Portalegre, 1/12 /945
Meu prezado Camarada:
Há muito tempo que lhe queria
escrever, pois deixei sem resposta a sua última carta; e, até
certo ponto, ela tinha ou requeria resposta. Julguei que nos
encontraríamos no Porto, durante as férias grandes. Escrever
cartas ou conversar não são a mesma coisa; sobretudo, quando, por
excesso de trabalho, quase sempre escrevo cartas à pressa. Não nos
encontrámos então; – algum dia será. Está agora em Lisboa com
permanência?
Já supôs que lhe escrevo hoje para
lhe agradecer o seu livro. Li-o todo grandemente interessado, e
creio que não é favor nenhum ao autor dizer que é um livro
notável. Duas principais coisas, no meu entender, o valorizam, – e
que são nada comuns em livros portugueses: a segurança de
pensamento (ou a coerência, mantida em todo o livro, da teoria) e
a penetração psicológica. Sem dúvida, o meu Amigo tem raras
qualidades para o ensaio crítico ou especulativo; e pode tê-las
ainda para outros géneros, (o romance psicológico, por exemplo)
se, a par das qualidades já reveladas, tem as outras, mais
puramente artísticas, necessárias à obra de arte literária.
Alegra-me, profundamente me alegra, encontrar o livro dum rapaz em
que – finalmente! – não encontro mais uma vez o petulante
simplismo que os mais dos rapazes de hoje por aí exibem como
título de glória.
Não quer isto dizer que sempre
esteja eu de acordo com o seu livro – o que aliás não tem senão
importância pessoal e secundária. Sendo um livro de interpretação,
estruturado em relação a uma intuição central, – afigura-se-me
que, por um lado, vários aspectos do Eça não chegam a poder ter
cabido nele, e, por outro lado, aquele aspecto apreendido como
centro da sua personalidade (a Ironia) sai dessas páginas
engrandecido, complicado, enriquecido. Mais simplesmente: Há
aspectos do Eça que o meu amigo deixa – e tem de deixar – de lado.
Em contrapartida, a ironia do Eça aparece (ou aparece-me) mais
rica no seu livro, do que na obra de ele próprio.
Um dia conversaremos, e então me
explicarei melhor. Isto não é senão um apontamento do que gostaria
de versar consigo. Em todo o caso, sobre este apontamento se
desenvolveria a crítica mais séria que eu poderia tentar fazer à
sua obra. Confesso, porém, que me não interessa isso de maior; –
pois o que me interessa é poder aplaudir o livro dum novo em que
(valha-me Deus! Agradar-lhe-á este louvor?) já se manifestam
experiências e virtudes de homem maduro. Falo não de velhice – não
– mas de maturidade, que é a verdadeira idade do homem.
Sou, com sincera estima,
o seu camarada agradecido,
/ 41 /
Meu caro Camarada
Soube ontem que apresentou o seu
Eça de Queirós ao concurso do Primeiro de Janeiro e que lhe
preferiram um calhamaço que não li mas que pessoa competente me
diz ser um amontoado infinito de imbecilidades (como era de
prever). Fica percebendo o meu caro Camarada à sua custa por que
tenho dito e repetido que Portugal continua sendo o Reino da
Estupidez, onde a Estupidez triunfa sempre. Estas palavras não o
podem consolar de ter nascido nesta terra, e de nela viver; mas
senti eu a obrigação de dizer-lhas. A celebração do centenário de
Queirós é espectáculo perfeito para a ironia queirosiana.
23-XII-1945
Seu
Lisboa, 21 Set. 57 Meu prezado
Amigo:
Gostei muito de saber, pela sua
carta, que se vai realizar um Congresso Republicano em Aveiro. E
gostei porque estou certo de que nele se exprimirão as nossas
aspirações de justiça e liberdade entre os homens – duas
conquistas sem as quais a vida é bem triste.
O meu actual trabalho – um
trabalho muito longo realizado com uma saúde bastante precária não
me permite escrever a tese que me pede. Envio-lhe, porém, uma
entrevista que dei ao «Diário de Lisboa» sobre a censura, quando
em 1945 houve uma ligeira concessão de liberdade entre nós; e
ainda uma mensagem que enviei a uma reunião efectuada na Voz do
Operário, onde examino também a situação do nosso pensamento
algemado. Se lhe interessar ler ou que alguém leia alguns trechos
desses dois documentos pode fazê-lo, pois o que escrevi então
continua válido e não tenho que lhe alterar uma só vírgula.
Com as minhas saudações aos
congressistas e com a minha fé na liberdade, no progresso humano e
na justiça dos dias vindouros, mando-lhe um grande abraço.
Seu amigo e admirador
Rio de Janeiro, 21 de Fevereiro de
1959
Meu prezado Camarada:
Tenho-me visto em grandes
dificuldades para organizar uma antologia da crítica portuguesa
moderna, trabalho que me foi encomendado pelo Serviço de
Documentação do Ministério da Educação, e o Mário Sacramento é um
dos autores «responsáveis» por isso. Com efeito, tendo de
conciliar exigências de espaço, género, qualidade, etc., os
autores com menos obra publicada, oferecendo pouco por onde
escolher, têm-me deixado por vezes interdito.
Pelo que particularmente lhe toca,
pensei desde logo no seu «Retrato de Eça de Queiroz». A
dificuldade começou por... não ter ainda conseguido o texto – ao
passo que o seu livro posterior sobre Eça não me parecia
susceptível de se lhe tirar um pedaço «a fingir» de coisa inteira,
e eu prefiro, como é natural, escritos inteiros, a fragmentos, aos
quais só penso recorrer em último caso, ou em circunstâncias
especiais (no caso de Bruno, por exemplo, do qual me pareceu
conveniente dar um excerto da «Geração Nova», a crítica ao Eça,
por ser realmente um texto inaugural dum ponto de vista
«moderno»). Vi um fragmento seu sobre a Florbela, mas esse
demasiado breve. Pensei então em pôr-lhe o problema: autoriza-me a
publicar o referido «Retrato», ou, caso o seu estudo sobre a
«Florbela» seja, como suponho, ensaio curto (relativamente)
preferirá que eu opte por ele, como expressão sua mais recente?
Aqui lhe deixo o problema, com o
pedido de me conseguir, no primeiro caso, um exemplar do
«Retrato», e, no segundo, de me mandar o texto completo da
«Florbela», caso não exceda as 15 folhas dactilografadas
(aproximadamente; claro que se tiver mais uma ou duas não haverá
mal nisso).
O que lhe peço é uma pronta
resposta. Vou em fins de Março para a Bahia, e queria ter até lá
todo o material reunido. Também lhe peço os dados essenciais
bibliográficos. Tenha paciência, e ajude-me nesta empresa, que,
com a displicência habitual à nossa gente, deve calcular como se
torna difícil!
Afectuosas lembranças do seu
camarada que muito o estima
/ 42 /
Portalegre, 11/4/1959
Meu prezado Camarada:
Peço-lhe que me desculpe a demora
destas linhas, demora só justificada pelo trabalho em excesso que
sempre tenho, e o correlativo cansaço.
Muito obrigado por se ter lembrado
de mim com a oferta do seu livro sobre Fernando Pessoa. É um denso,
belo e ruminado ensaio, que vem enriquecer a bibliografia, já
relativamente extensa, sobre o Poeta.
Vejo, aqui e além, que o Mário
Sacramento voltou à actividade literária. É caso para todos nos
felicitarmos! Sempre pensei que, apesar das dificuldades, se pode
acumular tal actividade com outras. Doutro modo, como se faria arte,
pensamento, cultura, em Portugal?
Li, e agradeço, o artigo (antes
breve ensaio) que dedicou às minhas «Três Peças em um Acto». Com
várias coisas que aí diz me achei de acordo. Prouvera a Deus que
sempre me criticassem (ou até atacassem) com tal seriedade e
inteligência.
Espero mandar-lhe breve o mais
recente volume do romance cíclico «A Velha Casa».
Com o agradecimento e a alta estima
do
Meu caro Mário Sacramento:
Desculpe-me não ter respondido ainda à sua carta e sobretudo ao seu
convite – ao convite sobretudo. Mas eu, neste momento, não sei para
onde me hei-de voltar, com trabalho atrasado três palmos acima da
cabeça. As colaborações, as traduções, os livros da minha pobre
lavra – aquilo com que exclusivamente, e tão mal, ganho a vida, nem
me deixam tempo para as boas devoções, que é o melhor do mundo.
Paciência!
Quando tiver um momento livre não me
esqueço de si. Conservo do bom tempo em que nos conhecemos um bom
sentimento também. Eu começava a sentir, então, as primeiras sombras
do Outono, embora ainda no quente Verão, e a vossa camaradagem jovem
foi um belo sopro de alegria. E quando voltaremos nós à fraternidade
dessa época? Tanto gostava que a 2.ª República se formasse numa
atmosfera assim! Havemos um dia, vocês têm de me ajudar, de criar
seja o que for, na vida pública portuguesa, sob o patrocínio do nome
de Bento Caraça, a expressão mais alta, larga, comovida e
inteligente dessa forma de convívio que tão grata nos foi e de que
tanto carecemos.
Perdoe-me e creia-me seu muito amigo
e admirador
10 Fev. 1960
|