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N.º 13

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1972 

Cooperativismo

Pequena História - Sua evolução e dificuldades no mundo rural ligado à produção de leite

TRABALHO APRESENTADO NUM CURSO DE EMPRESÁRIOS AGRÍCOLAS

Pelo Eng.º Agrónomo José Gamelas Júnior

 

Mais uma vez homens curiosos ou preocupados com os problemas económicos e sociais do mundo rural se reúnem para ouvir e debater temas da maior importância e acuidade, que visam a sua promoção profissional, indispensável à maior valorização e projecção na agricultura. E, no enquadramento do programa traçado, surge agora um sempre aliciante, porque contém em si um espírito vivo, que é fonte dinamizadora de pensamentos e de vontades: o Cooperativismo.

Há palavras que, por pouco melodiosas ou por circunstâncias que se desconhecem mas que inexplicavelmente inspiram dúvida, são marcadas logo à nascença e não conseguem livrar-se, pelo tempo fora, do ferrete que as macula e as tornam menos simpáticas, quando não mesmo repulsivas; e outras há, pelo contrário, que, também sem explicação, depressa encontram aceitação geral, talvez por infundirem simpatia, e são mesmo capazes de se constituírem em símbolo e arrastarem multidões, mesmo inconscientemente.

A esta, do Cooperativismo, supomos que ninguém lhe nega a magia de ter conquistado e continuar a conquistar o mundo, em todas as suas formas de desenvolvimento. Rios de tinta têm corrido a escrever-se sobre ele, desde os primeiros pensadores que se preocuparam com a sua doutrina – Robert Owen e Charles Fourier –, passando pelas experiências iniciais, como a dos Pioneiros do Rocchdale, até às múltiplas e variadas fórmulas criadas num afã contínuo de adaptar o fenómeno cooperativo às exigências impostas pelas circunstâncias nos sectores da vida económica em que as cooperativas haveriam de nascer e proliferar e desenvolver-se.

«Fenómeno cooperativo», «Movimento cooperativo», «Doutrina Cooperativa», «Teoria económica de cooperação» ou ainda «Cooperação como Ciência Económica» – são expressões genéricas que se objectivam na base de um princípio de organização e de um espírito próprio subjacente às suas diversas manifestações.

Como nasceu? Como foi aceite? Como se desenvolveu?

A resposta à primeira pergunta é fácil; encontramo-la na sua história, que é recente. Na verdade, a cooperação surge integrada no movimento de reacção contra os efeitos do liberalismo económico que se esboçou no século XVII e que teve a sua expansão e consolidação nos séculos XVIII e XIX. A liberdade consentida às forças económicas originou, ao contrário do que se supunha ou previa, um estado de desequilíbrio, que não permitiu benefícios em proporções uniformes aos participantes na produção e no crescimento.

O Cooperativismo nasce então como hipótese de solução para as deficiências do sistema.

Mas como foi aceite? Como se desenvolveu?

Teria sido por então negar a empresa e a economia capitalista liberal, e verificar-se que, com o recurso à associação, se permitia ao homem subsistir, escapando à miséria?

Teria sido por se apresentar como arma disponível aos indivíduos economicamente débeis, que procuravam elevar-se na sua condição e desejavam fugir à dependência e subordinação económica?

Teria sido por representar um princípio de organização económica iniciado a nível da produção e apoiando-se na iniciativa e colaboração activa dos próprios interessados, que se dispunham e dispõem a utilizar os meios em conjunto para satisfazer colectivamente as necessidades comuns?

Certamente que tudo concorreu para que o cooperativismo tivesse merecido a simpatia e fosse aceite pelas massas populacionais em ritmo espantosamente crescente, não sendo alheio a isso a chama da esperança que dele emana e que tão preciosa é a insatisfação humana, alimentada pelos frutos de exemplos, conhecidos aqui e além, e que beberam a sua doutrina. / 64 /

A terapêutica generaliza-se. Com efeito, a partir dos fins do século XIX, a cooperação invade os domínios rurais, como meio de elevar uma lavoura desprotegida e pobre, ao mesmo tempo que também são pequenos comerciantes que a ela recorrem; a França é invadida, depois da primeira Grande Guerra, pelas cooperativas de habitação, como solução de tantos que não podiam suportar a subida das rendas ou construir casa própria; as cooperativas de consumo generalizaram-se velozmente entre os funcionários de magros proventos, chefes de família com pesados encargos, reformados e pensionistas do Estado; e os meios piscatórios também lhe abrem os braços. Neste particular aspecto, haverá que referir a existência curiosa em Portugal dos chamados compromissos marítimos, regulamentados por D. Manuel I, de conteúdo cooperativo ligado à produção, no domínio das armações de pesca, sobretudo no Algarve.

E, nos tempos modernos, se o desenvolvimento do cooperativismo se pode considerar como índice da evolução dos povos, na medida em que atinge a sua maior expressão nos mais adiantados, também nos países subdesenvolvidos a sua praticabilidade é já vista como solução para o desenvolvimento das suas economias, de forma a poderem fugir à dependência atrofiadora exercida pela acção económica e política de países mais fortes.

É propriamente em Portugal, depois de um longo período de condicionalismos pouco estimuladores e de iniciativas dispersas e tímidas, podemos e devemos até reconhecer ser hoje inegável a sua expansão.

Contudo, poderá ele, entre nós, considerar-se garantidamente consolidado?

Cremos bem que sim, na medida em que a sua projecção é tal que constitui já uma força indestrutível e ocupa uma posição que se nos afigura irreversível.

Na verdade, se, por um lado, os tempos que vivemos são outros diferentes daqueles em que se selavam cooperativas de índole económica; se assistia impotente à oposição arbitrária movida abertamente contra elas, até mesmo por alguns sectores oficiais; e se se procurava inclusivamente eliminar a acção de uns tantos que teimosamente e com coragem por elas lutaram e se sacrificaram, sem medo de ameaças e de manobras concretizadas na transposição do tema para o campo político, a que não faltaria o estigma de comunista com que alguns foram apelidados; também, por seu turno, se pensa que a maior consciencialização que as camadas populacionais economicamente débeis vão tendo do que são e do que valem quando actuam ou se apresentam em grupo, alimentada ou revigorada pelo substrato da instrução, hoje em ritmo acelerado, permitirá ao homem português, através da via cooperativa, em franco desenvolvimento, maiores êxitos no confronto com o poder económico e estádios sociais mais equilibrados e de mais justa repartição.

Todavia, nem tudo correrá de feição ao movimento cooperativo português: algumas condicionantes hoje existem que podem limitar ou frenar o seu desenvolvimento, constituindo até causa de fracasso, num ou noutro caso. Vejamos algumas, com especial visualização, evidentemente, no sector rural:

1 – Em primeiro lugar, entendemos que na base do cooperativismo está o cooperador, e com ele, o espírito, intenções, vontade e consciência com que adere à associação. O Cooperativismo, se é doutrina, é também uma vivência, porque obriga a uma conduta especial do indivíduo em grupo: é livre e abraça princípios democráticos, que pressupõe, todavia, a obrigatoriedade de limitar a sua liberdade por respeito indiscutível da liberdade dos outros, e, se é naturalmente cioso dos seus direitos individuais, não deve fugir nem discute os direitos da colectividade, de que dimanam deveres fundamentais para a defesa dos interesses comuns.

Até que ponto teremos nós atingido este estádio? Sem querermos considerar mesmo a fase de perfeição absoluta, que seria utópico em termos humanos, em que medida o nível médio do cooperador português se situa? Consentirá uma evolução franca do Cooperativismo, ou antes a limita ou mesmo estrangula?

Supomos que não se ofenderão connosco se aqui afirmarmos que, em Portugal, na generalidade, temos Cooperativas – e já muitas – mas não temos cooperadores, pelo menos em número que seja significativo e capaz de imprimir carácter ao movimento. Na maior parte dos casos o agricultor adere ao cooperativismo sem consciência da sua doutrina e da força que possibilita pela unidade de acção, apoiada no grupo. Em vez de procurar reforçar a unidade, como seu elemento operoso, trabalhando no seu interior para a projectar no exterior com mais valimento, é frequente vê-lo antes numa acção externa, como se fosse alheio ao grupo, minando e promovendo a desagregação do edifício, ao qual pertence. Parece paradoxo, mas é verdade incontestável.

Sendo assim, também se poderá perguntar: se não temos cooperadores, como é possível termos Cooperativas?

A resposta está no critério de actuação usado. Se tivéssemos que esperar pela existência de cooperadores, não sabemos se alguma vez teríamos Cooperativas, e, se as viéssemos a ter, o atraso seria seguramente tão grande que nos arriscaríamos a uma posição altamente comprometedora, perante uma competição acesa que já nem é europeia, mas mundial, onde / 65 / os alicerces rurais se fundamentam e têm como denominador comum, o cooperativismo, qualquer que seja o regime político dos países. Por tal razão, parece ter-se preferido a adopção do critério da constituição das cooperativas, mesmo sem cooperadores, por se pensar poder dar resultados mais rápidos e também porque seriam as próprias Cooperativas existentes a fazerem escola e a ajudarem no progresso do movimento.

De qualquer modo, não pode descurar-se a preparação do cooperador. Muito embora pensemos que há defeitos no indivíduo que, talvez por razões genéticas, não mudam, por mais aprimorada que tenha sido a sua educação e a sua formação cultural (sobejam exemplos desses), seria estultícia não considerarmos a educação como indispensável para levarmos o homem à condição de vivente consciente de uma sociedade cooperativa. Se ainda assim não conseguimos deixar de ter água no leite ou evitar a entrada só de uvas fracas ou podres nas Adegas Cooperativas, porque as boas ficaram em casa de cada um, seguramente que haverá muito menos água no leite e melhores vinhos naquelas.

2 – Se permitem a nossa modesta opinião, o cooperativismo português, se de uma maneira geral não o considerarmos, para não ferir susceptibilidades, na fase incipiente, estará seguramente na de arranque, que, em alguns sectores, poderá ser tomado já como expressivo. De qualquer forma, porém, talvez pouco interesse tenha demorarmo-nos na apreciação do seu verdadeiro estádio, perante a certeza que temos de que atravessa um período de maior ou menor perturbação, certamente produto de uma crise de crescimento que, à parte os aspectos negativistas que a informa, não deixa de ser útil pela purificação de ideias que proporciona e pela revisão de métodos de trabalho que obriga.

E uma das características predominantes de que ainda se não viu livre é o amadorismo de que está impregnado. Sem querer ferir o espírito de carolice de uns tantos a quem se ficou a dever, pode dizer-se, a sua existência, e a quem não nos cansamos de render as nossas efusivas e justas homenagens de muito respeito e admiração, o que é certo é que o movimento cooperativo, depois de ultrapassar o estádio inicial em que se poderia justificar o regime de «meia bola e força», deveria consciencializar-se no sentido de se estruturar em moldes que permitissem garantia no embate competitivo que o aguardava e que já se sabia ser cada vez mais duro. Por amor da verdade, temos que afirmar que alguns sectores houve que assim fizeram, constituindo hoje empresas cooperativas válidas, com capacidade para exercerem a sua nobre e útil missão; mas também manda o mesmo amor pela verdade dizer que muitos outros houve que se quedaram num passivismo comprometedor, sem vida prestimosa ou com uma actividade precária que, de índole cooperativa, só tem o nome.

Ora, não haverá quem friamente não reconheça que este condicionalismo é defeituoso, diremos mesmo que é pernicioso, porque trava seriamente o desenvolvimento do fenómeno cooperativo no país.

Aliás, é especialmente devido a este condicionalismo e à impreparação de cooperadores, atrás, focada, que se justifica, quanto a nós em larguíssima medida, toda a acção que o Estado exerceu e exerce junto das Cooperativas.

Referimo-nos especialmente ao caso rural, porque é nele que trabalhamos e, por isso, mais conhecemos. É certo que a sua acção não é muitas vezes bem compreendida por uns tantos que visualizam o problema à luz de uma capacidade individual, esquecendo o contexto geral. E, caso curioso, não raro se verifica o paradoxo de indivíduos que se apelidam de socialistas, pouco simpatizantes ou mesmo aguerridos contra a intervenção do Estado, quando todos sabem que, dentro do socialismo, tudo se desbobina segundo a sua orientação e intervenção directa; e também outros existem que conhecemos beberem na corrente capitalista ou neo-capitalista, que também desejam o afastamento do Estado do movimento cooperativo, talvez porque, sem o seu apoio, vêem nele presa mais fácil. No fundo, porém, julgamos perceber que toda a acção do Estado, como elemento coordenador da vida da Nação, quando apoio e incentiva o movimento cooperativo, justifica-se por ver nele uma arma poderosa de promoção e de equilíbrio económico e social, capaz de elevar o sector primário para níveis mais aproximados dos existentes nos outros sectores.

De qualquer maneira, todavia, julgamos poder afirmar que se não fosse a acção coordenadora, estimuladora e de apoio do Estado, o movimento cooperativo não tinha a projecção e mesmo a personalidade que hoje tem e não sabemos mesmo se teria valor que merecesse ser considerado como organização útil da Lavoura no conjunto económico do país.

E não é que ele tenha sido paternalista, naquele conceito de auto-suficiência do patriarca, do chefe de família, que reivindica todos os riscos e responsabilidades, mantendo nas suas mãos as rédeas da Direcção. Nada disso existe ou já alguma vez existiu, se retirarmos, evidentemente, aqueles pouquíssimos casos em que a administração das cooperativas esteve ou está sob tutela, em regime de comissões administrativas.

Parece-nos antes que a designação de paternalista com que o vemos algumas vezes apelidado, deriva antes da tarefa frequente, tantas vezes ingrata, a que o movimento cooperativo o chama, de derimir questões / 66 / entre os seus elementos. Como em todas as instituições humanas, onde o homem livre dificilmente encontra a fórmula de equilíbrio que advém da justa noção dos direitos e dos deveres, o cooperativismo contém em si o gérmen da desagregação, sempre pronto a contaminar o meio, se não fora a aplicação permanente de antídotos, a que o Estado é chamado como recurso.

Mas esta sua acção poderá ser considerada, verdadeiramente, de paternalista? Não será antes de moderadora ou não se assemelhará mais à de «bombeiro» que voluntariamente acorre a apagar incêndios que a incompreensão dos homens continuamente ateia?

Para além disso, porém, a sua missão tem sido a de apoiar, incentivar, mas também coordenar as acções do movimento (que nem sempre é fácil), já que ele próprio nunca o fez e é indispensável, e, para isso, promove cursos para instrução de dirigentes e preparação de cooperadores, concede estímulos traduzidos em legislação favorável e em concessão de subsídios e de financiamentos em condições vantajosas e assiste desinteressadamente quando é solicitado. E quando intervém mais profundamente na averiguação da rentabilidade dos investimentos, não poderá, em bom rigor, confundir-se essa actuação com outra ideia que não seja a de fiscalização, que se impõe naturalmente para salvaguarda dos dinheiros concedidos e do bem da comunidade e do movimento. E será especulativo qualificá-Ia desprimorosamente com adjectivos mal intencionados ou desajustados, porque nunca se processa de forma a ferir a autonomia administrativa das cooperativas.

3 – Todavia, enquanto aquele condicionalismo defeituoso e pernicioso, que atrás se referiu, continuar a existir, tudo é possível acontecer: coisas boas e coisas más. As boas são naturalmente bem vindas; o pior são as más. São pretensões de cooperativas sem qualquer hipótese de vida económica, mas que servem para fazer barulho; é a falta de compreensão e consequente dissociação e conflitos entre as direcções e os membros das cooperativas; é o alheamento dos associados em relação ao funcionamento da empresa cooperativa, de que deriva, tantas vezes, a falta de representatividade nas Assembleias Gerais; é a concentração da decisão pelo esquecimento da massa associativa, aumentando-se assim a distância entre o cooperador e o órgão de decisão, com as consequentes dificuldades em manter a harmonia entre as exigências do crescimento da empresa e o seu conteúdo humano; é a dificuldade, nas Uniões de Cooperativas, em ter pessoal qualificado, que a sua gestão impõe, por se regatear a concessão de vencimentos altos, que a sua competência exige; é mesmo a dificuldade em se conseguirem funcionários qualificados que se disponham a aceitar a falta de compreensão e as contingências dos cooperadores mal esclarecidos e que, com e sem razão, tudo discutem, etc., etc.

Muitos mais exemplos podíamos citar, ditados pela experiência do dia-a-dia. Mas se julgam não serem suficientes, podemos ainda citar mais um caso, que, aliás, reputamos da maior importância entre os que travam ou prejudicam a evolução de fenómeno cooperativo: é o aparecimento, de quando em vez, de pessoas inexperientes, mas que declaram tudo saber e querem passar por génios e inconformistas, para fugir à rotina e servirem talvez de paradigmas. É preciso muito cuidado com eles. Regra geral, porque são narcisados e não sabem ouvir, quando actuam (e não lhes falta coragem para isso), sai «bronca» quase sempre. E o pior é que também, a maior parte das vezes, não reconhecem o erro, e logo se aprontam para cair e fazer cair noutra os que dizem defender. Advogam pela palavra uma doutrina, que é parente directa da democracia, mas na prática actuam com um individualismo feroz, com nítido desprezo pela opinião alheia dos seus comparsas.

4 – À medida que o cooperativismo evolui, a partir da evolução das suas células, vai sendo cada vez mais exigente a qualificação dos dirigentes. E no nosso mundo rural, com uma capacidade de promoção tão relativa, tão falha de sedução que tem levado à fuga maciça das suas gentes, onde se incluem as mais válidas e que mais poderiam lutar pelo sector primário, é cada vez mais difícil conseguirem-se individualidades que sirvam funções directivas e queiram despir-se de individualismos para abraçar a difícil tarefa de trabalhar pelo bem comum, que bem pode não coincidir com o deles em especial.

5 – Regra geral é notória a falta de acutilância da empresa cooperativa, na parte final da comercialização, em confronto com a empresa privada. Não é mal só nosso, porque é geral e atinge os países mais evoluídos, como na própria América do Norte.

É defeito sério deste, no movimento cooperativo, porque o afecta no cerne. Precisa de ser atacado de frente. Talvez por sua causa, surgiu recentemente legislação adequada que permite, dentro das condições que salvaguardam a posição das cooperativas, a formação de sociedades entre elas e as empresas privadas.

Cooperativismo agrícola português: apesar das deficiências que o informa, não há dúvida que é já uma força com que se conta na panorâmica económica e social do mundo rural, que vai ganhando personalidade, projecção e dimensão indomáveis, como se fora bola de neve a rolar pela encosta. Aliás, as suas próprias deficiências não serão sinal evidente de vida? / 67 /

É, sem dúvida, vida que o homem lhe empresta tal como é, na sua permanente busca de resposta à sua insatisfação.

*

Após estas considerações genéricas, mas que julgamos pertinentes, sobre cooperativismo, damos a seguir alguns elementos sobre o cooperativismo leiteiro, para dele tomarmos conhecimento da sua amplitude. E se, na sua análise, houver especial visualização para Entre Douro e Minho e Beira Litoral, perdoem-nos a falta, que não é sectarismo. Apenas deriva de ser ali que sempre trabalhámos.

 

I. Antes de mais, parece-nos útil dar uma ideia do valor relativo dos Distritos do continente, quanto à produção de leite. É o seguinte, expresso em percentagens:

01 – Aveiro ––– 28,6%

02 – Lisboa ––––– 19,9%

03 – Coimbra –––– 12,8%

04 – Porto –––– 11,0%

05 – Braga –––– 7,1%

06 – Viana do Castelo –––– 5,2 %

07 – Évora –––– 4,8%

08 – Portalegre –––– 3,0%

09 – Santarém –––– 2,0 %

10 – Leiria     1,8%

11 – Setúbal –––– 1,7 %

12 – Beja –––– 1,6%

E no que respeita aos Distritos da Beira Litoral e de Entre Douro e Minho, verifica-se o seguinte comportamento, em percentagem:


Beira Litoral

Aveiro ––––– 69 %

Coimbra –––31%

Entre Douro e Minho

Porto ––––––––––––– 47%

Braga ––––––––––––– 30%

Viana do Castelo –––– 23 %

Conjunto da Beira Litoral e Entre Douro e Minho

Aveiro ––––––––––––  45%

Coimbra –––––––––– 20%

Porto ––––––––––––– 7%

Braga –––––––––––– 10%

Viana do Castelo –––– 8 %

 

II. Há, no continente, 4 Uniões de Cooperativas, que agrupam cerca de 35 cooperativas, com alvará instituído, das quais 8 ainda não entraram em funcionamento.

Reportando-nos ao Noroeste (Beira Litoral e Entre Douro e Minho) o cooperativismo leiteiro pode esquematicamente ser assim traduzido: 2 Uniões com 13 cooperativas activas agregadas, da forma que se segue, a que se junta a data da alvará:

 
 

Data do alvará

a) União das Cooperativas dos Produtores de Leite de Entre Douro e
     Minho

30/ 06/1949

– S. Romão do Neiva

10/09/1948

– Ribeira do Neiva

07/12/1931

– Esposende

19/07/1952

– Braga

17/11/1955

– Póvoa de Varzim

01/10/1948

– Vila do Conde

27/10/1948

– Paços de Ferreira, Lousada, Paredes

04/09/1950

– Vila da Feira

18/11/1948

 
 
 

Data do alvará

b) União de Cooperativas de Produtores de Leite de Entre Douro e
       Mondego

15/ 6/962

– Vale do Vouga

10/02/1949

– Sanfins

27/01/1937

– Arouca

17/04/1944

Oliveira de Azeméis e Ovar

14/02/1944

– Aveiro, Ílhavo e Vagos

21/01/1949

 

Repare-se que todas estas cooperativas, com excepção das de Sanfins e Vale do Vouga, cujo funcionamento, embora irregular e descoordenado, datava já do ano de 1924, e ainda a de Ribeira do Neiva, foram, todas elas, fomentadas e apoiadas pelos Grémios da Lavoura, dentro, aliás, do espírito da lei que os criou (lei n.º 1957 e Decreto-Lei n.º 294941).

Bons tempos esses em que os mais responsáveis da lavoura viviam e agiam com inteiro espírito de unidade e fraternidade, dando-se as mãos na luta para a concretização de objectivos com vista a uma maior dignificação e valorização do sector primário. As dificuldades de proselitismo e do trabalho no campo do cooperativismo, nos anos de quarenta e até de cinquenta, eram tais e tantos, que nos atrevemos a afirmar que todo esse fomento só pôde ser feito, porque havia pleno entendimento nos homens da lavoura, e não lhes faltava espírito de cruzada e tantas vezes de emulação. As jornadas cerealíferas e leiteiras, realizadas / 68 / em 1963, foram bem testemunho e espelho desta ambiência.

Quão diferente é hoje o comportamento dos seus responsáveis, que o são ou são tidos com tal? Lamentavelmente é cada vez mais fundo e largo o fosso que desfez a unidade da lavoura, fosso que nasceu, não por diversidade de doutrina, mas apenas por divergências entre os homens que dirigem o cooperativismo agrícola,que são poucos, e os que trilham a via cooperativa como meio de defesa económica. E todos julgam estarem na posse da verdade e a trabalhar em proveito da lavoura, quando é certo que esta é mártir e vítima desta luta intestina que prevalece não por ela, mas para defesa de falsos prestígios e outros interesses.

São assim os homens... – É assim o mundo...

Apesar de tudo, aquelas duas Uniões e as suas cooperativas, que tiveram um início muito difícil e muito precário, mercê de circunstâncias várias próprias da época em que nasceram e começaram a viver, onde se inclui o confronto terrível com a indústria privada, que tudo fez para as aniquilar, começaram a projectar-se a partir de legislação adequada que as apoiou (Decretos-lei n.os 39178 e 47710, respectivamente de 20-4-1953 e de 18-5-1967). E hoje, embora em fase ainda modesta no enquadramento da economia leiteira do país, são unidades, todavia, com preparação suficiente para darem o salto e assumirem posição efectivamente relevante no sector rural que dominam.

III. Para se fazer uma ideia do salto dado pelo cooperativismo leiteiro no noroeste do continente, bastará referir que o movimento de leite recebido e respectivo valor, observado em 1948 e 1971:

 

Anos

Entre Douro e Minho

Beira Litoral

Litros

Valor à produção

Litros

Valor à produção

1948

360 000

684 000$00

1 211 500

2 278 500$00

1971

25 650 000

71 820 000$00

16 558 000

48 019 000$00

 

Actualmente, a relevância das cooperativas, na recolha do leite, é definida da seguinte forma: em relação às áreas onde actuam, é de 98 % na Beira litoral e de 76 % em Entre Douro e Minho; e em relação à área total de cada uma das Federações, aquela percentagem é de cerca de 20 % na primeira e aproximadamente 43 % na segunda.

IV. Outros elementos curiosos e dignos de interesse, de carácter geral, são os de natureza económica, que nos dão a conhecer a importância da Beira Litoral e de Entre Douro e Minho no sector da produção de leite, referente a 1971:

Beira Litoral

 

Litros de leite produzido

90 748 357

Valor

254 095 399$00

Número de produtores

23 208

Litros por produtor

3 910

Escudos por produtor

10 948$00

Número de vacas

34 198

Vacas por produtor

147

Litros por vaca

3 317

Investimentos

3 068 672 000$00

 

Entre Douro e Minho

 

Litros de leite produzido

82 460 326

Valor

220 993 673$00

Número de produtores

24 800

Litros por produtor

3 440

Escudos por produtor

89 11$00

Número de vacas

36 270

Vacas por produtor

146

Litros por vaca

2 843

Investimentos

2 537 165 000$00

 

Neste contexto, a produção da Beira litoral (área da Federação) em relação ao continente, e, dentro deste, apenas as áreas onde a recolha está organizada, tem 35 % do leite e Entre Douro e Minho (área também da Federação) ocupa o lugar que lhe é conferido pela percentagem de 32 %, o que equivale, para as duas, a posição representada por 67 %.

Para finalizar as nossas considerações, desejaríamos que delas principalmente ressaltasse esta ideia: o movimento cooperativo agrícola no país estará numa fase crítica de transição. Vem até nós e é-nos ofertado um edifício construído com muitas dificuldades, contendo em si, naturalmente, muitas deficiências, a par, também, de virtudes. Aceitamo-lo tal como ele é e tal como está, e lembremo-nos que ele não existiria se não fosse um punhado de indivíduos que sacrificaram a sua vida, alguns em plenitude, por um ideal que souberam concretizar. A melhor homenagem que lhes podemos prestar é o respeito e reconhecimento e indesmentível gratidão pela dádiva pessoal que fizeram, desprezando família e haveres e ganhando inimizades, pelo bem da classe.

Desta aceitação e reconhecimento por uma obra que existe e é positiva, partamos para nova etapa evolutiva, como se fosse um desafio à geração actual. Saibamos merecer o que nos foi legado, fazendo mais e melhor. Assim, será certa a vitória.

Estes cursos, um dia iniciados com tanta visão, são armas que vos são concedidas para uma marcha de vanguarda. O movimento cooperativo e o mundo rural português muito esperam de vós.

 

páginas 63 a 68

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