Mais uma vez homens curiosos ou
preocupados com os problemas económicos e sociais do mundo rural se
reúnem para ouvir e debater temas da maior importância e acuidade,
que visam a sua promoção profissional, indispensável à maior
valorização e projecção na agricultura. E, no enquadramento do
programa traçado, surge agora um sempre aliciante, porque contém em
si um espírito vivo, que é fonte dinamizadora de pensamentos e de
vontades: o Cooperativismo.
Há palavras que, por pouco
melodiosas ou por circunstâncias que se desconhecem mas que
inexplicavelmente inspiram dúvida, são marcadas logo à nascença e
não conseguem livrar-se, pelo tempo fora, do ferrete que as macula e
as tornam menos simpáticas, quando não mesmo repulsivas; e outras
há, pelo contrário, que, também sem explicação, depressa encontram
aceitação geral, talvez por infundirem simpatia, e são mesmo capazes
de se constituírem em símbolo e arrastarem multidões, mesmo
inconscientemente.
A esta, do Cooperativismo, supomos
que ninguém lhe nega a magia de ter conquistado e continuar a
conquistar o mundo, em todas as suas formas de desenvolvimento. Rios
de tinta têm corrido a escrever-se sobre ele, desde os primeiros
pensadores que se preocuparam com a sua doutrina – Robert Owen e
Charles Fourier –, passando pelas experiências iniciais, como a dos
Pioneiros do Rocchdale, até às múltiplas e variadas fórmulas criadas
num afã contínuo de adaptar o fenómeno cooperativo às exigências
impostas pelas circunstâncias nos sectores da vida económica em que
as cooperativas haveriam de nascer e proliferar e desenvolver-se.
«Fenómeno cooperativo», «Movimento
cooperativo», «Doutrina Cooperativa», «Teoria económica de
cooperação» ou ainda «Cooperação como Ciência Económica» – são
expressões genéricas que se objectivam na base de um princípio de
organização e de um espírito próprio subjacente às suas diversas
manifestações.
Como nasceu? Como foi aceite? Como
se desenvolveu?
A resposta à primeira pergunta é
fácil; encontramo-la na sua história, que é recente. Na verdade, a
cooperação surge integrada no movimento de reacção contra os efeitos
do liberalismo económico que se esboçou no século XVII e que teve a
sua expansão e consolidação nos séculos XVIII e XIX. A liberdade
consentida às forças económicas originou, ao contrário do que se
supunha ou previa, um estado de desequilíbrio, que não permitiu
benefícios em proporções uniformes aos participantes na produção e
no crescimento.
O Cooperativismo nasce então como
hipótese de solução para as deficiências do sistema.
Mas como foi aceite? Como se
desenvolveu?
Teria sido por então negar a empresa
e a economia capitalista liberal, e verificar-se que, com o recurso
à associação, se permitia ao homem subsistir, escapando à miséria?
Teria sido por se apresentar como
arma disponível aos indivíduos economicamente débeis, que procuravam
elevar-se na sua condição e desejavam fugir à dependência e
subordinação económica?
Teria sido por representar um
princípio de organização económica iniciado a nível da produção e
apoiando-se na iniciativa e colaboração activa dos próprios
interessados, que se dispunham e dispõem a utilizar os meios em
conjunto para satisfazer colectivamente as necessidades comuns?
Certamente que tudo concorreu para
que o cooperativismo tivesse merecido a simpatia e fosse aceite
pelas massas populacionais em ritmo espantosamente crescente, não
sendo alheio a isso a chama da esperança que dele emana e que tão
preciosa é a insatisfação humana, alimentada pelos frutos de
exemplos, conhecidos aqui e além, e que beberam a sua doutrina.
/ 64 /
A terapêutica generaliza-se. Com
efeito, a partir dos fins do século XIX, a cooperação invade os
domínios rurais, como meio de elevar uma lavoura desprotegida e
pobre, ao mesmo tempo que também são pequenos comerciantes que a ela
recorrem; a França é invadida, depois da primeira Grande Guerra,
pelas cooperativas de habitação, como solução de tantos que não
podiam suportar a subida das rendas ou construir casa própria; as
cooperativas de consumo generalizaram-se velozmente entre os
funcionários de magros proventos, chefes de família com pesados
encargos, reformados e pensionistas do Estado; e os meios
piscatórios também lhe abrem os braços. Neste particular aspecto,
haverá que referir a existência curiosa em Portugal dos chamados
compromissos marítimos, regulamentados por D. Manuel I, de conteúdo
cooperativo ligado à produção, no domínio das armações de pesca,
sobretudo no Algarve.
E, nos tempos modernos, se o
desenvolvimento do cooperativismo se pode considerar como índice da
evolução dos povos, na medida em que atinge a sua maior expressão
nos mais adiantados, também nos países subdesenvolvidos a sua
praticabilidade é já vista como solução para o desenvolvimento das
suas economias, de forma a poderem fugir à dependência atrofiadora
exercida pela acção económica e política de países mais fortes.
É propriamente em Portugal, depois
de um longo período de condicionalismos pouco estimuladores e de
iniciativas dispersas e tímidas, podemos e devemos até reconhecer
ser hoje inegável a sua expansão.
Contudo, poderá ele, entre nós,
considerar-se garantidamente consolidado?
Cremos bem que sim, na medida em que
a sua projecção é tal que constitui já uma força indestrutível e
ocupa uma posição que se nos afigura irreversível.
Na verdade, se, por um lado, os
tempos que vivemos são outros diferentes daqueles em que se selavam
cooperativas de índole económica; se assistia impotente à oposição
arbitrária movida abertamente contra elas, até mesmo por alguns
sectores oficiais; e se se procurava inclusivamente eliminar a acção
de uns tantos que teimosamente e com coragem por elas lutaram e se
sacrificaram, sem medo de ameaças e de manobras concretizadas na
transposição do tema para o campo político, a que não faltaria o
estigma de comunista com que alguns foram apelidados; também, por
seu turno, se pensa que a maior consciencialização que as camadas
populacionais economicamente débeis vão tendo do que são e do que
valem quando actuam ou se apresentam em grupo, alimentada ou
revigorada pelo substrato da instrução, hoje em ritmo acelerado,
permitirá ao homem português, através da via cooperativa, em franco
desenvolvimento, maiores êxitos no confronto com o poder económico e
estádios sociais mais equilibrados e de mais justa repartição.
Todavia, nem tudo correrá de feição
ao movimento cooperativo português: algumas condicionantes hoje
existem que podem limitar ou frenar o seu desenvolvimento,
constituindo até causa de fracasso, num ou noutro caso. Vejamos
algumas, com especial visualização, evidentemente, no sector rural:
1 – Em primeiro lugar, entendemos
que na base do cooperativismo está o cooperador, e com ele, o
espírito, intenções, vontade e consciência com que adere à
associação. O Cooperativismo, se é doutrina, é também uma vivência,
porque obriga a uma conduta especial do indivíduo em grupo: é livre
e abraça princípios democráticos, que pressupõe, todavia, a
obrigatoriedade de limitar a sua liberdade por respeito indiscutível
da liberdade dos outros, e, se é naturalmente cioso dos seus
direitos individuais, não deve fugir nem discute os direitos da
colectividade, de que dimanam deveres fundamentais para a defesa dos
interesses comuns.
Até que ponto teremos nós atingido
este estádio? Sem querermos considerar mesmo a fase de perfeição
absoluta, que seria utópico em termos humanos, em que medida o nível
médio do cooperador português se situa? Consentirá uma evolução
franca do Cooperativismo, ou antes a limita ou mesmo estrangula?
Supomos que não se ofenderão
connosco se aqui afirmarmos que, em Portugal, na generalidade, temos
Cooperativas – e já muitas – mas não temos cooperadores, pelo menos
em número que seja significativo e capaz de imprimir carácter ao
movimento. Na maior parte dos casos o agricultor adere ao
cooperativismo sem consciência da sua doutrina e da força que
possibilita pela unidade de acção, apoiada no grupo. Em vez de
procurar reforçar a unidade, como seu elemento operoso, trabalhando
no seu interior para a projectar no exterior com mais valimento, é
frequente vê-lo antes numa acção externa, como se fosse alheio ao
grupo, minando e promovendo a desagregação do edifício, ao qual
pertence. Parece paradoxo, mas é verdade incontestável.
Sendo assim, também se poderá
perguntar: se não temos cooperadores, como é possível termos
Cooperativas?
A resposta está no critério de
actuação usado. Se tivéssemos que esperar pela existência de
cooperadores, não sabemos se alguma vez teríamos Cooperativas, e, se
as viéssemos a ter, o atraso seria seguramente tão grande que nos
arriscaríamos a uma posição altamente comprometedora, perante uma
competição acesa que já nem é europeia, mas mundial, onde
/ 65 /
os alicerces rurais se fundamentam e têm como denominador comum, o
cooperativismo, qualquer que seja o regime político dos países. Por
tal razão, parece ter-se preferido a adopção do critério da
constituição das cooperativas, mesmo sem cooperadores, por se pensar
poder dar resultados mais rápidos e também porque seriam as próprias
Cooperativas existentes a fazerem escola e a ajudarem no progresso
do movimento.
De qualquer modo, não pode
descurar-se a preparação do cooperador. Muito embora pensemos que há
defeitos no indivíduo que, talvez por razões genéticas, não mudam,
por mais aprimorada que tenha sido a sua educação e a sua formação
cultural (sobejam exemplos desses), seria estultícia não
considerarmos a educação como indispensável para levarmos o homem à
condição de vivente consciente de uma sociedade cooperativa. Se
ainda assim não conseguimos deixar de ter água no leite ou evitar a
entrada só de uvas fracas ou podres nas Adegas Cooperativas, porque
as boas ficaram em casa de cada um, seguramente que haverá muito
menos água no leite e melhores vinhos naquelas.
2 – Se permitem a nossa modesta
opinião, o cooperativismo português, se de uma maneira geral não o
considerarmos, para não ferir susceptibilidades, na fase incipiente,
estará seguramente na de arranque, que, em alguns sectores, poderá
ser tomado já como expressivo. De qualquer forma, porém, talvez
pouco interesse tenha demorarmo-nos na apreciação do seu verdadeiro
estádio, perante a certeza que temos de que atravessa um período de
maior ou menor perturbação, certamente produto de uma crise de
crescimento que, à parte os aspectos negativistas que a informa, não
deixa de ser útil pela purificação de ideias que proporciona e pela
revisão de métodos de trabalho que obriga.
E uma das características
predominantes de que ainda se não viu livre é o amadorismo de que
está impregnado. Sem querer ferir o espírito de carolice de uns
tantos a quem se ficou a dever, pode dizer-se, a sua existência, e a
quem não nos cansamos de render as nossas efusivas e justas
homenagens de muito respeito e admiração, o que é certo é que o
movimento cooperativo, depois de ultrapassar o estádio inicial em
que se poderia justificar o regime de «meia bola e força», deveria
consciencializar-se no sentido de se estruturar em moldes que
permitissem garantia no embate competitivo que o aguardava e que já
se sabia ser cada vez mais duro. Por amor da verdade, temos que
afirmar que alguns sectores houve que assim fizeram, constituindo
hoje empresas cooperativas válidas, com capacidade para exercerem a
sua nobre e útil missão; mas também manda o mesmo amor pela verdade
dizer que muitos outros houve que se quedaram num passivismo
comprometedor, sem vida prestimosa ou com uma actividade precária
que, de índole cooperativa, só tem o nome.
Ora, não haverá quem friamente não
reconheça que este condicionalismo é defeituoso, diremos mesmo que é
pernicioso, porque trava seriamente o desenvolvimento do fenómeno
cooperativo no país.
Aliás, é especialmente devido a este
condicionalismo e à impreparação de cooperadores, atrás, focada, que
se justifica, quanto a nós em larguíssima medida, toda a acção que o
Estado exerceu e exerce junto das Cooperativas.
Referimo-nos especialmente ao caso
rural, porque é nele que trabalhamos e, por isso, mais conhecemos. É
certo que a sua acção não é muitas vezes bem compreendida por uns
tantos que visualizam o problema à luz de uma capacidade individual,
esquecendo o contexto geral. E, caso curioso, não raro se verifica o
paradoxo de indivíduos que se apelidam de socialistas, pouco
simpatizantes ou mesmo aguerridos contra a intervenção do Estado,
quando todos sabem que, dentro do socialismo, tudo se desbobina
segundo a sua orientação e intervenção directa; e também outros
existem que conhecemos beberem na corrente capitalista ou
neo-capitalista, que também desejam o afastamento do Estado do
movimento cooperativo, talvez porque, sem o seu apoio, vêem nele
presa mais fácil. No fundo, porém, julgamos perceber que toda a
acção do Estado, como elemento coordenador da vida da Nação, quando
apoio e incentiva o movimento cooperativo, justifica-se por ver nele
uma arma poderosa de promoção e de equilíbrio económico e social,
capaz de elevar o sector primário para níveis mais aproximados dos
existentes nos outros sectores.
De qualquer maneira, todavia,
julgamos poder afirmar que se não fosse a acção coordenadora,
estimuladora e de apoio do Estado, o movimento cooperativo não tinha
a projecção e mesmo a personalidade que hoje tem e não sabemos mesmo
se teria valor que merecesse ser considerado como organização útil
da Lavoura no conjunto económico do país.
E não é que ele tenha sido
paternalista, naquele conceito de auto-suficiência do patriarca, do
chefe de família, que reivindica todos os riscos e
responsabilidades, mantendo nas suas mãos as rédeas da Direcção.
Nada disso existe ou já alguma vez existiu, se retirarmos,
evidentemente, aqueles pouquíssimos casos em que a administração das
cooperativas esteve ou está sob tutela, em regime de comissões
administrativas.
Parece-nos antes que a designação de
paternalista com que o vemos algumas vezes apelidado, deriva antes
da tarefa frequente, tantas vezes ingrata, a que o movimento
cooperativo o chama, de derimir questões
/ 66 /
entre os seus elementos. Como em todas as instituições humanas, onde
o homem livre dificilmente encontra a fórmula de equilíbrio que
advém da justa noção dos direitos e dos deveres, o cooperativismo
contém em si o gérmen da desagregação, sempre pronto a contaminar o
meio, se não fora a aplicação permanente de antídotos, a que o
Estado é chamado como recurso.
Mas esta sua acção poderá ser
considerada, verdadeiramente, de paternalista? Não será antes de
moderadora ou não se assemelhará mais à de «bombeiro» que
voluntariamente acorre a apagar incêndios que a incompreensão dos
homens continuamente ateia?
Para além disso, porém, a sua missão
tem sido a de apoiar, incentivar, mas também coordenar as acções do
movimento (que nem sempre é fácil), já que ele próprio nunca o fez e
é indispensável, e, para isso, promove cursos para instrução de
dirigentes e preparação de cooperadores, concede estímulos
traduzidos em legislação favorável e em concessão de subsídios e de
financiamentos em condições vantajosas e assiste desinteressadamente
quando é solicitado. E quando intervém mais profundamente na
averiguação da rentabilidade dos investimentos, não poderá, em bom
rigor, confundir-se essa actuação com outra ideia que não seja a de
fiscalização, que se impõe naturalmente para salvaguarda dos
dinheiros concedidos e do bem da comunidade e do movimento. E será
especulativo qualificá-Ia desprimorosamente com adjectivos mal
intencionados ou desajustados, porque nunca se processa de forma a
ferir a autonomia administrativa das cooperativas.
3 – Todavia, enquanto aquele
condicionalismo defeituoso e pernicioso, que atrás se referiu,
continuar a existir, tudo é possível acontecer: coisas boas e coisas
más. As boas são naturalmente bem vindas; o pior são as más. São
pretensões de cooperativas sem qualquer hipótese de vida económica,
mas que servem para fazer barulho; é a falta de compreensão e
consequente dissociação e conflitos entre as direcções e os membros
das cooperativas; é o alheamento dos associados em relação ao
funcionamento da empresa cooperativa, de que deriva, tantas vezes, a
falta de representatividade nas Assembleias Gerais; é a concentração
da decisão pelo esquecimento da massa associativa, aumentando-se
assim a distância entre o cooperador e o órgão de decisão, com as
consequentes dificuldades em manter a harmonia entre as exigências
do crescimento da empresa e o seu conteúdo humano; é a dificuldade,
nas Uniões de Cooperativas, em ter pessoal qualificado, que a sua
gestão impõe, por se regatear a concessão de vencimentos altos, que
a sua competência exige; é mesmo a dificuldade em se conseguirem
funcionários qualificados que se disponham a aceitar a falta de
compreensão e as contingências dos cooperadores mal esclarecidos e
que, com e sem razão, tudo discutem, etc., etc.
Muitos mais exemplos podíamos citar,
ditados pela experiência do dia-a-dia. Mas se julgam não serem
suficientes, podemos ainda citar mais um caso, que, aliás, reputamos
da maior importância entre os que travam ou prejudicam a evolução de
fenómeno cooperativo: é o aparecimento, de quando em vez, de pessoas
inexperientes, mas que declaram tudo saber e querem passar por
génios e inconformistas, para fugir à rotina e servirem talvez de
paradigmas. É preciso muito cuidado com eles. Regra geral, porque
são narcisados e não sabem ouvir, quando actuam (e não lhes falta
coragem para isso), sai «bronca» quase sempre. E o pior é que
também, a maior parte das vezes, não reconhecem o erro, e logo se
aprontam para cair e fazer cair noutra os que dizem defender.
Advogam pela palavra uma doutrina, que é parente directa da
democracia, mas na prática actuam com um individualismo feroz, com
nítido desprezo pela opinião alheia dos seus comparsas.
4 – À medida que o cooperativismo
evolui, a partir da evolução das suas células, vai sendo cada vez
mais exigente a qualificação dos dirigentes. E no nosso mundo rural,
com uma capacidade de promoção tão relativa, tão falha de sedução
que tem levado à fuga maciça das suas gentes, onde se incluem as
mais válidas e que mais poderiam lutar pelo sector primário, é cada
vez mais difícil conseguirem-se individualidades que sirvam funções
directivas e queiram despir-se de individualismos para abraçar a
difícil tarefa de trabalhar pelo bem comum, que bem pode não
coincidir com o deles em especial.
5 – Regra geral é notória a falta de
acutilância da empresa cooperativa, na parte final da
comercialização, em confronto com a empresa privada. Não é mal só
nosso, porque é geral e atinge os países mais evoluídos, como na
própria América do Norte.
É defeito sério deste, no movimento
cooperativo, porque o afecta no cerne. Precisa de ser atacado de
frente. Talvez por sua causa, surgiu recentemente legislação
adequada que permite, dentro das condições que salvaguardam a
posição das cooperativas, a formação de sociedades entre elas e as
empresas privadas.
Cooperativismo agrícola português:
apesar das deficiências que o informa, não há dúvida que é já uma
força com que se conta na panorâmica económica e social do mundo
rural, que vai ganhando personalidade, projecção e dimensão
indomáveis, como se fora bola de neve a rolar pela encosta. Aliás,
as suas próprias deficiências não serão sinal evidente de vida?
/ 67 /
É, sem dúvida, vida que o homem lhe
empresta tal como é, na sua permanente busca de resposta à sua
insatisfação.
*
Após estas considerações genéricas,
mas que julgamos pertinentes, sobre cooperativismo, damos a seguir
alguns elementos sobre o cooperativismo leiteiro, para dele tomarmos
conhecimento da sua amplitude. E se, na sua análise, houver especial
visualização para Entre Douro e Minho e Beira Litoral, perdoem-nos a
falta, que não é sectarismo. Apenas deriva de ser ali que sempre
trabalhámos.
I.
Antes de mais, parece-nos útil dar uma ideia do valor relativo dos
Distritos do continente, quanto à produção de leite. É o seguinte,
expresso em percentagens:
01 – Aveiro ––––– 28,6%
02 – Lisboa
––––– 19,9%
03 – Coimbra
–––– 12,8%
04 – Porto
–––– 11,0%
05 – Braga
–––– 7,1%
06 – Viana do Castelo
–––– 5,2 %
07 – Évora
–––– 4,8%
08 – Portalegre
–––– 3,0%
09 – Santarém
–––– 2,0 %
10 – Leiria 1,8%
11 – Setúbal
–––– 1,7 %
12 – Beja
–––– 1,6%
E no que respeita aos Distritos da
Beira Litoral e de Entre Douro e Minho, verifica-se o seguinte
comportamento, em percentagem:
Beira Litoral
Aveiro
––––– 69 %
Coimbra
–––31%
Entre Douro e Minho
Porto
––––––––––––– 47%
Braga
––––––––––––– 30%
Viana do Castelo
–––– 23 %
Conjunto da Beira Litoral e Entre
Douro e Minho
Aveiro
–––––––––––– 45%
Coimbra
–––––––––– 20%
Porto
––––––––––––– 7%
Braga
–––––––––––– 10%
Viana do Castelo
–––– 8 %
II.
Há, no continente, 4 Uniões de Cooperativas, que agrupam cerca de 35
cooperativas, com alvará instituído, das quais 8 ainda não entraram
em funcionamento.
Reportando-nos ao Noroeste (Beira
Litoral e Entre Douro e Minho) o cooperativismo leiteiro pode
esquematicamente ser assim traduzido: 2 Uniões com 13 cooperativas
activas agregadas, da forma que se segue, a que se junta a data da
alvará:
|
|
Data do alvará |
a) União das
Cooperativas dos Produtores de Leite de Entre Douro e
Minho |
30/ 06/1949 |
– S. Romão do Neiva |
10/09/1948 |
– Ribeira do Neiva |
07/12/1931 |
– Esposende |
19/07/1952 |
– Braga |
17/11/1955 |
– Póvoa de Varzim |
01/10/1948 |
– Vila do Conde |
27/10/1948 |
– Paços de Ferreira, Lousada,
Paredes |
04/09/1950 |
– Vila da Feira |
18/11/1948 |
|
|
|
|
Data do alvará |
b) União de Cooperativas de
Produtores de Leite de Entre Douro e
Mondego |
15/ 6/962 |
– Vale do Vouga |
10/02/1949 |
– Sanfins |
27/01/1937 |
– Arouca |
17/04/1944 |
–
Oliveira de Azeméis e Ovar |
14/02/1944 |
– Aveiro, Ílhavo e Vagos |
21/01/1949 |
|
|
Repare-se que todas estas
cooperativas, com excepção das de Sanfins e Vale do Vouga, cujo
funcionamento, embora irregular e descoordenado, datava já do ano de
1924, e ainda a de Ribeira do Neiva, foram, todas elas, fomentadas e
apoiadas pelos Grémios da Lavoura, dentro, aliás, do espírito da lei
que os criou (lei n.º 1957 e Decreto-Lei n.º 294941).
Bons tempos esses em que os mais
responsáveis da lavoura viviam e agiam com inteiro espírito de
unidade e fraternidade, dando-se as mãos na luta para a
concretização de objectivos com vista a uma maior dignificação e
valorização do sector primário. As dificuldades de proselitismo e do
trabalho no campo do cooperativismo, nos anos de quarenta e até de
cinquenta, eram tais e tantos, que nos atrevemos a afirmar que todo
esse fomento só pôde ser feito, porque havia pleno entendimento nos
homens da lavoura, e não lhes faltava espírito de cruzada e tantas
vezes de emulação. As jornadas cerealíferas e leiteiras, realizadas
/ 68 /
em 1963, foram bem testemunho e espelho desta ambiência.
Quão diferente é hoje o
comportamento dos seus responsáveis, que o são ou são tidos com tal?
Lamentavelmente é cada vez mais fundo e largo o fosso que desfez a
unidade da lavoura, fosso que nasceu, não por diversidade de
doutrina, mas apenas por divergências entre os homens que dirigem o
cooperativismo agrícola,que são poucos, e os que trilham a via
cooperativa como meio de defesa económica. E todos julgam estarem na
posse da verdade e a trabalhar em proveito da lavoura, quando é
certo que esta é mártir e vítima desta luta intestina que prevalece
não por ela, mas para defesa de falsos prestígios e outros
interesses.
São assim os homens... – É assim o
mundo...
Apesar de tudo, aquelas duas Uniões
e as suas cooperativas, que tiveram um início muito difícil e muito
precário, mercê de circunstâncias várias próprias da época em que
nasceram e começaram a viver, onde se inclui o confronto terrível
com a indústria privada, que tudo fez para as aniquilar, começaram a
projectar-se a partir de legislação adequada que as apoiou
(Decretos-lei n.os 39178 e 47710, respectivamente de
20-4-1953 e de 18-5-1967). E hoje, embora em fase ainda modesta no
enquadramento da economia leiteira do país, são unidades, todavia,
com preparação suficiente para darem o salto e assumirem posição
efectivamente relevante no sector rural que dominam.
III.
Para se fazer uma ideia do salto dado pelo cooperativismo leiteiro
no noroeste do continente, bastará referir que o movimento de leite
recebido e respectivo valor, observado em 1948 e 1971:
|
Anos |
Entre Douro e Minho |
Beira Litoral |
Litros |
Valor à produção |
Litros |
Valor à produção |
1948 |
360 000 |
684 000$00 |
1 211 500 |
2 278 500$00 |
1971 |
25 650 000 |
71 820 000$00 |
16 558 000 |
48 019 000$00 |
|
|
Actualmente, a relevância das
cooperativas, na recolha do leite, é definida da seguinte forma: em
relação às áreas onde actuam, é de 98 % na Beira litoral e de 76 %
em Entre Douro e Minho; e em relação à área total de cada uma das
Federações, aquela percentagem é de cerca de 20 % na primeira e
aproximadamente 43 % na segunda.
IV.
Outros elementos curiosos e dignos de interesse, de carácter geral,
são os de natureza económica, que nos dão a conhecer a importância
da Beira Litoral e de Entre Douro e Minho no sector da produção de
leite, referente a 1971:
Beira Litoral
|
Litros de leite produzido |
90 748 357 |
Valor |
254 095 399$00 |
Número de produtores |
23 208 |
Litros por produtor |
3 910 |
Escudos por produtor |
10 948$00 |
Número de vacas |
34 198 |
Vacas por produtor |
147 |
Litros por vaca |
3 317 |
Investimentos |
3 068 672 000$00 |
|
|
Entre Douro e Minho
|
Litros de leite produzido |
82 460 326 |
Valor |
220 993 673$00 |
Número de produtores |
24 800 |
Litros por produtor |
3 440 |
Escudos por produtor |
89 11$00 |
Número de vacas |
36 270 |
Vacas por produtor |
146 |
Litros por vaca |
2 843 |
Investimentos |
2 537 165 000$00 |
|
|
Neste contexto, a produção da Beira
litoral (área da Federação) em relação ao continente, e, dentro
deste, apenas as áreas onde a recolha está organizada, tem 35 % do
leite e Entre Douro e Minho (área também da Federação) ocupa o lugar
que lhe é conferido pela percentagem de 32 %, o que equivale, para
as duas, a posição representada por 67 %.
Para finalizar as nossas
considerações, desejaríamos que delas principalmente ressaltasse
esta ideia: o movimento cooperativo agrícola no país estará numa
fase crítica de transição. Vem até nós e é-nos ofertado um edifício
construído com muitas dificuldades, contendo em si, naturalmente,
muitas deficiências, a par, também, de virtudes. Aceitamo-lo tal
como ele é e tal como está, e lembremo-nos que ele não existiria se
não fosse um punhado de indivíduos que sacrificaram a sua vida,
alguns em plenitude, por um ideal que souberam concretizar. A melhor
homenagem que lhes podemos prestar é o respeito e reconhecimento e
indesmentível gratidão pela dádiva pessoal que fizeram, desprezando
família e haveres e ganhando inimizades, pelo bem da classe.
Desta aceitação e reconhecimento por
uma obra que existe e é positiva, partamos para nova etapa
evolutiva, como se fosse um desafio à geração actual. Saibamos
merecer o que nos foi legado, fazendo mais e melhor. Assim, será
certa a vitória.
Estes cursos, um dia iniciados com
tanta visão, são armas que vos são concedidas para uma marcha de
vanguarda. O movimento cooperativo e o mundo rural português muito
esperam de vós. |