É lugar comum, de sobejo conhecido, que a História se repete.
Só por um critério simplista aceitamos o conceito. Algo tem de
verdadeiro, muito, porém encerra de incompleto. Se é certo
que, à primeira vista, os factos históricos do passado vão
tendo através do desenrolar dos séculos aspectos semelhantes,
o que leva à afirmação de que se repetem, não o é menos que só
superficialmente analisados se apresentam como repetição.
Em nosso entender, o que se
verifica é a fixação, através das épocas, de paralelismos
vivos que, partindo de pontos diferentes da planura imensa do
tempo, se traçam indefinidamente, mantendo nas suas linhas a
distância, sempre a mesma, que constitui pela vizinhança o
aviso e pelo conteúdo histórico a lição ou o conselho.
Há pontos ou momentos que são
resultantes de circunstâncias várias e que, por conterem em si
o «élan» ou gérmen que a força dessas circunstâncias lhes
confere, se deslocam criando a linha, que o mesmo é dizer, o
sucesso ou sucessos que a História assinala. Sucessivamente, a
períodos nem sempre regulares, circunstâncias diferentes mas
idênticas na sua origem, geram novos pontos, criam
determinados momentos, e novas linhas são traçadas paralelas
às primeiras, sempre que as razões iniciais podem ser
encontradas na força humana do homem social, do homem
interdependente, do homem natural, em suma.
Só o homem, membro da
sociedade a que pertence e fora da qual se desmente por
deslocado, interessa como gerador desses momentos ou pontos
que, movimentando-se, criam as paralelas a que aludimos. Só
esse homem força pela sua acção ou negação o movimento desses
pontos em formação das linhas históricas que, olhando para
trás podemos contemplar e que facilmente poderemos antever
olhando para a frente.
A História não se repete
porque, variando como variam as circunstâncias dos povos,
necessariamente variam as suas reacções, as suas conquistas,
os seus crimes. Muitas vezes os governantes conseguem,
temporariamente, interromper o curso normal da História,
forçando a criação de momentos anti-naturais geradores de
linhas que só têm o paralelismo de outras surgidos como elas,
anti-naturalmente, mas que, apesar de tudo, jamais deixaram de
gerar, e agora como consequência natural, os momentos de
reacção de que a História está pejada, tendentes a iniciar o
traçado de novas paralelas que, partindo do homem, só ao homem
se dirigem respeitando-o como elemento social que é.
São essa linhas que marcam a
vulgarmente chamada repetição da História e é nessas linhas
que o homem sempre tem buscado a directriz da luta pela sua
própria sobrevivência.
*
E vem tudo isto a propósito
dum momento gerador da linha que se desenrola paralelamente a
outra linha gerada em momento semelhante. E novos momentos e
novas linhas estão surgindo porque no presente momento
histórico algo há que caracteriza de maneira semelhante o
homem que nunca permanece na letargia em que por vezes cai ou
para que muitas vezes o atiram.
*
O 16 de Maio é um ponto
gerador duma linha que tem por paralelas próximas as iniciadas
na França em 1789, em Portugal em 1820 e depois continuadas em
paralelismo a 1828, 1838, 1891 e 1910.
Quando, na pátria de Hugo, o
povo iniciava o traçado da linha da liberdade e se ouvia um
Camilo Desmoulins dirigindo-se à polícia e gritando:
«A infame
polícia está aqui? Pois bem!
Que me veja! Que me observe bem!
Sim, sou eu que chamo os meus irmãos à liberdade!»
iniciava-se a paralela da
libertação, logo a seguir acompanhada na maioria das nações do
mundo civilizado.
Quando na Declaração dos
Direitos do Homem, votada em 26 de Agosto de 1789, se
considerava entre os direitos naturais e imprescindíveis do
homem a «segurança e a resistência à opressão» e a «livre
expressão do pensamento e das opiniões» era apontada como dos
mais preciosos direitos do homem, era evidente que o
chamamento dos irmãos à liberdade começava a gerar os frutos
do respeito por essa mesma liberdade, que o mesmo é dizer,
pelo próprio homem.
A revolução francesa fora o
grito de libertação do homem, pelo homem e para o homem.
Quaisquer que tenham sido, e alguns foram, os arbítrios
cometidos à sua sombra, o certo é que a treva feudal se
rompera e o mundo começava a traçar com início nos pontos que
as circunstâncias propiciavam, as paralelas
/ 79 / daquela
que ainda hoje, apesar de quase escarnecida e atacada, tanto
e por vezes tão mal tem sido imitada e invocada sob nomes que
outra coisa não são que máscaras de enganar.
Sem essa revolução libertadora
muitos dos hoje seus adversários seriam ou continuariam a ser
modestos, ainda que honrados, lavradores do Minho, pastores da
Beira ou pescadores do Algarve, e nunca governantes eu grandes
senhores da finança ou da indústria.
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E as paralelas nasciam daqui e
dali, porque o povo divisava já, para além das trevas a que o
habituaram, a luz duma libertação que ele sabia ser uma
fatalidade histórica, mas que não podia nem devia deixar de
procurar. Era tal a luz que os bem ou mal nascidos, conhecidos
por nobres, em muitos exemplos se fizeram alinhar ao sol da
nova conquista que, igualando-os ao povo a quem elevava, os
igualava aos mais altos senhores, a quem diminuia.
E Portugal gritou também a sua
revolta. Era a semente, que os ventos napoleónicos ajudaram a
transportar, que encontrava no terreno fértil da opressão
reinante e de descontentamento face aos governadores ingleses,
o «élan» do seu próprio desenvolvimento. Fernandes Temos,
Silva Carvalho e outros iniciaram o movimento que daria em
resultado a Constituição de 1822 em cujo decreto aprovatório
podia ler-se:
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JERÓNIMO DE MORAIS
SARMENTO
Voluntário da Rainha D. Maria II e alferes de caçadores,
foi condecorado com a Torre e Espada. |
«...
intimamente convencidos de que as desgraças públicas, que
tanto a tem oprimido e ainda oprimem, tiveram a sua origem no
desprezo dos direitos do cidadão...»
e ainda, já no texto — artigo
7.º — que
«Todo o
Português pode conseguintemente, sem dependência de censura
prévia, manifestar suas opiniões em qualquer matéria...»
Por várias vezes as forças da
reacção conseguiram fazer abandonar as conquistas feitas pelo
povo e para o povo, mas sempre o mesmo povo se erguia a
indicar aos reis o caminho da Honra. Estes, por medo umas
vezes, por comodidade outras, lá iam acomodando as velas da
sua inutilidade às exigências do povo que começava a «querer»
porque já cria na liberdade que sabia ser a linha que o
conduziria a si próprio.
Nem a repressão sempre feroz e
desumana, certa de que o Povo sabe perdoar mas não esquecer,
conseguia impedir que a paralela se desenvolvesse no seu
fatalismo necessário a caminho da libertação.
Cabeças rolam nos patíbulos,
sangue puro de heróis mancha de luz as lajes das praças e
ruas, gritos de dor ante os suplícios ecoa pelas esquinas das
terras onde se aprendera a amar a liberdade, mas nem assim a
paralela deixara de traçar-se.
Um dos pontos iniciais duma
das paralelas é o Perto, eterno bastião da liberdade, e nele,
o grito dos revoltosos de 16 de Maio de 1828 que mais tarde
viriam a sofrer a pena de morte por enforcamento, em patíbulo
erguido sobre alicerces do monumento projectado à Revolução de
1820!
Trecho da Avenida Dr. Lourenço
Peixinho onde, com toda a solenidade e ante milhares de
pessoas, foi lançada, em Maio de 1928, a primeira pedra
(indicada pela seta) do Monumento à Liberdade.
Gravito, Manuel Luiz Nogueira
e outros, e mais tarde Clemente de Morais lá deixaram cair o
sangue do seu ideal para levantar até ao mais alto, o seu amor
pela Liberdade. Tudo se revestiu de sadismo sem par e do mais
inteiro desprezo pela pessoa humana. Como nota da mais
repugnante falha de amor cristão, aponte-se o facto histórico
de durante a execução da Praça Nova...
«...os
frades lóios e os oratorianos, mais os seus convidados,
regalaram-se com bolos e vinho fino.»
Nada impedia, porém, nada o
impedirá jamais, o homem de lutar e buscar novos pontos para
continuar
/ 80 / a traçar as paralelas da sua marcha sempre
renovada para a libertação!
1910 é outro desses pontos e
ao seu movimento, surgido das perseguições e da miséria
pública para a qual a Monarquia dos Braganças da decadência
havia lançado a Nação! É um novo grito de libertação pela
República, provada que foi a inépcia da Monarquia. Surge a
Constituição de 1911 vasada nos moldes fiéis saídos da
Revolução de 1789. Não muito passava até que, de novo, as
forças da anti-nação procuravam eliminar as conquistas do
Povo. O Povo ainda tinha forças para aguentar a punhalada de
Monsanto, mal refeito da luta por Portugal longe de Portugal,
mas ia ficando cansado porque não sabia castigar e pronto
sempre estava a perdoar a injúria e o ódio com a inocência
suicida do seu perdão. Mas não esquecia, nem esquece, porque
não deixa de sofrer. E caiu... Adormeceu exausto de tanta
traição haver sofrido, até que as circunstâncias façam criar o
ponto inicial de nova paralela que ele traçará no caminho
sempre renovado da sua libertação!
*
Garrett (carta de M. Scevola,
1830) dizia:
«Os
portugueses são naturalmente sofredores e pacientes: muito
arrochada há-de ser a corda com que de mãos e pés os atam os
seus opressores antes que rompam em um só gemido os
desgraçados. Um murmúrio, uma queixa... nem talvez no
cadafalso a soltarão!»
E é António José de Almeida,
esse grande chefe da Nação Portuguesa que muitos persistem em
fazer ignorar, que em Fevereiro de 1910 escreve, ao lado
daquelas palavras do imortal autor do «Camões»:
«É certo.
Os portugueses são assim, como diz Garrett: sofredores,
pacientes, resignados. Mas, no meio da trágica resignação do
seu sofrer, é visível a indómita rebeldia do seu carácter. São
morosos na insurreição, mas, no momento supremo, quando a
medida se enche, não há dique que se oponha ao extravasar da
sua cólera.»
Fevereiro de 1910! Uns
escassos sete meses separavam estas palavras da República
libertadora do povo!
16 de Maio de 1828!
31 de Janeiro de 1891!
5 de Outubro de 1910!
Datas que são pontos de início
de paralelas da história da libertação do Povo português,
paralelas que jamais deixarão de ser por Ele traçadas.
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