ACTO III
Floresta. Assentos de pedra. A um
lado, uma cruzeta com a legenda «Jardim das Delícias».
Ao subir o pano, ouve-se ao longe um
coro de mulheres, que cantam as seguintes sextilhas da «Canção das
Salineiras».
«Eu sou filha dum pobre marnoto
e nasci cá nas praias do mar;
o meu berço era a proa dum barco
e dormia do norte ao soprar.
Ai que lindo o meu berço não era!
Que travêssa era a ria a saltar!
E cá vim trabalhar na marinha;
já seis anos compridos lá vão.
Há que tempos eu sou salineira,
ajudando meu pai, meu irmão!
O nordeste tornou-me trigueira;
calejou-me a canastra na mão.»
(Bernardo Xavier de Magalhães)
(Entram Zé e Pangloss)
ZÉ – Até que enfim, chegámos!
PANGLOSS – Perfeitamente. Que ser
isto?
ZÉ – Ecos do passado. São as
salineiras que se dirigem para as marinhas. Coisas, velharias que já
lá vão há muito e das quais tenho profundas saudades! (Acaba o
canto) Aqui é que V. Ex.ª fica bem ao corrente da vida
aveirense. (Olhando para fora) Espere! Temos obra.
Encaminha-se para aqui povoléu em grande matinada. (Entram
populares)
*
POPULARES (Cantando)
Vimos todos a correr,
pra notícias receber!
Toda a gente anda alarmada,
porque a Barra está fechada!
Ó seu Zé, diga-nos lá
porque a Ria assim está.
ZÉ – Sei lá! Mas, já que vocês pedem
com tanta insistência, vou dizê-lo em verso cantadinho.
Que querem, que querem que eu diga,
se a voz se me embaraça?
Não sei se prossiga;
não sei se tal faça...
A areia não deixa
a água correr.
Se a Barra se fecha,
que se lhe há-de fazer?
Navios não saem,
navios não entram;
os peixes não nascem,
os muros rebentam.
Não chegam marés
para o sal fazer;
após anos dez,
não há que comer!
/
33 /
É esta a desgraça
que aqui ninguém vê
Não sei que se faça,
| Bis
Não sei que se dê!
| "
Ora aqui têm os meus amigos o que
lhes posso dizer. Nestas coisas, nada sei dizer senão por música. (Para
Pangloss) Isto, Sr. Doutor, é a maior questão da cidade, mas
ninguém se mexe. (De repente) Olhem lá E porque é que vocês
não esperam pelas obras da Junta Autónoma?
UM POPULAR – Oh! Ela aí vem (Saem
ao seu encontro)
*
ZÉ – Eu não lhe disse? Isto promete,
Sr. Doutor.
PANGLOSS – Very interessante!
ZÉ – Ei-Ios! (Entram os Populares
com a Junta, atada de pés e mãos, com uma pasta)
*
ZÉ – Coitadinha Custa-lhe muito dar
um passo...
UM POPULAR – Viva a nossa salvadora!
TODOS – Viva
ZÉ (Para Pangloss) – Vem com
conferências e tudo!
POPULARES (Cantando)
Viva a nossa salvadora,
Tchim, tchim, ratatchim!
Comissão piramidal,
ratapum, pum, pum
É uma grave Senhora,
Tchim, tchim, ratatchim!
Outra não se encontra igual,
ratapum, pum, pum.
Pois que comissão assim,
Tchim, tchim, ratatchim!
Todos bons a um por um,
ratapum, pum, pum
Comissão assim,
tchim, tchim, ratatchim!
Só um, só um,
ratapum, pum, pum!
tchim, tchim, ratatchim,
ratapum, pum, pum!
JUNTA AUTÓNOMA (Cantando)
Obrigada, obrigadinha,
por tais manifestações!
Sou de vós tão amiguinha,
que comovo os corações.
A Junta, certos estai,
vosso ninho há-de velar;
será um segundo pai;
por vós há-de vigilar.
TODOS –
Comissão assim,
tchim, tchim, ratatchim!
Só um, só um,
ratapum, pum, pum!
Tchim, tchim, ratatchim,
ratapum, pum, pum
JUNTA (Declamando) É esta a
minha divisa, mas... (Cantando)
É esperar,
é descansar;
é, pois, deixar
tudo acabar!
É destruir,
é abolir,
é minar,
é arrasar.
TODOS –
Pica-pau,
Pica-pau,
Pica-pau,
pau, pau!
JUNTA –
Interesses
directos,
fica tudo
em projectos!
Dragagens,
sondagens,
são tudo
miragens
TODOS –
Pica-pau,
pica-pau,
pica-pau,
pau, pau
ZÉ – Olhe lá! Trouxe mapas,
projectos e discursos?
JUNTA – Ó menino, adeusinho! (Vai
a sair)
ZÉ – Adeus, ó post-scriptum!
UM POPULAR – Viva a nossa salvadora!
TODOS – Viva! (Saem)
/
34 /
*
ZÉ – Isto aqui é tudo assim: muito
palavreado, muitos discursos, muito barulho e... nada!
PANGLOSS – Zé não ser pessimista! Zé
seguir minha filosofia: tudo está bonne, tudo está good! Yes! (Entra
Sabe-Tudo)
*
ZÉ (Para ele) – Ouve lá, ó
petiz! Que andas por aqui a fazer? (mutismo) Tu não ouves?!
Como te chamas?
SABE-TUDO – Eu?! Sou o Sabe-Tudo,
natural da Lapónia e estudante do 3.º ano do Liceu de Vasco da Gama.
ZÉ – Sabe-Tudo?! Ora vamos lá a ver.
Quem é o melhor tanoeiro da cidade?
SABE-TUDO – O Anselmo das
Carmelitas.
ZÉ – Porquê?
SABE-TUDO – Não é ele que faz todas
as barriquinhas prós ovos-moles?
ZÉ – Tens razão. Olha! Quem é o
director da Companhia das Águas de Aveiro?
SABE-TUDO – O Capitão do Porto, o
profeta.
ZÉ (Para Pangloss) – Não sou
capaz de o apanhar em falso!
PANGLOSS – Ser muito sábia, yes!
SABE-TUDO – Quer mais alguma coisa?
ZÉ – Agora, vamos a um bocado de
corografia. O que vem a ser a Vila da Feira?
SABE-TUDO – A terra do patriotismo e
das fogaças!
ZÉ – E Arouca?
SABE-TUDO – A terra de Santa
Mafalda, filha que foi de D. Sancho I, e das morcelas, que você
nunca provou!
ZÉ – Não provei?! Isso é muito
adivinhar! Com que é que os de Oliveira de Azeméis enchem a boca?
SABE-TUDO – Com a La-Salette!
ZÉ – E os de Ovar?
SABE-TUDO – Com o Furadouro!
ZÉ – E os de Ílhavo?
SABE-TUDO – Com o Farol, com o
Bilhano, com o Vale do Vouga e com a lâmpada.
ZÉ – Sim, senhor! És um alho! (Pausa)
Dize-me lá: quem é que anda mais depressa, em Aveiro?
SABE-TUDO – Quem há-de ser? O
«Sempre a andar» !
ZÉ – E mais devagar?
SABE-TUDO – O inspector Cerqueira e
o Dr. Ferreira Neves!
ZÉ – Qual é o primeiro centenário a
realizar-se em Aveiro?
SABE-TUDO – O da travessia da
Mancha.
ZÉ – Do canal da Mancha? Como assim?
PANGLOSS – Cànal de Manche?
SABE-TUDO – Então, estão os Senhores
muito alheios às coisas de Aveiro! Celebra-se aqui a travessia da
Mancha, porque quem fez essa travessia foi o nosso Magalhães.
ZÉ – Apanhei-te! O Fernão de
Magalhães?!
SABE-TUDO – Ah, ah, ah! O Silvério.
Toda a gente sabe que foi o Silvério de Magalhães quem levou avante
esse estupendo feito! Assim como foi ele quem conseguiu, em Aveiro, a
maior compressão de despesas.
ZÉ – Sim?!
SABE-TUDO – É como canta! Consegue
fazer todas as despesas – cama, mesa, roupa lavada, engomada e
passada a ferro, charutos, Mário Duarte, etc. – com quinze tostões
diários. Fique sabendo! Quinze tostões!
ZÉ – Bem! Dou-me por vencido... Olha
lá! Quem é que mais cumprimentos distribui à roda do ano?
SABE-TUDO – Na roda do ano é difícil
fazer a conta; mas durante o dia é o Major Meneses. O que é preciso
é multiplicar por 2 os cumprimentos que ele faz.
ZÉ – Porquê?
SABE-TUDO – Porque ele costuma
sempre bisá-los.
ZÉ – Não há dúvida! És realmente o «Sabe-Tudo».
Aperta a mão aqui ao Dr. Pangloss.
SABE-TUDO – Estimei muito
conhecê-lo, colega!
PANGLOSS – Obrigado! Para onde ir
Sabe-Tudo?
SABE-TUDO – Eu?! Como hoje é dia de
festa, não fui às aulas e aqui estou (Cantando)
Toca a raspar,
toca a brincar!
Viva a folia,
Viva a magia,
que reinação,
que empalmação
em livros dar!
Só sei cabular!
À aula não vou;
madraço eu sou.
Verdade, não minto;
só digo o que sinto:
melhor é brincar
do que o estudar.
Viva a folia!
Viva a magia!
Se à aula vou
e se me chamou
o mestre mau,
fico de pau!
Boca fechada,
língua parada,
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35 /
não sei falar.
Só sei cabular!
E, no fim, que entalação!
Chegados ao S. João,
Zás... zero na caderneta
e em casa... cacholeta!
(Declamando) Saudinha,
saudinha! (Apontando para fora) Parece que se dirigem para
aqui as «Pupilas do Senhor Reitor». Ai, não são: é a Tricana Antiga
e a Tricana Moderna; antes e depois do chocolate da pretensão. (Sai.
Entram as anunciadas).
*
TRICANA ANTIGA (Cantando)
Chinela tão pequenina
no meu pé assenta bem!
Formosa como ninguém,
| Bis
o xaile me torna menina.
| "
Noutros tempos, fui assim,
esbelta, gentiI, airosa:
tinha o perfume da rosa,
| Bis
o encanto o Jasmim.
| "
(Sai)
ZÉ – Esta... a tricana dos bons
tempos!
TRICANA MODERNA (idem) –
Hoje, aspiro a ser senhora;
Hei-de sê-lo, tenho fé!
Foi-se a chinela do pé,
| Bis
foi-se o encanto embora!
| "
PANGLOSS – Porque nô voltar a
menine ao trajo antigo?
TRICANA ANTIGA – É o destino, meu
Senhor. É a moda. (Sai)
*
ZÉ – A moda! Há-de aqui vir essa
mafoma, o terror dos maridos, olé! (Olhando para fora) Olha
quem ele é!
PANGLOSS – Ser algum marote?
ZÉ – Nada! É o nosso amigo
comerciante. O outro era o Sabe-Tudo; este é o Sobe-Tudo.
SOBE-TUDO (Cantando)
Sou um hònesto
comerciante,
que a meu talante
os preços mudo.
Não há decretos,
nem bons projectos,
nem ratoeira
prà maroteira.
(Declamando) – De que valem
tribunais e denúncias, se...
A tudo fujo
com boa arte?
O mesmo sou
em toda a parte.
Sobe o pão,
sobe o café,
sobe o feijão,
olé, olé!
De preçorum
mercadorum
libera nós
e Dominé!
(Declamando) – Afinal de
contas, sô Zé, tudo quer ganhar. Ninguém se contenta com pouco.
Comerciantes somos nós todos, homem! Aumentam o ordenado ao
funcionalismo público? Que faz o comerciante? Aumenta o ordenado a
si próprio! Tudo se queixa, mas cada um procura vender aquilo que
tem, bem vendido. Todos sobem os preços, porque...
Nesta vida, tudo sobe;
quem não sobe é porque é tolo!
Só não sobe quem não pode,
ou então não tem miolo!
TODOS – Nesta vida, etc.
ZÉ – Muito bem! Muito bem! Então, a
como corre hoje o feijão?
SOBE-TUDO – A 6$00 o litro, o frade.
Mas amanhã, pela manhã, passa para 10$00; ao meio-dia, sobe para 30;
e à noite, não há, para aparecer no dia seguinte a 50! É o negócio.
E negócios... são negócios! Quem quer bons ofícios... aprende-os! (Sai)
*
ZÉ – Não há que fugir-lhe, Sr.
Doutor. (Olhando para fora) Aí temos agora um pescador, um
tipo eterno desta segunda Veneza. (Entram pescadores)
*
PESCADOR (Cantando) –
«Pescadores, Ó pescadores,
de olhos da cor do sargaço,
/
36 /
que havia de ser da gente,
pescadores, ó pescadores,
se não fosse o vosso braço?»
(Carlos Negrão)
(Declamando) – Bons dias!
ZÉ – Viva! Para onde é a ida?
PESCADOR – Vá perguntá-lo à Ria, à
Costa Nova, à Costa de S. Jacinto e à Torreira (Canta).
Pescadores, ó pescadores, etc.
(Declamando) – Temos nortada
rija. Vá de abalar! (Saem. A cena escurece. Ouve-se a introdução
do «Fado das Capas» da Academia de Aveiro. Entram estudantes)
*
ZÉ – É o Fado das Capas» da Academia
do Liceu. Letra e música são de antigos alunos. É a mocidade
buliçosa que se diverte e canta. Sê bem-vinda!
ESTUDANTE (Cantando) –
«O fado dos portugueses
quantas histórias nos narra!
É uma alma que chora
nas cordas duma guitarra!
Que doces são as tentações
CORO – As tentações..,
ESTUDANTE – Dum coração que sabe
amar!
CORO – Que sabe amar!
ESTUDANTE – Ao ouvir-se, no além da
noite,
triste, uma guitarra a
chorar!
CORO – Ao ouvir-se, no além da
noite, etc.
ESTUDANTE – As capas dos estudantes
teceu-as a mão de Deus,
para que o amor das mulheres,
ai, pudesse entrar nos céus.
CORO – Que doces são as tentações,
etc,
ESTUDANTE – Vamos embora depressa
– capas, voai, oh, que dor! –
pelas nossas namoradas
pedi a Nosso Senhor!
CORO – Que doces são, etc.
(Para caso de bis)
ESTUDANTE – As nossas capas,
senhoras,
são orações de tristeza,
negras, dizendo o destino
desta terra portuguesa.
CORO – Que doces são, etc.
ESTUDANTE – Vai subindo para Deus
Portugal, terra bizarra,
nas dobras de cada capa,
nas cordas duma guitarra.
CORO – Que doces são, etc.
(Saem devagar, ao som da
introdução do Fado. A luz reaparece a pouco e pouco)
*
ZÉ – É esta, Sr. Dr., a canção mais
querida do povo português. Quando estava nas trincheiras e ouvia o
nosso fado, sabe lá o que eu sentia!
PANGLOSS – Ser muito bonita; mas mim
ficar muito trista, muito pensativa, quando ouço o fado. (Pausa)
Zé não se esquecer que mim querer ver monumentas da cidade. (Levanta-se)
ZÉ – Monumentos... Havia-os, mas...
Foram-se, desapareceram, sumiram-se. Já não existem. Requiescant in
pace.
PANGLOSS – Nô perceber! Algum
terramota?
ZÉ – Quase. Eu lhe conto. Os
monumentos foram-se, porque o Cabral, aviador, levou-os para S.
Jacinto! Não se espante, meu Senhor. Aqui há tempos, ao passar por
sobre o Largo dos Pacatos, ia arrebatando a torre da cadeia; no dia
seguinte, levou quase todo o Museu Regional, com director e tudo;
passado tempo, e sem que ninguém o esperasse, bifa o zimbório das
águas do jardim; uma manhã, que era de nevoeiro, mas não
excessivamente cerrado, raptou o Governo Civil! Outro dia, o
Liceu.., escapou por acaso! E, se não amarrassem o José Estêvão, já
tinha andado! É um rapa!
PANGLOSS – Então, nô haver mais
nada!
ZÉ – Não está por aí mais ninguém. (Entra
a Moda)
*
MODA – Estou eu!
PANGLOSS – Quem ser a menina?
MODA – Vai ouvir! (Canta)
Eu sou a Moda, a caprichosa Moda,
que o mundo embrulha num chapéu
francês;
faço as cabeças desandar à roda,
mudando sempre ao começar o mês.
Ora me encaixo num vestido estreito,
ora me envolvo em peliças caras;
ora com folhos uma saia enfeito,
ora me adorno de raposas caras.
/
37 /
Alteio os ombros, endireito as
pernas,
branqueio o rosto com vária loção;
invento sempre confecções modernas,
postiços, tranças, saias de balão.
Trago ao pescoço bicharada fera;
ponho à cabeça trapalhadas mil:
gaivotas, ratos, couves, folhas de
hera;
dou à cintura forma de funil.
O mundo vário minha bolha engoda;
sou dos maridos a mortal turquês.
Eu sou a Moda, a caprichosa Moda,
que o mundo embrulha num chapéu
francês.
ZÉ – Sim, sim, mas nós não
precisamos de ti.
MODA – Quanto te enganas! Todos se
curvam ao meu poder e à minha férrea vontade. Tudo! Pobres e ricos.
E, se não, ouve. Hoje fala-se em calão de alfarja? É a moda. Há um
descimento de cintas nas meninas e senhoras?
ZÉ – É a moda!
MODA – Os menicaques e as menicacas
tratam-se por você?
ZÉ – É a moda!
MODA – Estão os móveis tortos, em
casa, a estorvar os compartimentos, porque é moda. Agora, na rua,
vais ouvir. (Canta)
Já dizem todos, todos,
todos dizem à porfia...
ZÉ e MODA – Já dizem todos, todos,
todos dizem à porfia...
MODA – Olha a menina, menina,
que tem a sua mania.
ZÉ e MODA – Olha a menina, etc.
CORO – Anda o luar
lá pelos céus,
a namorar
| Bis
os olhos teus!
|
"
MODA – Olho assim e assim!
Assim e assim eu sorrio.
ZÉ (exagerando) – Ba olha
assim, assim;
Assim, assim ela sorri!
MODA – Assim, assim eu ando,
Assim, assim me desvio.
ZÉ – Assim, assim ela anda;
assim, assim se desvia!
MODA – Assim, assim eu abano;
assim, assim eu cortejo.
ZÉ – Assim, assim se abana;
assim, assim corteja!
MODA – Assim, assim eu valso;
assim, assim eu solfejo.
ZÉ – Assim, assim ela valsa;
assim e assim solfeja.
MODA – Lábios e faces rosadas...
ZÉ – Com carmim!
| Bis
MODA – Dentes formosos põe o
dentista...
ZÉ – de marfim!
| Bis
MODA – Erguem ancas duas arcadas...
ZÉ – De balão!
| Bis
MODA – O seio alteia-se com
almofadas...
ZÉ – De algodão!
CORO – Anda o luar..., etc.
ZÉ – Tens razão, ó moda! Tu
submetes tudo ao teu império. A todos, menos aqui ao Dr. Pangloss e
ao Marques Gomes.
MODA – Pois, pois, pois, seu Zé! (Sai)
*
PANGLOSS – Yes! Mim nô gostar de
modes; mas a mode ser uma das coisas boas do mundo. Sem mode, não
haver mulheres!
ZÉ – Ah! O Dr. Pangloss também gosta
de mulheres! (Aparte) Então não querem lá ver? Ai, o grande
maroto! (Alto) Agora, vai ver o povo, o genuíno, o autêntico,
nos seus costumes, nas tradições da sua terra. Veja. Dirigem-se para
a romaria da Senhora das Dores. (Entram homens empoeirados,
casacos ao ombro, e guarda-sóis; mulheres muito bem preparadas,
chapelinhos pequenos. Trazem bombo, violas, ferrinhos e harmónio.
Cantam).
UMA RAPARIGA –
Tudo o que há triste no mundo
tomara que fosse meu,
para ver se tudo junto
era mais triste do que eu.
POPULAR –
Não sei que quer a desgraça,
que atrás de mim corre tanto;
hei-de passar e mostrar-lhe
que de vê-la não me espanto!
/
38 /
UMA RAPARIGA –
Amor com amor se paga,
já que outra paga não tem;
quem com amor não paga
não diga que paga bem!
POPULAR –
Amor com amor se paga;
nunca vi coisa tão justa.
Paga-me contigo mesmo,
meu amor, se te não custa.
VÁRIAS VOZES – Eh! Eh! Eh! Eh!,
rapaziada! Vamos lá! Eh! Eh! Uh! (Saem)
*
ZÉ – É este o povo, na sua
simplicidade e poesia! Nas cidades, já não há tradições, já não há
povo. A cidade abastardou-se! Em tudo! Cantam-se tux-stops e
dançam-se foxitrotes, e o Diabo que os carregue! Há só
nobrezia. (Pausa) mas fez bem, Dr. Pangloss, em assentar
arraiais em Aveiro. Vamos a ver se V. Ex.ª, com a sua benéfica
filosofia, pode salvar esta linda terra. Panglossize Aveiro, Senhor!
Tire-lhe esta descrença, este pessimismo que a tem acabrunhado, e
acabe com todos os que, nada fazendo, impedem e criticam o que os
outros fazem. E ela progredirá, e ela marchará, e ela tornar-se-á
mais bela e cada vez mais atraente, reflectindo, no amplo espelho da
sua Ria, a pureza dos nossos costumes e a candidez das nossas almas.
(Despoja-se do gabão) Eu não sou o Zé, criado da hospedaria.
Chamo-me Progresso. O meu lema é: Por Aveiro! Viva Aveiro!
PANGLOSS – Viva! (Abraça Zé. Sobe
o pano do fundo e aparecem os Concelhos, os Populares, Tainha, etc.
Zé fica na parte superior)
Apoteose
CONCELHOS FEMININOS (Cantando)
–
Dezassete manos são,
de todos bem conhecidos!
HOMENS – Bem conhecidos!
C. FEMININOS – Não podem viver
unidos;
andam sempre ao repelão!
HOMENS – Ao repelão!
C. FEMININOS – Mas o concelho de
Aveiro,
por mais lindo, é o primeiro!
HOMENS – É o primeiro!
C. FEMININOS – Aveiro, linda Veneza,
terra santa portuguesa!
HOMENS – Portuguesa!
TODOS – Veneza de Portugal,
terra fecunda de sal,
poentes de oiro e de luz,
o teu nome até seduz!
Amemos, pois, com fervor,
| Bis
Aveiro, a mais linda flor
| “
Cai o pano
FIM DA PEÇA DE TEATRO
Dois sonetos do então professor
do Liceu de Aveiro – P.e
MANUEL RODRIGUES VIEIRA.
I
«Na expectativa benévola» -.
Ensaio Geral. (Noite de 12 de Fevereiro de 1924)
«A peça... tem corrido menos mal,
sem encalhe, incerteza ou aleijão,
os rapazes cumprindo, no
geral,
as meninas fazendo um figurão!
Se tudo segue assim até final,
há-de ser espantoso o alegrão!
Queira Deus... não desande em
vendaval
de lançar cabritinhos pelo chão!
Vejam, pois, se se portam à altura,
se metem chave de ouro no soneto,
ou se encravam, no resto, a
fechadura.
Se a peça seu remate tem correcto,
doce fino e rica molhadura,
em nome dos Autores eu vos prometo».
II
«Prólogo (um Velho) da
Revista»
(Recitado, na noite da 2.ª
representação – dia 16 de Fevereiro – no intervalo do 2.º para o 3.º
acto, pelo estudante António Sacchetti)
«A graça portuguesa, a verdadeira,
que dos mestres tem sido celebrada,
é doce e natural, não é grosseira:
belisca, mas não fere mesmo nada.
Do bom-senso risonha companheira
desliza com brandura, não enfada.
É muito salutar e é ordeira
– diz a gente que se preza de
educada. –
À Revista... serviu de inspiração
«ridendo» – diz a regra, a
advertência –
depressa vai até ao coração,
tomando lá assento e permanência.
Tal foi, tal é o fim desta lição.
– Se alguém o não entenda,
paciência.»
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