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N.º 21

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1976 

Paralelas da História

Por M. da Costa e Melo

É lugar comum, de sobejo conhecido, que a História se repete. Só por um critério simplista aceitamos o conceito. Algo tem de verdadeiro, muito, porém encerra de incompleto. Se é certo que, à primeira vista, os factos históricos do passado vão tendo através do desenrolar dos séculos aspectos semelhantes, o que leva à afirmação de que se repetem, não o é menos que só superficialmente analisados se apresentam como repetição.

Em nosso entender, o que se verifica é a fixação, através das épocas, de paralelismos vivos que, partindo de pontos diferentes da planura imensa do tempo, se traçam indefinidamente, mantendo nas suas linhas a distância, sempre a mesma, que constitui pela vizinhança o aviso e pelo conteúdo histórico a lição ou o conselho.

Há pontos ou momentos que são resultantes de circunstâncias várias e que, por conterem em si o «élan» ou gérmen que a força dessas circunstâncias lhes confere, se deslocam criando a linha, que o mesmo é dizer, o sucesso ou sucessos que a História assinala. Sucessivamente, a períodos nem sempre regulares, circunstâncias diferentes mas idênticas na sua origem, geram novos pontos, criam determinados momentos, e novas linhas são traçadas paralelas às primeiras, sempre que as razões iniciais podem ser encontradas na força humana do homem social, do homem interdependente, do homem natural, em suma.

Só o homem, membro da sociedade a que pertence e fora da qual se desmente por deslocado, interessa como gerador desses momentos ou pontos que, movimentando-se, criam as paralelas a que aludimos. Só esse homem força pela sua acção ou negação o movimento desses pontos em formação das linhas históricas que, olhando para trás podemos contemplar e que facilmente poderemos antever olhando para a frente.

A História não se repete porque, variando como variam as circunstâncias dos povos, necessariamente variam as suas reacções, as suas conquistas, os seus crimes. Muitas vezes os governantes conseguem, temporariamente, interromper o curso normal da História, forçando a criação de momentos anti-naturais geradores de linhas que só têm o paralelismo de outras surgidos como elas, anti-naturalmente, mas que, apesar de tudo, jamais deixaram de gerar, e agora como consequência natural, os momentos de reacção de que a História está pejada, tendentes a iniciar o traçado de novas paralelas que, partindo do homem, só ao homem se dirigem respeitando-o como elemento social que é.

São essa linhas que marcam a vulgarmente chamada repetição da História e é nessas linhas que o homem sempre tem buscado a directriz da luta pela sua própria sobrevivência.

*

E vem tudo isto a propósito dum momento gerador da linha que se desenrola paralelamente a outra linha gerada em momento semelhante. E novos momentos e novas linhas estão surgindo porque no presente momento histórico algo há que caracteriza de maneira semelhante o homem que nunca permanece na letargia em que por vezes cai ou para que muitas vezes o atiram.

*

O 16 de Maio é um ponto gerador duma linha que tem por paralelas próximas as iniciadas na França em 1789, em Portugal em 1820 e depois continuadas em paralelismo a 1828, 1838, 1891 e 1910.

Quando, na pátria de Hugo, o povo iniciava o traçado da linha da liberdade e se ouvia um Camilo Desmoulins dirigindo-se à polícia e gritando:

«A infame polícia está aqui? Pois bem!
Que me veja! Que me observe bem!
Sim, sou eu que chamo os meus irmãos à liberdade!»

iniciava-se a paralela da libertação, logo a seguir acompanhada na maioria das nações do mundo civilizado.

Quando na Declaração dos Direitos do Homem, votada em 26 de Agosto de 1789, se considerava entre os direitos naturais e imprescindíveis do homem a «segurança e a resistência à opressão» e a «livre expressão do pensamento e das opiniões» era apontada como dos mais preciosos direitos do homem, era evidente que o chamamento dos irmãos à liberdade começava a gerar os frutos do respeito por essa mesma liberdade, que o mesmo é dizer, pelo próprio homem.

A revolução francesa fora o grito de libertação do homem, pelo homem e para o homem. Quaisquer que tenham sido, e alguns foram, os arbítrios cometidos à sua sombra, o certo é que a treva feudal se rompera e o mundo começava a traçar com início nos pontos que as circunstâncias propiciavam, as paralelas / 79 / daquela que ainda hoje, apesar de quase escarnecida e atacada, tanto e por vezes tão mal tem sido imitada e invocada sob nomes que outra coisa não são que máscaras de enganar.

Sem essa revolução libertadora muitos dos hoje seus adversários seriam ou continuariam a ser modestos, ainda que honrados, lavradores do Minho, pastores da Beira ou pescadores do Algarve, e nunca governantes eu grandes senhores da finança ou da indústria.

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E as paralelas nasciam daqui e dali, porque o povo divisava já, para além das trevas a que o habituaram, a luz duma libertação que ele sabia ser uma fatalidade histórica, mas que não podia nem devia deixar de procurar. Era tal a luz que os bem ou mal nascidos, conhecidos por nobres, em muitos exemplos se fizeram alinhar ao sol da nova conquista que, igualando-os ao povo a quem elevava, os igualava aos mais altos senhores, a quem diminuia.

E Portugal gritou também a sua revolta. Era a semente, que os ventos napoleónicos ajudaram a transportar, que encontrava no terreno fértil da opressão reinante e de descontentamento face aos governadores ingleses, o «élan» do seu próprio desenvolvimento. Fernandes Temos, Silva Carvalho e outros iniciaram o movimento que daria em resultado a Constituição de 1822 em cujo decreto aprovatório podia ler-se:

JERÓNIMO DE MORAIS SARMENTO
Voluntário da Rainha D. Maria II e alferes de caçadores, foi condecorado com a Torre e Espada.

«... intimamente convencidos de que as desgraças públicas, que tanto a tem oprimido e ainda oprimem, tiveram a sua origem no desprezo dos direitos do cidadão...»

e ainda, já no texto — artigo 7.º — que

«Todo o Português pode conseguintemente, sem dependência de censura prévia, manifestar suas opiniões em qualquer matéria...»

Por várias vezes as forças da reacção conseguiram fazer abandonar as conquistas feitas pelo povo e para o povo, mas sempre o mesmo povo se erguia a indicar aos reis o caminho da Honra. Estes, por medo umas vezes, por comodidade outras, lá iam acomodando as velas da sua inutilidade às exigências do povo que começava a «querer» porque já cria na liberdade que sabia ser a linha que o conduziria a si próprio.

Nem a repressão sempre feroz e desumana, certa de que o Povo sabe perdoar mas não esquecer, conseguia impedir que a paralela se desenvolvesse no seu fatalismo necessário a caminho da libertação.

Cabeças rolam nos patíbulos, sangue puro de heróis mancha de luz as lajes das praças e ruas, gritos de dor ante os suplícios ecoa pelas esquinas das terras onde se aprendera a amar a liberdade, mas nem assim a paralela deixara de traçar-se.

Um dos pontos iniciais duma das paralelas é o Perto, eterno bastião da liberdade, e nele, o grito dos revoltosos de 16 de Maio de 1828 que mais tarde viriam a sofrer a pena de morte por enforcamento, em patíbulo erguido sobre alicerces do monumento projectado à Revolução de 1820!

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Trecho da Avenida Dr. Lourenço Peixinho onde, com toda a solenidade e ante milhares de pessoas, foi lançada, em Maio de 1928, a primeira pedra (indicada pela seta) do Monumento à Liberdade.

Gravito, Manuel Luiz Nogueira e outros, e mais tarde Clemente de Morais lá deixaram cair o sangue do seu ideal para levantar até ao mais alto, o seu amor pela Liberdade. Tudo se revestiu de sadismo sem par e do mais inteiro desprezo pela pessoa humana. Como nota da mais repugnante falha de amor cristão, aponte-se o facto histórico de durante a execução da Praça Nova...

«...os frades lóios e os oratorianos, mais os seus convidados, regalaram-se com bolos e vinho fino.»

Nada impedia, porém, nada o impedirá jamais, o homem de lutar e buscar novos pontos para continuar / 80 / a traçar as paralelas da sua marcha sempre renovada para a libertação!

1910 é outro desses pontos e ao seu movimento, surgido das perseguições e da miséria pública para a qual a Monarquia dos Braganças da decadência havia lançado a Nação! É um novo grito de libertação pela República, provada que foi a inépcia da Monarquia. Surge a Constituição de 1911 vasada nos moldes fiéis saídos da Revolução de 1789. Não muito passava até que, de novo, as forças da anti-nação procuravam eliminar as conquistas do Povo. O Povo ainda tinha forças para aguentar a punhalada de Monsanto, mal refeito da luta por Portugal longe de Portugal, mas ia ficando cansado porque não sabia castigar e pronto sempre estava a perdoar a injúria e o ódio com a inocência suicida do seu perdão. Mas não esquecia, nem esquece, porque não deixa de sofrer. E caiu... Adormeceu exausto de tanta traição haver sofrido, até que as circunstâncias façam criar o ponto inicial de nova paralela que ele traçará no caminho sempre renovado da sua libertação!

*

Garrett (carta de M. Scevola, 1830) dizia:

«Os portugueses são naturalmente sofredores e pacientes: muito arrochada há-de ser a corda com que de mãos e pés os atam os seus opressores antes que rompam em um só gemido os desgraçados. Um murmúrio, uma queixa... nem talvez no cadafalso a soltarão!»

E é António José de Almeida, esse grande chefe da Nação Portuguesa que muitos persistem em fazer ignorar, que em Fevereiro de 1910 escreve, ao lado daquelas palavras do imortal autor do «Camões»:

«É certo. Os portugueses são assim, como diz Garrett: sofredores, pacientes, resignados. Mas, no meio da trágica resignação do seu sofrer, é visível a indómita rebeldia do seu carácter. São morosos na insurreição, mas, no momento supremo, quando a medida se enche, não há dique que se oponha ao extravasar da sua cólera.»

Fevereiro de 1910! Uns escassos sete meses separavam estas palavras da República libertadora do povo!

16 de Maio de 1828!

        31 de Janeiro de 1891!

                5 de Outubro de 1910!

Datas que são pontos de início de paralelas da história da libertação do Povo português, paralelas que jamais deixarão de ser por Ele traçadas.

 

páginas 78 a 80

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