AMIGOS:
Quis a vossa gentileza trazer-vos
hoje aqui para me acompanharem no momento em que assumo funções no
Governo do Distrito onde nasci e onde com muitos de vós lutei até
ver restabelecida, com a liberdade, a cidadania perdida.
Indicado pelos meus Camaradas,
convidado pelo meu Partido, aceitei ser nomeado pelo Governo para
este Cargo que sei não ser fácil mas ao qual vou dedicar o melhor de
mim próprio, neste ocaso de vida.
E aceitei, sem me fazer rogado!
É que, Amigos, não é sem satisfação
que nos sentimos escolhidos para um Cargo de confiança política num
momento em que a Revolução está prestes a conduzir-nos à última das
etapas da estruturação democrática da Pátria, rampa de lançamento
indispensável para mais largos e seguros vôos.
Militante antifascista de sempre,
pretendi, ao aceitar a escolha feita, contribuir, na medida do
possível, para essa fase da Revolução!
Revolução sem armas, é certo, mas
nem por isso menos importante e sem dúvida mais de harmonia com a
minha própria maneira de entender Democracia. É que, Amigos, é nessa
estruturação democrática da Pátria que o Povo-Nação floresce e em
liberdade aponta, aos Governantes, o caminho que deseja trilhar.
*
Toda a Revolução é feita de avanços
e de recuos! O que importa para que a Revolução seja em prol do
Povo, é que cada recuo não nos leve a ponto mais recuado que aquele
a que nos conduziu o recuo anterior. Às vezes, por incontrolados ou
desarticulados com a vontade popular, certos avanços cegos motivam
recuos que nos catapultam para a negação da Democracia, que o mesmo
é dizer, para o adro do fascismo, bem encostado à paz sem remédio
dos cemitérios da tirania.
Para que isso não suceda importará,
sobretudo, que os avanços tenham, como base de sustentação e apoio,
a vontade de avançar pelos caminhos que em liberdade o Povo
escolheu.
E, se for preciso recuar, que se
recue, mas o menos possível, isto é, sem dar azo a que os recuos -
tantas vezes só aparentes sejam injustificados ou possam abrir
caminho a infiltrações indesejáveis.
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*
Cada vez mais fortemente eu sinto
que é na Democracia que esse objectivo se alcança.
Só ela consegue permitir que a
vontade do Povo seja livremente expressa sem artificialismos de
falsas vanguardas condutoras ou paternalismos ancilosantes de
chicote atrás das costas.
*
É que só em Democracia é possível
compreender a definição de povo dada por aquela criança de 9 anos
que em inquérito do «Diário de Coimbra» mostrou uma maturidade
política que muitos adultos invejariam. Disse ela:
«O Povo, para
mim, é uma corrente de mãos dadas.»
Não resisti à tentação de aqui e
agora repetir essa lição que tanto e tão profundamente me
impressionou, ao lê-la.
Eu só substituiria o «é» pelo «deve
ser»!
*
Sim, Amigos, em Democracia não pode
nem deve haver uma só vontade, um só caminho.
É preciso que o Cidadão encontre à
sua frente, escancara. das, para poder entrar, várias portas e não
uma só. E entre, livremente, por aquela que o conduza àquele tipo de
sociedade que com ele se identifique como realidade presente ou
caminho para o futuro.
Em Democracia todos têm o seu lugar
na escolha do caminho. Os adversários, ou melhor, os inimigos da
Democracia, os fascistas ou fascizantes, exigem de nós a liberdade
que amanhã nos negarão se não a defendermos deles e da sua peçonha.
Não é antidemocrático o negar a
Liberdade àqueles que, através dela, a pretendam matar, conquistando
o poder.
É por isso que consideramos todo o
totalitarismo como fascista ou fascizante, porque só pela Liberdade
é possível escolher o caminho que importa percorrer.
Quando um Povo consegue obter uma
Constituição como aquela que é, hoje, a nossa lei fundamental, é
preciso que esse Povo saiba: que ao defendê-la, se defende; que ao
exercitá-la,
/ 11 / pelo voto livre, se
torna digno dela; que, ao exigir que todos a respeitem, impõe,
democraticamente, a autoridade de que é fonte e titular.
*
Amigos:
A hora de mais uma escolha
aproxima-se.
É uma escolha especial, essa, em que
o cidadão eleitor se cruza nos caminhos da sua aldeia, na praça da
sua vila e nos bairros da sua cidade com aqueles que vai escolher e
conhece bem no guião das virtudes ou no sudário dos defeitos.
A descentralização em marcha é,
talvez, o passo mais sério, o alicerce mais necessário ao edifício
que todos nós, democratas, pretendemos construir.
As eleições para as autarquias
locais são essa escolha e com ela, boa ou má, se obterá o bom ou o
mau nessa fase da Revolução.
Para que o Povo seja, efectivamente,
a corrente de mãos dadas de que falava a Pátria pequenina pela boca
dessa criança-futuro que citei, é preciso que ela – a corrente –
sirva para separar, de vez, os caciques manobradores do mal e
protectores ou capa de terroristas, dos anseios dos trabalhadores
que todos ou quase todos os portugueses são.
Que o Povo saiba que o Governador
Civil de Aveiro, sem nunca abandonar a posição de militante do
Partido Socialista de que se orgulha, tudo fará para que, em
liberdade, o Povo continue a dizer NÃO ao fascismo e à reacção. E
não consentirá, na medida do possível, que se criem atmosferas de
medo para obter resultados eleitorais que neguem essa liberdade!
Quer os Cidadãos independentes que
pretendam juntar-se e escolher, quando a lei o permitir, os seus
representantes; quer os Partidos Políticos, células aglutinadoras de
vontades idênticas e bases da realidade democrática, poderão contar
com a isenção do representante do Governo no Distrito de Aveiro.
É que, mais que a vitória do seu
Partido, interessa-lhe a consolidação da Democracia, até porque, sem
ela, nenhuma razão haveria para a sua existência e dos demais, à luz
do Sol, em busca das verdades.
*
Sou um homem de esquerda!
Sempre o fui. Se nunca o escondi
quando isso era perigoso,
/ 12 / não o faria, agora, em
que por muitos dizerem que o são, o facto de o ser se torna mais
cómodo.
Mas se sou um homem de esquerda,
também sou um homem de direito e, como tal, tudo farei para que a
lei seja respeitada enquanto for lei, qualquer que tenha sido a sua
origem.
Considerar fascista uma lei que
ainda vigora, apesar dos vários Governos que a poderiam ter revogado
e não o fizeram, é, pelo menos, desonestidade mental que só pode
aproveitar a desordeiros, malfeitores, malandros e oportunistas
pelos quais a nação verdadeiramente progressista e ordeira, não pode
nem deve ter qualquer espécie de consideração a não ser aquela que
merecem cidadãos de tal jaez.
A Democracia, mais que a tirania,
exige Autoridade para a defender dos tiranos, tiranetes, tiraninhos
e seus lacaios.
À autoridade democrática, fenómeno
de delegação de poderes que o Povo faz, pelo voto, aos Governantes
que escolheu, corresponde, nos regimes totalitários, a tirania e a
repressão, coxins de baixeza moral em que se recostam os ditadores.
A lei não pode ser mera ocupação de
colunas do «Diário da República»!
A lei, votada pelos órgãos do poder
legitimados pela Revolução ou pelo Voto livre dos cidadãos, tem que
ser acompanhada dos meios cívicos de a fazer respeitar e dos
coercivos de a fazer cumprir, se necessário. Democracia cujas leis
não sejam respeitadas é Democracia moribunda ou em vésperas disso.
Contra os verdadeiros democratas só
raramente são empregados os meios coercivos. Estes, os Democratas,
sabem bem que não podem sacrificar a caprichos pessoais ou a
interesses inconfessáveis, o principal sustentáculo da Democracia em
que acreditam.
Quando os meios coercivos são
empregados é porque não são democratas verdadeiros aqueles a quem
tais meios se aplicam.
Quando tal sucede é a Democracia a
defender-se, no mais indeclinável dever de todo o organismo vivo que
quer continuar a viver. É a legítima defesa própria a actuar em toda
a sua plenitude moraI!
*
É altura de terminar – por demais
abusei eu da vossa paciência – e quero fazê-lo com as mesmas
palavras com que aqui, nesta mesma sala, terminou o seu discurso de
posse o meu Ilustre antecessor, o querido Amigo, Doutor Neto
Brandão, a quem presto as
/ 13 / minhas homenagens
sinceras pela isenção e elevado espírito cívico de que deu provas
durante o tempo difícil em que chefiou este Distrito.
«Enquanto eu aqui estiver, a reacção
não passará!»
E não passou.
E não passará, até porque o Povo
sabe, agora, que se tiver liberdade – e tê-la-á, é em nome do
Governo que eu o garanto saberá usá-la para que a Reacção não passe.
E não passará, qualquer que seja a
roupagem com que se enfeite ou o canto com que pretenda encantar
estas terras de Aveiro que, se são de marinheiros, sujeitos à
tentação das sereias, também o são de liberais que não temeram a
forca da Praça Nova ou os esbirros de Salazar e de Caetano e suas
escorrências locais.
Por Portugal e em Liberdade a
reacção não passará!
(Proferidas em Aveiro no dia em que assumiu funções.)
Costa e Melo, Governador Civil de Aveiro,
no uso da palavra. |