(Conferência proferida, em 4-3-1959,
no Centro de Estudos Político-Sociais de Aveiro)
São passados mil anos sobre o mais
velho documento que se refere a Aveiro: é o testamento da Condessa
Mumadona, que lega os seus bens ao mosteiro de S. Salvador de
Guimarães.
Este documento é datado de 26 de
Janeiro de 959, de era cristã.
Se Aveiro já existia em mais
recuados tempos, deve ter sido saqueada e destruída pelas hordas
bárbaras que invadiram a Península e a Lusitânia, depois da queda do
Império Romano do Ocidente, pois dela não se encontra notícia senão
nos meados do século X.
Os velhos documentos exumados do pó
dos antigos tombos têm-se mostrado avaros em dizer-nos a época da
fundação da vila que, por ser tão aprazível sítio, tão temperado no
clima, tão mimoso de frutas e pescaria, e finalmente tão provida de
tudo o necessário para sustento da vida humana, se faz, sobre
estimada, apetecida.
Assim a descreveu Pedro Tavares,
Senhor de Mira, a Frei Bernardo de Santa Maria, quando da passagem
deste por Aveiro, para ali fundar o mosteiro de Nossa Senhora do
Carmo, acrescentando que «entre as notáveis deste reino tem
avantajado lugar, por ser empório tão frequentado de naus
estrangeiras e naturais, que excede a muitas grandes e compete com
as maiores da nossa costa».
Não falta, porém, quem esteja
interessado em considerar Aveiro como uma das mais antigas povoações
da Península, buscando os mais variados argumentos ou tecendo
histórias mais ou menos fantasistas.
«Flumen Vacca oppidium Talabrica»,
diz Plínio, ao enumerar as cidades da Lusitânia:
Antonino, no seu itinerário, marca
uma distância de Talábrica a Aeminium igual à que vai de Aveiro a
Águeda; daí se identificou, erradamente, Talábrica com Aveiro.
Situada «quase toda de norte a sul,
em forma prolongada, sobre uma fértil e aprazível campina, que não
tem competidora em muitas léguas em roda – como no-la descreve
Cristóvão de Pinho Queimado – não é de aceitar que tenha constituído
lugar de eleição para nela se edificar uma «oppidum» romana, opinião
justificada por não terem sido encontrados no local nem os mais
ligeiros vestígios de construções ou objectos da época da dominação
romana.
Frei Bernardo de Brito, na sua
Monarquia Lusitana, quer que Aveiro tenha sido fundada pelos gregos,
quando estes, depois da guerra de Tróia, aproaram às costas da
Lusitânia; e para tanto, fundamenta-se nos escritos do espanhol
Florião del Campo, que viveu no século XVI.
Também Carvalho da Costa, na sua «Corografia
Portuguesa», diz que a povoação foi fundada pelas legiões romanas do
tempo de Marco Aurélio, com o nome de Aviarium, local com muitas
lagoas, onde se criam aves palmípedes.
Velha feitoria fenícia?
Povoação fundada pelos gregos ao sul
da foz do Vouga? Ou pelos celtas e turdetanos?
Célebre cidade luso-romana?
Actual representante da antiga
Talábrica?
O que de momento se poderá afirmar é
que a sua origem está ligada à existência de sal na região, pois era
grande a importância deste produto na economia das antigas
populações.
O documento datado de 959, escrito
em latim bárbaro, designa Aveiro pelo nome de Alavarium... «in
territorio Colimbrie... terras in Alavarium et salinas que ibidtem
compravimus».
A partir desta época começam a ser
frequentes as referências à povoação que, no ano de 1050, surge com
o nome de vila de Alaveiro, no inventário dos bens de Gonçalo Ibn
Egas e de sua mulher Dona Flamula: «in illa marina costa sala tertia
de Alaveiro...» tal qual se lê no documento 378, do Portugaliae
Monumenta Historica – Diplomata et Cartae.
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A categoria de «vila», que lhe é
dada nesta data, não lhe confere ainda a importância que à primeira
vista parece ter, pois nos séculos X e XI assim era designado
qualquer agregado rústico.
De pouca ou nenhuma importância,
pela sua posição nada privilegiada para a guerra, sem castelos ou
até mesmo muralhas que a defendessem das constantes arremetidas dos
mouros, só algumas décadas mais tarde poderia vir a florescer, mercê
do seu comércio próspero, da sua navegação e da sua agricultura.
Muitas vezes assistiu e foi vítima
das frequentes lutas entre cristãos e mouros, quando estes ainda não
tinham sido levados de vencida para lá dos campos do Mondego.
Terra de pescadores e mareantes por
excelência, nascida para ser grande na paz, só começou a sua
verdadeira vida de grandeza depois do século XII, com a tomada de
Lisboa em 1147, porquanto só a partir desta data o tráfico marítimo
foi intensificado, após o afastamento do perigo dos piratas árabes
que de Lisboa faziam a base das suas operações.
Acentuou-se a sua importância a
partir de então, concedendo D. Dinis bastantes privilégios a quem
quisesse ir morar para a «sua vila de Aveiro».
D. Afonso IV concedeu regalias a
todos os pescadores e mercantes da mesma vila, que já então – 1380 –
apareceram organizados corporativamente na Confraria de Nossa
Senhora da Alegria.
De Aveiro, no ano de 1384, saíram
almas urcas, que se juntaram à frota que foi em socorro de Lisboa
ameaça da pelos castelhanos.
Não era, porém, chegada a hora que a
«vila nobre e notável» atingiria o seu máximo esplendor e a sua
maior grandeza.
Essa hora só soará, quando Portugal
tiver aventurado os seus primeiros passos nos mares desconhecidos,
na dilatação da fé e na expansão do Império, lançando-se numa
gigantesca epopeia marítima que ficará a assinalar uma época na
História e civilização de todos os tempos.
Essa hora só soará quando chegar o
século XV, o século de oiro da nossa História, o século português,
quando a vila for pertença do Infante D. Pedro que a cercará de
muralhas.
Ecoará e terá ressonâncias
grandiosas e sublimes através de todos os tempos, quando aos
destinos da «vila» estiver ligada para a acompanhar, como seu anjo
protector, uma figura luminosa desta época: a Princesa Santa Joana,
«a excelente Infanta e singular Princesa» no dizer de Garcia de
Resende. A sua figura eleva-se a um nível culminante sobre aquela
Europa, que, tal como a de hoje, vinha sofrendo os abalos de
profundas e radicais transformações, quer sobre o aspecto económico
e social, quer sob o aspecto intelectual, político e religioso.
Vejamos:
Economicamente, o sistema
corporativo medieval – que dera origem e fizera a prosperidade de
muitos burgos e vilas, como a de Aveiro – vai-se desagregando e o
capitalismo faz progressos crescentes.
A técnica comercial desenvolve-se
consideravelmente e ao lado das casas bancárias já existentes,
principalmente nas cidades italianas de Florença, Génova e Veneza, e
das suas filiais espalhadas por toda a Europa, outras aparecem,
realizando empréstimos, subvencionando empresas, assegurando e
dilatando, em suma, o comércio internacional.
Por outro lado, ao passo que a
nobreza feudal se ia enfraquecendo e arruinando, com o crescente
poder real, ergue-se potente e dominador o Terceiro Estado, já
consciente do seu poder e influência, oferecendo aos monarcas seguro
apoio para a reacção oposta aos nobres e ao clero.
Perante a acção centralizadora dos
reis, ajudados pelos juristas, a velha nobreza perde as suas
prerrogativas, os seus privilégios e a sua autoridade; em contraste,
a influência da burguesia, é cada vez maior: burgueses tomam conta
de diversas actividades do reino, entrando na administração do
tesouro, fornecendo legistas para o conselho do Rei, Professores
para as universidades.
A nobreza de Toga, vence a nobreza
de sangue.
No século XIII, a cultura é
eminentemente teológica; no século XV é humana.
O estudo da Filosofia e da Teologia,
que atingiu o seu apogeu no século XIII com a Escolástica, vem-se
dessorando a pouco e pouco na especulação e discussões estéreis do
século XIV, e apresenta neste século XV, sinais de marcada
decadência.
A corrente naturalista, já
acentuadamente marcada em Guilherme de Occam, encontra condições
favoráveis para o seu desenvolvimento no humanismo, largamente
preparado, nos séculos anteriores e que desabrocha, cheio de
esplendor, com Dante e Petrarca nas Letras, e Giotto e Fra Angélico
nas artes.
S. Francisco de Assis, com a sua
doutrina amorável e apaixonada pela natureza, abrindo vastos
horizontes ao naturalismo, ajuda a formação desta nova mentalidade.
Os franciscanos fizeram a
reconciliação do homem com a natureza «o fogo e a água foram
julgados dignos de serem irmãos dum santo. A própria água foi lavada
e o fogo purificado: a água não é mais aquela água que foi dos
escravos, o fogo não é mais aquele fogo que imolava as crianças a
Moloch...» no dizer de Chesterton.
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O estudo da latinidade, que nunca se
esquecera na Idade Média, aprofunda-se no século XII e no século XV,
o entusiasmo pela cultura clássica torna-se universal.
É este o século do humanismo fecundo
e eterno, que, na civilização antiga, procura os valores humanos.
Depressa, porém, degenera num
humanismo literário mais superficial, e tem a sua última
degenerescência no renascimento paganizante do século XVI.
Se as letras ganharam neste decalque
dos gregos e latinos, e as ciências experimentais se desenvolveram,
a idolatria por tudo quanto tivesse sabor clássico aniquilou a
arrojada arquitectura medieval, testemunho imperecível do idealismo
dos espíritos mediévicos.
Se Giotto e Fra Giovani – O
Angelicus Pictor – não perdendo nunca a sua simplicidade interior no
estudo da natureza e no seu anseio do Ideal, deram às suas obras um
cunho de ternura singela e ingénua, os pintores do século XVI, nas
ruas, cantavam hinos à natureza pagã.
Este humanismo degenerado provocou
um desequilíbrio na civilização dos séculos XV e XVI, e a sua
influência, sob o aspecto moral foi tão nefasta, que os benefícios,
que em contra partida trouxe, não compensam o descalabro em que fez
mergulhar os costumes, desprezando os tradicionais preceitos, e
adoptando outros tão livres, tão desenfreados, que dificilmente se
encontrará outra época do mundo civilizado e cristão, em que
moralmente se descesse tanto.
No campo político, a Europa do
século XV dava o espectáculo confrangedor duma Europa desmantelada,
separada por lutas religiosas e fratricidas, abrindo vasto campo à
cobiça do Turco, – o homem do Leste que, ameaçador, batia às portas
do Ocidente.
A Espanha que só com os Reis
Católicos – 1492 – conheceu unidade territorial, estava longe de
constituir, como a Nação portuguesa, um todo nacional.
A França entrou no século XV
completamente retalhada e ensanguentada pela guerra dos Cem Anos.
Parte do seu território estava nas mãos dos ingleses e a outra parte
ermado pelas guerras desastrosas. Carlos VII nada mais era do que o
Rei de «Bourges», e teria perdido ceptro e coroa, se, duma aldeia da
Lorena, não surgisse a heroína que, inspirada por Deus, salvou a
França dando-lhe admirável exemplo de fé nos seus destinos.
A Inglaterra viu perdidos todos os
territórios e garantias que alcançara da França. Internamente, as
lutas com a Escócia e a Guerra das Duas Rosas reduziram-na a um
deplorável estado.
A Alemanha, constituída por um
aglomerado de cidades livres, e cerca de 400 principados, ducados e
estados pequenos que continuamente se guerreavam vivendo na mais
dissolvente anarquia, era permanente campo de lutas, onde os
Hohenzollern, os Wettels e os Habsburgo se disputavam a coroa
imperial, mais um símbolo do que uma realidade.
A Itália via-se a braços com as
rivalidades que mantinham entre si, não só as diferentes cidades
livres e independentes em que estava fragmentada, mas também as
principais famílias duma mesma cidade, que recorriam a estranhos,
para solucionarem questões internas, franqueando-lhes a entrada e
facilitando-lhes o domínio.
Os Estados Escandinavos esgotavam-se
em lutas pela hegemonia.
Dos povos Eslavos, só a Polónia
atingira certa importância e organização, sendo a potência
preponderante da Europa oriental e a barreira, que, no século XIV,
susteve a invasão mongólica.
O império bizantino, após uma
existência de quase mil anos, estava reduzido à sua opulenta
capital. Dum lado os eslavos, do outro os húngaros; mais tarde, os
tártaros e os árabes, e agora, os turcos tinham ido minando,
esfacelando e arruinando o império do Oriente.
O turco avançava sempre e a bandeira
do crescente teria chegado à Europa cristã se o rei da Hungria lhe
não detivesse a marcha.
Tem ressaibos de tragédia este
paralelismo histórico do século XV e do século que atravessamos!...
O panorama religioso é marcado pelo
período tristemente célebre dos Papas de Avinhão e do grande Cisma,
que contrasta com o período de prestígio e hegemonia do Pontificado,
durante a Idade Média.
Os princípios básicos da unidade
religiosa e da hegemonia da Santa Sé são atacados, dando origem à
série de calamidades que caíram sobre a Igreja.
Após as primeiras heresias de
Wicleff e de João Huss, bastou uma chispa lançada por Lutero, para
que se ateasse o fogo da rebelião religiosa mais radical que a
História regista e que trouxe a mais dolorosa divisão da
Cristandade.
Só nesta ponta ocidental da
Península, se afirmava já uma nacionalidade, plena de vigor,
transbordante de vitalidade, una, forte, ansiosa de expansão.
Passada a crise de crescimento, há paz e grandeza.
Enquanto por essa Europa os homens
andavam «cegos e sedentos» do sangue de seus irmãos
«Não faltavam cristãos atrevimentos
nesta pequena casa lusitana».
Por ocultos mistérios de Deus
afastada de Castela, esta nação, que um dia seria chamada
«fidelíssima», entrava no século XV guiada pela mão dum génio, nessa
estrada imensa que liga os continentes, nesse mar ainda Tenebroso, e
que, mercê da fé e do arrojo dos nossos mareantes, se transformaria
num Oceano luminoso.
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O Príncipe Perfeito, o «Homem»,
incarnação acabada das virtudes de seus tios-avós – os altos
Infantes – filósofo, estadista, humanista, asceta, realizaria o
plano arrojado de D. Henrique.
Desligado a pouco e pouco da
monarquia leonesa, o pequeno condado portucalense, vai-se alargando
e transformando no reino de Portugal.
Os filhos de D. João I fazem o seu
baptismo de sangue, em Ceuta, e D. Afonso V assenta no Magreb os
primeiros pilares do nosso império de além-mar.
E, traçados definitivamente os
limites geográficos, organizada a vida administrativa da Nação,
despertada a sua consciência nacional, afirmada e consolidada a sua
independência em Aljubarrota, Portugal entra no século XV, uno,
forte e livre, marcando uma posição de acentuada preponderância,
numa Europa inquieta e atormentada por numerosas guerras de
predomínio e cisões religiosas.
Ainda com marcados ressaibos de
espírito medieval, cujo expoente máximo está consubstanciado na
figura de D. Afonso V, Portugal é, nesta época, a expressão de uma
geração de homens – guerreiros e santos, sábios e filósofos – que
culmina na figura gigantesca do Infante de Sagres.
Incarnação de todas as virtudes da
Raça, tradutor dos seus sonhos mal despertos para mares nunca doutro
lenho arados, acendeu, em Sagres, o facho que iluminaria as paragens
longínquas e desconhecidas da História, ocultas ainda à radicação da
Fé.
O Portugal de Avis, o Portugal dos
Descobrimentos, que, à sombra da cruz realizaria o sentido
apostólico da sua vocação, irá continuar a obra inacabada da
conquista e do povoamento, obra de Cruzada, que se iniciou em Ceuta
e que só terminará no sacrifício de Alcácer-Quibir.
A conquista de Ceuta, em 1415, é o
primeiro verso duma epopeia inspirada por um ideal inultrapassável,
qual era o de, em «serviço de Deus», destruir o Islão, ameaçador da
Cristandade, salvar a civilização ocidental da cobiça dos povos do
oriente.
Mais do que isso, a conquista de
Ceuta é o marco miliário, duma idade nova, duma idade oceânica, em
que Portugal representa o primeiro papel. A tomada de Ceuta marca,
melhor do que a tomada de Constantinopla, uma nova época: ela foi a
percursora imediata da idade dos descobrimentos marítimos,
determinante duma viragem na História.
De Ceuta se partiu para a Grande
Rota, que substitui a concêntrica civilização mediterrânica pela
excêntrica civilização atlântica.
Refugiado na estranha corte do Sacro
Promontório, cercado de desvairadas nações de gentes, D. Henrique
prepara cientificamente os seus marinheiros para vencerem o mar
tenebroso povoado de lendas e mistérios, esse mar, considerado como
o limite inviolável da terra.
Ajudado por uma inteligência
pujante, este génio silencioso debruça-se sobre o mar, interroga-o,
a querer desvendar-lhe os mistérios, e giza um plano que irá
executar tenaz e porfiadamente.
Há um mar tenebroso povoado de
lendas e mistérios?
Há um príncipe cristão para as
bandas do Oriente?
Há uma Índia, povoada de infiéis
para lá desses mares?
É necessário desafiar e vencer o mar
das Trevas.
É preciso ir em busca do Pestes
João.
Há que chegar à Índia e sufocar
mortalmente o inimigo da Cristandade.
As naus do Navegador, tripuladas
pelos seus mareantes, irão sistemática e perseverantemente, sulcar o
Oceano, numa luta de igual para igual: dum lado o mar tormentoso, do
outro o esforço duma Raça.
O mundo ignorado vai surgindo aos
olhos da Europa.
A passagem do Bojador modifica a
fisionomia do mundo: rasga os limites que a antiguidade julgava
invioláveis.
O mar-oceano, cujas ondas eram
negras como breu, abria-se, límpido, às naus destes marinheiros de
Cristo.
Não há mais ondas negras, onde o Sol
se afogava sem voltar a aparecer...
Não mais ilhas misteriosas, onde os
pescadores sofriam eternas penas...
Não mais estranhas estátuas,
Adamastores disformes, ordenando terrivelmente que não fossem mais
além...
Gil Eanes quebrara o encanto.
O negro mar das trevas era agora o
verde mar da esperança!...
E sempre... se apetrecham as
embarcações que seguem rumo à África em demanda do Oriente...
Sempre... no mesmo ritmo, sem desânimo, por uma obra de Cruzada,
depois cimentada na da conquista e exploração, os portugueses de
quatrocentos, tornaram-se os pioneiros da fé católica e obreiros do
Império.
É neste momento histórico, que, em
Lisboa, nasce a Princesa D. Joana, filha do Rei de Portugal, D.
Afonso V e de sua mulher, a rainha D. Isabel.
Com 20 anos, veio para o mosteiro de
Jesus, em Aveiro, sepultar a sua radiosa beleza, trocando o fausto e
pompas da corte de seu Pai pela vida de penitência e austeridade.
Aqui se veio encerrar e aqui se
finou santamente. Com a sua morte, se despiu de galas a própria
natureza: em Maio, as flores murcharam e as folhas caíram...
Os seus contemporâneos lhe chamaram
santa Princesa, e sob esse nome é ainda hoje invocada pelos
marinheiros que o põem na proa dos seus moliceiros
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e arrastões, e por todos os aveirenses que crêem que a sua alma
continua a protegê-los.
Singular figura a desta Princesa
jurada dum reino, cuja vida silenciosa e humilde é uma eloquente
epopeia na projecção que teve sobre o mundo e a sociedade em que
viveu, e que ainda hoje, passadas centenas de anos, no faz recolher
em saudosa meditação.
Esta Infanta de Vitral brilha
esplendorosamente, como iluminura mediévica emoldurada pelos
luminosos poentes da sua «Lisboa a pequena» como enternecimento
chamava à sua vila de Aveiro.
A 25 de Julho de 1415, sai do Tejo a
grande armada que irá conquistar Ceuta.
Nela vão incorporados alguns navios
de Aveiro, que faziam parte da frota «bem alpendorada e toldada» de
setenta navios, todos novos, saída do Porto, sob o comando do
Infante D. Henrique.
Ceuta é agora portuguesa. A armada
regressou a Portugal. O Infante D. Pedro, (filho segundo do rei da
Boa Memória) é feito duque de Coimbra e também senhor de Aveiro. No
seu espírito nasce a ideia de tornar a vila uma das primeiras de
Portugal.
Para tanto contribui a sua magnífica
situação geográfica e os muitos favores e privilégios que lhe foram
concedidos sob a protecção do seu novo donatário – o da «Virtuosa
Benfeitoria», – a quem os Aveirenses chamariam «O Reedificador».
Nunca a vila tinha recebido por
senhor quem tanto por ela se interessasse e nem por isso foram
poucos os que possuíram o senhorio de Aveiro, ou ali tiveram bens,
pois muitas vezes foi doada à nobreza, a ordens religiosas ou a
igrejas, como nos primórdios da nossa nacionalidade era uso fazer-se
no sul da Europa.
Passando pela mão de diversos
donatários, foi pertença da coroa no reinado de D. Dinis e de D.
João I, até ser doada a seu filho o duque de Coimbra, doação mais
tarde confirmada por D. Duarte e depois por seu sobrinho, o rei D.
Afonso V, em 1448, que a tornou de juro e herdade.
Não quiseram as intrigas políticas e
palacianas que por muito tempo ela estivesse na posse deste nobre
senhor.
A sua trágica morte nos campos de
Alfarrobeira, no ano de 1449, fá-la voltar à posse da coroa, até
que, em carta datada de Alcobaça, a 19 de Agosto de 1485, D. João lI
declara fazer «irrevogável doação da nossa vila de Aveiro com seus
terrenos e com todas as rendas e direitos reais da dita vila e da
dízima nova e velha do pecado dela, à Infanta D. Joana, sobre todas
mui prezada e amada irmã», que, no humilde e pobre mosteiro
dominicano, viera sepultar a sua radiosa e estranha beleza, de
cabelos loiros e olhos verdes.
Em Julho do ano de 1472, a Infanta
D. Joana, acompanhada do pai e do irmão, e com todos os da sua
corte, cobertos de dó e muito tristes – como se lê no velho códice
quinhentista da Crónica da Infanta – seguiam a caminho de Coimbra,
onde no sumptuoso e excelente convento das Claristas, a princesa ia
dar entrada.
Todavia, antes de chegar à cidade de
Coimbra, a Princesa, que «só procurava religião onde vivesse com
pobreza e humildade e onde estivesse com Cristo pobre e pequenino»
pediu ao pai que a deixasse ir para Aveiro, para um mosteiro pobre,
havia sete anos fundado. O Poderoso monarca, o primeiro que por
graça de Deus foi rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar
em África, «mandou que endereçassem suas jornadas para a vila de
Aveiro contra a vontade e parecer de todos».
No século XV, já aparece nos códices
com o nome português de Aveiro, a antiga Aviarium, a Alavarium ou
Alaveiro dos séculos X e XI.
Grande empório comercial e marítimo,
banhado pelas águas da sua riquíssima laguna, que mais não era do
que esse mar lusitano, que desde sempre tanto seduzira os seus
habitantes, estendia-se de norte a sul numa vasta planície das mais
belas e produtivas da região das beiras.
Um braço da laguna – o esteiro do
Cojo – cortava a povoação de poente a nascente, limitando, pelo sul
o recente bairro de Vila Nova, e pelo norte, o velho e nobre bairro
da vila e os bairros comerciais do Alboy e da Ribeira.
Inflectindo para o sul, corria o
esteiro pelo vale do Côjo, para ir passar junto às terras chamadas
das Agras, não longe do bairro dos Oleiros.
A laguna, aberta para o mar, no
sítio da barra, a duas parcas léguas da vila, ofertava entrada e
saída aos barcos de maior tonelagem de então, quer nacionais quer
estrangeiros, fazendo de Aveiro um dos mais importantes entrepostos
comerciais do século XV.
É assim que, através dos seus
profundos canais, a laguna constituía um magnífico porto, e permitia
que as maiores naus e galeões viessem acostar ao Cais do Alboy e da
Ribeira, à sombra das muralhas da «antiga e mui nobre e notável
cidade de Aveiro».
Era a vila formada pelos seus cinco
bairros, o mais antigo dos quais, o mais nobre e por certo o
principal, foi rodeado de muralhas, por ordem do Infante D. Pedro,
donatário de Aveiro, depois de 1415.
Querendo que ela fosse uma das mais
importantes do reino, mandou reconstruí-la, e iniciar a construção
de altos muros, para o que se utilizou o calcário branco acinzentado
dos lugares próximos, calcário brando, é certo, mas que o tempo
endurecia.
É de presumir que tivesse orientado
a construção das muralhas o mestre-de-obras do Infante, Lourenço
/ 20 /
Eanes de Morais, que era «morador na vila de Aveiro» em 26 de
Outubro de 1432.
Quem, pois, no ano de 1472,
acompanhasse a Aveiro a Princesa de Portugal, e com ela viesse do
sul pelo caminho real, avistaria a silhueta das muralhas, com suas
barbacãs e torreões, que circundavam o bairro nobre da povoação.
Fora de muros, passava-se ao lado do
bairro dos Oleiros por uma larga rua que se terminava na entrada
mais importante da vila.
Logo ali, sobre a porta chamada por
principal – «a porta da vila» – estavam gravadas na pedra uma
inscrição em numeração romana e as quinas reais, sobre a cruz de
Avis, com a orla dos Castelos, tendo cortados os superiores com o
branco de pinchar; por cima o braço duma balança, cujos pratos
pendem dum e doutro lado do escudo e uma fita com a palavra «désir».
Isto é, a era de 1418, sobre o
brasão de armas do Infante D. Pedro.
De sólida construção, o cinto de
muralhas, em hexágono irregular, era formado de seis lanços,
interrompidos, «como os de Jerusalém» por nove diversas entradas
(bem que nelas se encontram 12 portas) além de 4 postigos, estes
destinados apenas aos peões.
Ao meio do mais importante lanço – o
que ficava voltado para o sul – abria-se a porta da vila.
Nesta entrada se contavam duas
portas, ambas em forma de arco ogival.
Passada a primeira, ficava-se num
átrio rectangular, limitado pela espessura das muralhas e fechado ao
fundo pela segunda porta, que era necessário ultrapassar também,
para se ficar dentro da vila, a que muitos chamavam a «Jerusalém
lusitana».
Na porta principal tinha começo a
rua Direita. Seguia para norte, cortando a vila e dirigindo-se
directamente ao outro extremo do bairro, onde, depois de tomar o
nome de rua da Costeira, se terminava na porta da Ribeira.
Não precisavam os habitantes do
bairro dos Oleiros, como se verifica pela topografia das muralhas,
de as rodear muito para entrar no seu recinto fechado: a Porta do
Sol, voltada quase para nascente, donde o seu nome, dava-lhes acesso
para a rua de Santa Maria, no local onde tinha sido fundado o
mosteiro de S. Domingos.
Foi este mosteiro fundado pelo
Infante D. Pedro, que para isso obteve licença do Papa Martinho V,
em 19 de Fevereiro de 1493, e a ele ainda ligava a lendária aparição
da Virgem ao velho Afonso Domingues, trazida até nós pelo notável
cronista da ordem dominicana – Frei Luís de Sousa – e mais tarde
romantizada pelo poeta do Trovador, João de Lemos.
No lado interior da muralha, sob a
porta do Sol, encontra-se um nicho com uma imagem da Virgem, e a
invocação «Ave-Gratia-Plena».
Da porta do Sol para nascente,
abraçavam as muralhas o Mosteiro de S. Domingos e a sua grande cerca
até junto do campanário da igreja, onde ficava a porta do campo e em
cuja parede exterior estava inscrita na pedra a epígrafe:
«Ano do Senhor de 1418. Estas
muralhas, o Infante D. Pedro, filho do ínclito rei D. João I, mandou
construir».
Daqui, corriam os muros até ao
extremo da cerca do Mosteiro de Jesus, desciam em curvas e
contracurvas a rampa da Corredoura, como que a querer lançar-se lá
em baixo, no esteiro, para se abrirem junto do cais numa outra
entrada, que uns afirmam ser apenas um postigo, outros garantem ser
uma porta. Trata-se da porta do Côjo.
Já para trás, a muralha apresentava
mais duas entradas destinadas a peões: o postigo do campo – também
chamado do Norte, por ficar voltado para este ponto cardeal – e o
postigo da corredoura, do Côjo ou do nascente; o primeiro, à
Travessa das Laranjeiras – extremo da cerca do Mosteiro de Jesus; e
o segundo, a nascente da Travessa do Hospital.
Também na porta do Côjo não faltava
uma inscrição, junto ao arco ogival do lado exterior, que rezava
assim:
«Ano do Senhor de 1422. O Infante D.
Pedro, filho de D. João I, mandou fazer estes muros como os da
cidade de Jerusalém».
Marginando o cais, seguia a muralha
em linha recta para se abrir na porta da Ribeira com seus dois
arcos, depois do que se continuava sempre paralela ao esteiro,
acompanhando o bairro da Ribeira até ao largo de S. Brás, onde
terminava por um torreão antes do qual ficava a porta do cais.
Depois deste, fazendo um ângulo
recto, subiam os muros ameados pela ribeira das Arribas, deixando de
fora o bairro dos comerciantes ingleses. No vértice deste ângulo,
situa-se a porta do Alboy, voltada para poente e dando passagem para
o bairro que lhe deu o mesmo nome.
Ao cimo da porta das Arribas, as
muralhas seguem quase em linha recta, abrindo-se na porta de Rabaens.
Mais ao sul, depois de 2 torreões,
entrava-se na vila pelo postigo do mar, e o lanço terminava na porta
de Vagos, aberta na direcção da vila do mesmo nome.
Daí, correndo para nascente, vai
fechar-se o hexágono na porta da vila não, sem ter sido interrompido
pelo postigo do Sol.
Desta muralha pouco ou nada resta.
Apenas umas pedras enegrecidas.
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VIDA SOCIAL, ECONÓMICA E RELIGIOSA
O bairro nobre, que as muralhas
circundavam, era ocupado, em grande parte, pelos mosteiros
dominicanos de Jesus e de Nossa Senhora da Misericórdia – este, com
sua grande cerca.
Atravessado de sul para norte, pelas
Ruas Direita, do Loureiro, e do Campo, não contando as de somenos
importância, era cortado de nascente a poente por algumas ruas e
travessas, das quais diremos, a Rua de Santa Maria, a Travessa do
Terreiro e a Rua de Santa Catarina. Esta fazia comunicar a Rua do
Campo com o adro de S. Miguel, onde vinha rematar a Rua Direita e a
do Loureiro.
A par dos magnificentes mosteiros e
vetustas capelas, tinha as suas casas todas construídas de pedra,
brancas e vistosas a das pessoas vulgares, e as dos nobres com
frontispícios, sacadas e primorosos jardins.
Tudo isto tornava a vila com as suas
largas ruas e espaçosas praças – largas e espaçosas para aquela
época – uma das mais belas do reino, a que não faltava o encanto que
lhe emprestam a sua maravilhosa laguna e as suas riquíssimas
marinhas de sal a que feéricos poentes de fogo arrancam cintilações
deslumbrantes.
Esquecendo, por momentos, os seus
mosteiros dominicanos, avultava com seu espaçoso adro a Igreja
Matriz de S. Miguel, cujo alta torre de três sinos e uma garrida
projectava, desde o século XI ou até mesmo desde séculos mais
recuados, a sua acolhedora sombra, sobre as águas azuladas da ria.
Na sua riqueza, surge com
austeridade dos monumentos medievais.
Fundada cerca do ano de 1086, pelo
conde D. Fernando, segundo versão de alguns investigadores, assistiu
a todas as glórias e a todas as vicissitudes dos aveirenses.
Voltada ao poente, não obstante a
pesada arquitectura, conservava toda a majestade, com suas «frestas
esguias e semicirculares».
Era um edifício grande, sem naves,
de pedra e cal, e no frontispício um painel de S. Miguel com moldura
doirada.
Fora, encostadas às paredes e
gozando sombra protectora, erguiam-se onze capelas; sobressaía uma,
de arquitectura gótica, a de Santa Catarina; destacava-se outra em
forma de zimbório – a capela de S. Brás – instituída em 1457 por
Fernão Vaz de Agonide, contador-mor de D. Duarte e de D. Afonso V.
Muito próximo, no mesmo adro de S.
Miguel, a Albergaria de S. Brás, para alojamento de peregrinos. Dali
se avistava, olhando em frente, a Casa Municipal, situada na Rua da
Costeira.
Na centro da vila – o largo do
Terreiro – vivia a comunidade judaica que se estendia pelas
imediações até à rua da Judiaria.
Para além da ponte, que se lançava
através do esteiro em quatro soberbos arcos, estendia-se o arrabalde
ou Vila Nova.
Era um pequeno bairro de toscas
casas, espalhadas desde o braço do Côjo às vinhas de Sá, construídas
de pobres paredes de adobos de lama, e tendo por cobertura humildes
tectos colmados.
Habitada por marinheiros, pilotos e
pescadores – os descendentes desses outros aveirenses que já três
séculos antes saíam para o mar a lançar as suas redes – o bairro de
Vila Nova tinha começado a formar-se no primeiro quartel do século
XV e possuía já bem apetrechados estaleiros, onde se construíam não
só poderosas naus e caravelas que iriam ajudar a conquista e
expansão, como também barcos e galés, para o intercâmbio comercial.
Sobranceiro ao canal, ficava um
chafariz, donde faziam os mareantes suas aguadas para abastecer as
embarcações, e cuja água corria até ali, pelo vale do Côjo, trazida
em magnífico aqueduto de cantaria.
Muita antiga, e quase no limite do
bairro, ficava a sua única ermida. Outrora fora paróquia, mas
naquela época era sede de importante confraria dos seus pescadores e
mareantes.
Elevada sobre minúsculo outeiro,
donde se enxergava o mar, próximo à costa, «é grande e formosa, com
um alpendre e seu coro para se cantarem as Missas; tem 3 capelas, a
maior e duas colaterais, com retábulos doirados e tudo com grandeza
e perfeição.» Assim no-la representa Frei Agostinho de Santa Maria.
Santa Maria de Sá... Tal é o nome da
pequenina e modesta ermida que depois foi chamada Nossa Senhora da
Alegria.
Por anexo, um hospital fundado por
Fernão da Veiga para os pescadores pobres daquela irmandade,
organização social e religiosa, por certo muito antiga, como a
atestam os seus confrades nos meados do século XV, em escritura
feita perante Afonso Vicente, tabelião em Vila Nova.
Os bairros da Ribeira e do Alboy,
situados na riba sul do esteiro e marginando-a, eram habitados, o
primeiro, por comerciantes e mercadores aveirenses; o segundo, por
estrangeiros. Predominavam entre estes, os ingleses e também os
holandeses e flamengos.
«Alboy» é, segundo parece, corrupção
de Albion, pátria dos ingleses que lá habitavam, e que à principal
rua do bairro deram o seu nome – Rua dos Ingleses.
Situado extra-muros, com o seu cais
acostável, tinha fama como grande entreposto comercial e centro
distribuidor do comércio externo, representado por firmas de várias
nacionalidades. Não é contudo fácil
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precisar a data em que se estabeleceram aí as primeiras casas
estrangeiras.
Já no reinado de D. Afonso III, as
quinhentas marinhas de Aveiro produziram sal bastante para poder ser
exportado para Inglaterra, França e Flandres; a formação do bairro
do Alboy deve remontar, pois, a essa época, tendo atingido, porém,
grande incremento no século XIV quando à indústria salineira se
juntou a das pescarias, sem dúvida muito mais importante, o que
determinou a afluência de muita gente estrangeira.
Ao entreposto do Alboy aproavam
muitos barcos, tanto nacionais como estrangeiros: saíam uns com
grandes carregamentos de sal, peixe, cereais, vinhos e frutas,
destinados aos portos do reino e aos de Inglaterra, Flandres,
Bretanha e Normandia; entravam outros trazendo em troca, os panos de
lã, a cambraia, o linho, o barbante e outros produtos de que se
fazia mister.
O homem procura «as localidades cujo
torrão fecundo lhes faculta o granjeio das subsistências, em sítios
favoráveis à laboração industrial e mercantil» como ensina Amorim
Girão. É, pois, de julgar, que o desenvolvimento da indústria
salineira e das pescarias, intensa no século XIV e atingindo o seu
apogeu no século XV, tenha chamado a Aveiro parte da população do
interior que veio juntar-se à que ali já residia.
Era esta constituída especialmente
por pescadores e mareantes, marnotos e medidores, construtores
navais e mesteirais, comerciantes e artífices das construções
urbanas e rurais; por nobres e religiosos.
É sem dúvida a classe marítima a
mais representativa da vila, constituindo uma força social, que, com
o seu escol de mareantes, arrojados marinheiros, sábios pilotos,
mestres e contra-mestres, pescadores e arrais, formava uma elite de
experimentados navegadores, que muito contribuíram para a nossa
epopeia dos descobrimentos.
Nesta época a sua importância devia
ser tanto maior, quanto é certo que desde o Infante D. Henrique,
mais se tinha valorizado a função dos pilotos, senhores da ciência
náutica e de quase todos os segredos do mar.
Foi deste alfobre, desta improvisada
escola de marinharia que nasceu João Afonso de Aveiro, conhecido em
todo o reino com piloto de grande saber e homem afeito ao mar.
Da importância dos mareantes e
pescadores pode avaliar-se pela sua rica organização religiosa e
social, a Confraria de Santa Maria de Sá, representativa da classe,
cujos interesses e regalias advogava perante o rei e Tribunais.
Da sua antiguidade e extensão pode
ajuizar-se pela sentença dada em 25 de Agosto de 1500, pelo Vigário
Geral do Bispado de Coimbra, em que se diz ter a Irmandade cerca de
200 anos e agrupar trezentos a quatrocentos irmãos. Todavia só no
ano de 1441 se constitui legalmente, por escritura.
A D. Afonso V devem os mesmos
pescadores a confirmação de todas as suas graças, privilégios,
mercês e liberdades, dada em carta datada de 20 de Julho de 14149 e
da qual lhes foi entregue «o treslado dela em pública forma».
Ainda no século XV e no reinado do
Príncipe Perfeito, por provisão deste rei, em 24 de Abril de 1448
foi concedido que «sem embargo de taixa, que sobre os ditos pescados
aos ditos pescadores têm disposto que eles o vendam e possam
livremente vender a dúzias».
Ligada às actividades desta classe,
vivia a burguesia aveirense, criada na vila, como consequência da
função do seu porto e do desenvolvimento do tráfego lagunar e
marítimo na fase que antecedeu os Descobrimentos.
Possuindo uma mentalidade «sui
generis» em razão do seu contacto diário com outros povos –
principalmente de países nórdicos – contrastava com os restantes
habitantes da povoação. Esta classe, dominando um horizonte que
transcendia os estreitos limites da vida local, era por isso mais
aventureira, mais aberta às influências vindas do exterior e às
inovações do progresso.
Com o seu apogeu durante esse
século, esta burguesia composta de mercadores, comerciantes,
banqueiros e armadores navais, procurou vencer as restantes classes
fazendo sentir o seu poderio a essa população apegada à terra,
senhora e depositária das velhas tradições, mantenedora dos antigos
usos e costumes.
Todo o esforço destas classes era
ajudado pela população rural, que pela sua actividade agrícola
fornecia as subsistências necessárias ao grande agrupamento urbano,
arroteando e semeando a terra dos grandes senhores – os nobres.
Destes, uns residiam na vila, por
nascimento; outros, tinham vindo em virtude das muitas visitas que a
Aveiro fazia o Infante D. Pedro, ou ainda pela chegada da Princesa
D. Joana, e de seu sobrinho D. Jorge de Lencastre. A sua estadia ali
chamava outros, pelo que em Aveiro se foi formando uma pequena
corte.
O número de nobres era já tão
avultado que a pedido dos Aveirenses, o Senhor da Virtuosa
Benfeitora lhes concedeu o privilégio de nenhum fidalgo grande, ou
pessoa poderosa poder ali estar mais de quatro dias, sem o seu
beneplácito.
Influenciando beneficamente a
organização da propriedade rústica, a nobreza teria exercido,
porventura, acção perniciosa na classe marítima, o que se conclui do
facto de D. João II sentir necessidade de proibir aos fidalgos a sua
entrada na feira anual, que se realizava em Março, feira franca
durante nove dias e de se hospedarem em casa dos mareantes, pois que
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durante as suas viagens tinham que deixar sós suas mulheres e
filhas.
Recolhidos no silêncio dos seus
monastérios, solidões meditativas, refúgio contra um mundo a
dessorar-se pelos primeiros sopros de uma Renascença pagã, em luta
feroz contra o espírito da Idade Média, criador de Santos e heróis,
mantinham acesa a fé em suas almas, os monges e as monjas dos dois
conventos de Aveiro, em constantes orações e penitências.
Envergando os seus hábitos de
estamenha, pretos e brancos, sobre os quais usavam os cilícios que
mortificavam a carne, viviam a mais austera disciplina, pregando a
verdadeira Doutrina, com o seu exemplo de castidade, pobreza e
obediência, em transportes de exaltação mística, num proselitismo
ardente.
Em contacto directo com a população
da vila, vivendo junto dos seus templos, vivia o clero secular,
vestido de suas batinas negras e grosseiras e calçados de toscos
sapatos à maneira antiga.
Junto a esta população, mas sem com
ela se poder confundir, viviam os de raça judaica em seu bairro
próprio, dentro do bairro nobre. Poderosos, gozando de bastante
protecção, explorando todos os ramos de negócios – à excepção do de
metais preciosos que lhes era vedado – resistiam tenazmente à
absorção.
Para fugirem ao baptismo,
sujeitavam-se a todo o género de humilhações por parte da população,
para quem representavam um sério caso de consciência religiosa.
Desventravam-se as terras da vila, e
davam-se fartamente em peixe as águas da laguna e do mar.
Abastecida a população com o
necessário, ainda podia exportar para outras povoações do reino e do
estrangeiro o que restava para além das suas exigências.
Abundavam os cereais, pois só os
campos do Vouga produziam anualmente 30000 moios de pão.
Abundava o vinho, os legumes, a
hortaliça; a produção de fruta ultrapassava de tal modo a quantidade
de que carecia a população, que todos os anos se carregavam navios
para Inglaterra.
Eram tantas as aves domésticas, que
os ovos mandados para o Porto e Lisboa rendiam 8000 cruzados em cada
ano, depois de abastecida a vila e Coimbra.
Não escasseava a caça do monte nem a
da ria, antes parecia inextinguível.
As suas marinhas produziram 16000
moios de sal.
Nas suas férteis pastagens
criavam-se Formosíssimos cavalos.
Todos estes produtos contribuíam
para valorizar a vila e o seu porto e tornar Aveiro um dos centros
comerciais mais prósperos do século XV.
Utilizava-se a sua laguna como meio
de comunicação e dada a dificuldade de penetração para o interior,
pela falta de estradas e caminhos, a vila expandiu forçada mente o
seu comércio para o mar.
Nos bairros do Alboy e da Ribeira,
barcos de todos os feitios e tamanhos, arvorando bandeiras das mais
diferentes nacionalidades, procediam à descarga dos mais variados
tecidos, (como os panos de lã, o bristol, o lila (de Lile), a
cambraia, o linho cru) – espécie de brim próprio para velas; mais
descarregavam fio branco, esparto, sementes hortícolas, aduela,
ferro, papel, vidro e pólvora.
Em troca, levavam madeiras, cereais,
legumes, vinhos, frutas, sal, peixe e mariscos.
São passados 500 anos:
Numa Europa do século XX –
atormentada por profundas lutas de interesses e dissidências
políticas, económicas e filosóficas, esta velha Lusitânia, encontrou
há algumas décadas o seu rumo certo, a sua Grande Rota, o novo génio
político de sua Raça e dá ao mundo nobre exemplo de unidade,
grandeza e prosperidade.
E também como no século XV, os
destinos desta «mui notável e nobre cidade», foram entregues a
clarividência dum homem que numa admirável lição de Portuguesismo,
deu a Aveiro entre as cidades notáveis, avantajado lugar.
Hoje, a vossa terra, merece mais do
que nunca, que vós, Aveirenses, a designeis pelo nome, tão gracioso
que lhe deu a Vossa Princesa: «Minha Lysboa, a Pequena...» |