à Guarda, da
Guarda à fronteira de Vilar Formoso – por um traçado mais
consentâneo com as exigências actuais e as que se prenunciam,
representa, não uma obra restrita, de carácter regional, mas
inteira, inequivocamente, um melhoramento que o interesse nacional
reclama.
Sem a estrada desafogada, que anime
e assegure o êxito às iniciativas, drenando excedentes, programando
para o comércio externo, estabelecendo as correntes de vaivém que um
torcicolo raquítico empecilha, a Beira Alta queda, tolhida e
isolada. Tem motivos para querer e não pode querer. Vê, lá para as
bandas do mar, como o Malhadinhas, quando uma madrugada procurava um
álibi para ludibriar a incrédula e paciente Brízida, o rubro
crepúsculo vespertino, a anunciar bonança e abundosa pesca. Mira os
caminhos que ao mar conduzem, mas não pode, já que os tempos, os
meios, as exigências e as economias de tempo são muito mais
prementes, utilizar as veredas flexuosas e de via reduzida, como o
comboio, a que obstinadamente se recusa uma possível actualização.
Para nós, os de Aveiro, que
imaginamos as dificuldades desanimadoras que os imensos camiões
«TIR», que da aduana estrangeira nos transportam, seladas, até aos
nossos serviços alfandegários mercadorias de diversa proveniência e
natureza, experimentarão na estrada sinuosa e raquítica que no-los
conduz da raia de Espanha, é como se tivéssemos um braço paralítico.
Para nós, os de Aveiro, que temos o
porto com maiores disponibilidades de área de todo o país, e
vislumbramos, com exequibilidade, a mais ou menos longo prazo, um
terminal de contentores, procedentes de algures de aquém ou de além
Pirinéus, é prender-nos as rémiges aos largos voos que estão ao
nosso alcance.
Para vós, os de Viseu, significaria
estagnação, insulamento, um imperativo preservar num tempo
/ 13 / ultrapassado, um
sofrear de energias regurgitantes, o regateio de meios com profícuos
fins à vista. Semanticamente já artéria significa estrada e a que
actualmente nos liga bem pode já tomar-se por capilar, secundária e
esclerosada.
O porto de Aveiro é uma escola de
luta, por uma meritória causa. Proporcionou-se e recusou-se. Veio ao
nosso encontro e depois de prometer e dar, furtou-se-nos. O ânimo
dos aveirenses caldeou-se no combate de o manter ao seu, ao vosso,
ao serviço da Nação.
O porto de Aveiro, tanto como dos
canais tentaculares da ria que abraçam as terras marinhoas,
frustraria a sua realização em plenitude sem a rede das estradas que
tomem e conduzam produtos da terra e da indústria.
A que nos aproxime de Viseu, e a que
me não compete sugerir o traçado, mas tão-somente relevar a
necessidade, é uma das primaciais para a nossa escala de valores.
Aqui estou – aqui estamos pois, em
Viseu, que mais não seja por aveirismo. Querer por Viseu, e quando
ainda os interesses coincidem, é querer por simpatia fraternal. É
satisfazer uma inclinação do sentimento.
E não é dar mas retribuir. E nem
retribuir, porque na circunstância, ao alcançardes esta
reivindicação tão limpidamente justa, ela reverterá, meio por meio,
em nosso proveito.
Vizinhos fraternos temos vindo de
mãos dadas. Apertemo-las com renovado vigor. Por sentimento e por
interesse mútuo que o reforça. E certamente, nós que na nossa
comunidade, aprendemos a lição da luta no combate pelo porto, por
ele e por vós, estaremos, fiéis e firmes, na comum tarefa de ganhar
esta batalha.
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(1) – Palestra proferida, em 1972,
numa reunião do Rotary Clube de Viseu. Trabalho elaborado, há quase
dois lustros, a que assistiram as mais representativas entidades
viseenses e aveirenses, e, assim, para uma fraterna jornada
Viseu-Aveiro, encontra-se, nas vésperas de decisivos progressos do
porto de Aveiro, sobretudo em dados estatísticos, flagrantemente
desactualizado. No essencial, todavia, redobra de motivações
válidas. – E. C.
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