Emídio Júlio Navarro, de seu nome
completo, nasceu em Viseu a 19 de Abril de 1844 e faleceu no Luso,
em 16 de Agosto de 1905.
Foi aluno do Seminário de Bragança,
onde completou o 2.º ano do Curso de TeoIogia. Em Coimbra, não se
sentindo com vocação para a vida eclesiástica, matriculou-se na
Faculdade de Direito, tendo concluído o curso em 1869.
Deputado, ministro de Estado e
ministro de Portugal em França, Emídio Navarro foi sobretudo um
grande jornalista.
Quando estudante em Coimbra, fundou
o jornal “A ACADÉMICA”, que teve como colaboradores João de Deus,
Teófilo Braga e outros.
No “CONIMBRICENSE” também escreveu
assiduamente, onde começou a revelar-se dando extraordinárias provas
de polemista, de incomparável observador e comentador da vida
pollítica do seu tempo.
Regressado a Bragança, abriu banca
de advogado e aí publicou alguns artigos sobre a Revolução Francesa
aos seus homens mais eminentes e tentou fundar um jornal político.
Em Lisboa, fundou “O PROGRESSO”, foi
director do “CORREIO DA NOITE”, órgão do partido progressista, onde
ingressou.
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Nomeado secretário do Tribunal de
Contas e eleito deputado em várias legislaturas, foi mais tarde para
Paris como Ministro de Portugal. Luciano de Castro nomeou-o Ministro
das Obras Públicas, tendo desenvolvido notável acção. Abriu grande
parte das estradas de Portugal, alargou os serviços florestais,
criou, protegeu, edificou e consolidou tudo quanto podia contribuir
para o desenvolvimento do património nacional.
Escreveu Quatro dias na Serra da
Estrela, prefaciado pelo Dr. Sousa Martins, que o acompanhou na
digressão à serra, com o Dr. Carlos Tavares. Colaborou em quase
todos os jornais e revistas portuguesas do seu tempo.
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Monumento a Emídio Navarro. |
Após o regresso de Paris, abandonou
por completo a actividade política e dedicou-se ao seu jornalismo.
Nesta última fase salienta-se a «questão dos tabacos» que ocasionou
extraordinários episódios políticos. Parecia que a sua pena
ressurgia, moça, dos tempos antigos.
Minado pela doença, retirou-se com
sua família para o Luso, sua pequena pátria adoptiva, como lhe
chamou o Professor Fernando Emídio da Silva, no discurso proferido
na inauguração do Monumento que as gentes do Luso e Buçaco lhe
erigiram para perpetuar a gratidão pelo muito que lhe ficaram a
dever. /
22 /
DISCURSO PROFERIDO NO LUSO PELO PROFESSOR DOUTOR FERNANDO EMÍDIO DA
SILVA, NA INAUGURAÇÃO DO MONUMENTO
Senhora Dona Ernestina Navarro;
Minhas Senhoras;
Meus Senhores:
O monumento que hoje temos a honra
de inaugurar representa iniludivelmente uma consagração e uma
vitória.
Uma consagração do mérito. E não
daquele fácil merecimento que é feito de eco retumbante de algumas
palavras sonoras ou da condescendência atarefada de algumas
interesseiras solicitudes. Mas de mérito autêntico, indubitável que
está para essas auriflamas de pechisbeque como o brilho de uma
estrela e para esses anónimos rumores de uma fama dúbia e barata
como o toque sonoro e límpido do metal batendo a pedra.
Uma vitória sobre a calúnia, a má
fé, a intriga, a inveja, a rotina, a incompetência, a mentira: todas
essas forças subalternas e (ai de nós!) omnipotentes que em Portugal
desde muito se encontram desgovernando e entravando o carro do
Estado; todas essas forças negativas e subtis que, como não podia
deixar de ser, deram batalha à inteligência lúcida, à vontade de
ferro e ao patriotismo esclarecido do ministro de 1886; todas essas
forças tortuosas e sinistras que remeteram em breve para o
ostracismo o homem público eminente que, por ter pensado um dia em
dominá-las, foi duplamente ferido na sua reputação caluniada e na
sua obra destruída, pela razão muito simples de que uma vontade
organizada e uma obra de governo eram o inimigo temeroso e comum de
que se tornava necessário nem ficasse a lembrança.
É assim que, meus senhores,
contemplando o porte enérgico e altivo desta estátua que parece
ainda querer guardar as costas contra alguma traição eventual,
apoiando-se de encontre à montanha que sobre todos os lugares da
terra portuguesa ele amou e serviu; é assim que, meus senhores,
contemplando esta autêntica e piedosa ressurreição, em que, como nas
velhas mágicas, a virtude esplende radiosa e triunfante e o crime
desce a esconder-se nas pregas entreabertas de um alçapão
providencial; é assim que, procurando o simbólico significado desta
glorificação em que um bloco de mármore calcou a argila pastosa e
lamacenta que lhe serve de vencido alicerce – eu sou levado a
exprimir neste momento, sombreado aliás por tantas angústias e
ameaçado por tantos perigos, um pensamento de confiança na
reconstituição e na justiça nacional.
Meus Senhores:
Emídio Navarro, cujos talentos
luziram a meio de uma das mais brilhantes gerações literárias e
políticas deste país, trouxe para os múltiplos ramos da actividade
social em que se embrenhou o dom supremo com que se enaltece a vida
humana: a vontade esclarecida. Basta lembrar o seu forte e
musculoso arcabouço beirão, o passo enérgico e decidido, as mãos
grossas, a cabeça solidamente pregada nos ombros largos, a frente
nitidamente desenhada, o porte altaneiro, o olhar irrequieto
buscando a decisão em que se firme, os lábios espessos abrindo-se a
mostrar-nos a dupla fieira dos seus dentes agudos, tudo em Emídio
Navarro respira a força, traduz a vontade, desenha a ânsia de lutar.
Formado em Direito depois de um
curso notável em que rapidamente conquistou os laureis do
accessit, a advocacia e as lutas do fôro, porém, não e atraem,
apesar do seu feitio intelectual não ser inadaptável às lucubrações
jurídicas.
São as violências maiores do
jornalismo e da política que exercem desde logo sobre o seu espírito
uma / 23 /
atracção irresistível, como se nessas contorções mais ásperas os
seus músculos encontrassem apenas o limite marcado para a sua acção
natural. Assim é que, fugindo logo ao ramerrão das parcas questões
de águas que afluem ao seu escritório de incipiente advogadelho de
província, a sua pena coruscante enche de relâmpagos o pacato jornal
da sua terra e as suas predilecções partidárias em breve se firmam
nos temerosos e inevitáveis cavacos da farmácia. Mas as colunas
obscuras de um perdido jornal transmontano e as paredes palreiras de
uma farmácia de aldeia não bastam manifestamente a Navarro. Grande
nau, grande tormenta.
E assim não admira vê-lo demandando
novos horizontes, novas aspirações, novas violências para essa
Lisboa que pela larga publicidade dos seus jornais e pela influência
decisiva da sua política ele sentia como sendo a sua atmosfera
necessária. Navarro era nesse tempo demasiado novo, as desilusões
não tinham caído ainda como um chuveiro de neve sobre o coração para
que os seus olhos demandassem, de preferência, como mais tarde, os
encantos da paz e da beleza rural!
Os fados mais uma vez tinham de
cumprir-se.
Chegado a Lisboa, mergulhado na
política até aos cabelos, armado para a luta até aos dentes, em
contacto diário com os chefes e marechais do partido, o seu valor,
como não podia deixar de ser, torna-se rapidamente apreciado. O seu
lugar de destaque é desde logo definido e as esporas de ouro em
breve legitimamente ganhas.
É pelos jornais do seu partido em
que, sucessiva e ininterrompidamente, colabora até à fundação das
Novidades que Navarro começa a vida política. E a bem dizer o
seu talento e influência de jornalista de combate revelam-se tais
que a fama conquistada pela pena incontestavelmente lhe abriu desde
logo as portas de todas as consagrações de homem público.
O mérito de Navarro como jornalista
nem pelos seus mais intransigentes e irreconciliáveis inimigos pôde
nunca ser contestado.
De uma inigualável lucidez na
argumentação, vigoroso no ataque, pronto na réplica, escrevendo com
elegância, precisão e clareza, sabendo ferir os aspectos capitais de
cada assunto e sabendo falar aos sentimentos dominantes do grande
público, o seu artigo de fundo diário, transportado com pressa
lendária do cérebro ao papel quando o jornal quase composto ia
dentro de pouco entrar na máquina – é a história política de trinta
anos, tal como a sentiu um alto temperamento do seu tempo e que pode
ainda hoje reconstituir-se, sobretudo pela colecção das Novidades,
limando-lhe as arestas demasiado vivas e os atrabiliários exageros
do desforço e da paixão.
No tempo de Emídio Navarro, o
jornalismo português (como quase todas as manifestações da
actividade intelectual) atravessava um período áureo. Na tradição
próxima ou na arena política ainda, firmavam então os seus artigos
de combate os nomes prestigiosos de Rodrigues Sampaio, Teixeira de
Vasconcelos, Latino Coelho, Mariano de Carvalho, António Enes,
Pinheiro Chagas, Oliveira Martins, Barbosa Cohen, Eduardo Burnay: o
penúltimo tão ligado a Navarro e a esta terra, morto ainda não há
seis meses; o último, seu adversário temeroso, apenas vivo da velha
e gloriosa guarda. Ah! O combate era então rude e vistoso. Para
falarmos só das duas pugnas mais salientes da carreira jornalística
de Navarro ou sejam daquelas que pela sua proximidade me foi dado
conhecer e sentir (a questão Burnay e a questão dos tabacos), os
seus vigorosos contendores não eram de trato cómodo e macio: em
Mariano de Carvalho havia a combater a maior erudição do seu tempo,
posta ao serviço de uma inteligência sem igual na nossa elite e
servida a seu turno pela ironia da mais acerada e fina lâmina da
esgrima jornalística portuguesa; em Eduardo Burnay havia a lutar um
autêntico temperamento de polemista, lúcido e persuasivo na
doutrinação, vivo e penetrante no ataque, um tudo nada desdenhoso na
ironia também manejada com desembaraço folgazão... Mas como a todas
as personalidades e vocações verdadeiramente superiores, a grandeza
das dificuldades a vencer só davam estímulos e energias novas ao
director das Novidades.
Navarro, com efeito, em poucos
artigos sabia aproveitar com habilidade rara os argumentos que,
dominando o assunto, convenciam melhor. Esses argumentos, como
cajado bem seguro por alma de campónio que se dispõe a varrer uma
feira, não lhe saíam mais das mãos. E era de ver, por entre a ânsia
do adversário que inteligentemente multiplicava tropeços novos a
remover para o seu avanço, a curva repetida dos mesmos molinetes a
encher o ar do mesmo estrepitoso alarido de arreganho e de vitória.
O adversário tinha de precaver-se contra um embate quase
irresistível – na valorosa e decisiva arremetida contra o obstáculo
antevisto. E na algazarra do combate, por entre o esfuziar dos
ataques derivados, sentia-se de quando em quando a sua parada e
réplica firme nas guardas clássicas da esgrima, a contrastar com a
gentileza de um jogo momentaneamente floreado em finuras de
subtileza e de malícia. E esta segurança na defesa e esta solidez no
ataque não constituem os menores encantos do feitio jornalístico de
Emídio Navarro.
Por muito admiráveis, porém, que
fossem os dotes do jornalista; por maior que tivesse sido a
influência dos seus escritos na vida política portuguesa – este
monumento, se eu sei compreender o seu real significado, não
constitui uma homenagem aos golpes vigorosos da sua pena. Não é, com
efeito, o azorrague
/
24 / que lá em cima no bronze do seu busto poderíamos
adivinhar, num prolongamento ideal, como empunhado pela mão que não
chega a aparecer-nos; não é a cota de malha, nem o montante, nem a
lança – não são as armas todas do seu poderoso arsenal de guerra que
saem hoje desenferrujadas da sua campa para lhe fixarmos a memória
no ensinamento que esta estátua representa.
A nossa homenagem, julgo senti-lo
distintamente, visa o homem de Estado. E sem que ao espírito crítico
se lhe diminua um só dos efeitos de uma corrosão por vezes
redentora; e sem que ao articulista insigne das Novidades se
regateie por um momento o lugar que precisamente pelas lutas de
imprensa ele talhou para o destaque primeiro da sua eminente
personalidade, apraz-me pensar que não são as suas faculdades de
demolidor, por mais poderosas que tenham sido, mas as suas raras e
iluminadas energias de organização e de mando as que em torno deste
pedestal hão-de sempre ler-se inscritas pela admiração e pelo
reconhecimento públicos.
De resto, a minha satisfação por
esse facto é pessoalmente dupla.
Por um lado, sem diminuirmos,
repito, a necessária função do espírito crítico, a coragem física,
intelectual e moral indispensáveis a um autêntico temperamento de
demolidor à Clémenceau; sem tirar a Navarro uma só das glórias que
possam caber-lhe na justeza dos seus golpes e nos efeitos das suas
campanhas – o facto talvez de o talento nacional se encontrar desde
já velha data posto ao serviço de demolir e denegrir e a
circunstância ainda de no nosso país se ter em geral demolido demais
e edificado de menos: tudo o que venho dizendo, enfim, contribui
para que de há muito no meu espírito (erradamente, porventura) a
minha enternecida admiração e o meu acrisolado respeito atinjam de
preferência quem constrói do que quem destrói, quem afirma do que
quem nega, quem produz do que quem critica e quem confia do que quem
desdenha.
Por outro lado, para fazer justiça a
Emídio Navarro é indispensável sobretudo encará-lo como homem de
Governo. Não só porque é nesse campo que o préstimo do grande
cidadão pode económica, política e socialmente traduzir-se em um
mais largo saldo de positivas utilidades nacionais, mas também
porque os próprios excessos da sua paixão política, condenados in
limine por tantos, se encontram singularmente atenuados para a
justiça que a todos importa fazer quando pensarmos um momento que
Navarro assistiu ao aniquilamento quase sistemático da sua própria
obra, por via dela sofreu na sua reputação os mais duros e violentos
ataques e por via dela ainda, com uma injustiça revoltante, viu
destruída a sua carreira de homem público, lançado à rocha Tarpeia,
ao mesmo tempo que a exaltadas mediocridades se estendia um benévolo
tapete que lhes permitisse não ficar a um décimo do caminho do
Capitólio!
Isto para não dizer ainda que são as
suas concepções de homem de Governo, a lucidez da sua visão de
estadista, que precisamente vêm dar aos artigos que tratam as
grandes questões nacionais, como as de fomento, ou os altos
problemas internacionais, como a aliança inglesa, aquele relevo e
aquela aguda perspicácia que não foram esquecidos por quem o leu e
nesses escritos podia reconhecer com facilidade as qualidades que
tornam notável o Ministro das Obras Públicas de 1886 e que as
circunstâncias apenas não deixaram plenamente evidenciar no Ministro
de Portugal em Paris.
O ministro das obras públicas do
governo progressista de 1886 foi efectivamente um homem de Estado.
A qualidade dominante do homem de
Estado é precisamente a qualidade que no começo destas desataviadas
palavras dissemos ser a faculdade máxima do nosso homenageado e que
através da sua carreira de polemista não é difícil aliás
reconhecer-lhe também: a vontade esclarecida.
Na verdade, Emídio Navarro sabia o
que queria e sabia querer. Simplesmente, este equilíbrio tão fácil
de enunciar em duas palavras é de uma extrema dificuldade de
realização em um cérebro apenas.
Começa por que a mera existência,
como humanamente possível, de um homem de Estado só é susceptível de
compreender-se quando primeiro se tenha desfeito um curioso paradoxo
em cujas malhas aliás têm soçobrado tantos governantes de todas as
pátrias.
Por um lado, a absoluta
impossibilidade de saber tudo. Por outro lado, a crescente
necessidade de informar a obra de governo com os elementos da
investigação fornecidos por todas as ciências e por todas as
filosofias.
O enciclopedismo, com efeito, além
de pretensão crescentemente estulta no próprio campo científico,
entorpece as faculdades de acção de um homem de governo. Saber é
duvidar. Quando Henri Poincaré introduz a dúvida no próprio seio das
abstracções matemáticas – o último recôndito que no nosso espírito
tinha ficado para a certeza – imagine-se que oceano de dúvidas não
assaltarão o sociólogo e não aturdiriam o político quando este se
embrenhasse demasiado fundo nos meandros inextrincáveis e
contraditórios da investigação e da doutrina!
Mas o pior – ou o melhor – é que, na
verdade, não há ramo da ciência humana, desde a que no espaço
contorna o infinitamente grande até à que no laboratório perscruta o
infinitamente pequeno: não há objecto da actividade científica –
nihil humanum –
/ 25 /
que não interesse e que imprescindivelmente não sirva o Governo de
um povo.
Este o paradoxo na sua aparente
irredutibilidade. Esta a perturbadora geometria do círculo vicioso.
Ou se quiserem antes, estas as suas pontas agudas do dilema.
Resolvê-lo é penetrar no âmago da
interrogação temerosa e fixar as qualidades dominantes do homem de
Estado, quando este ou antes a sua caricatura não resolva a seu
turno todas as hesitações, instalando na ignorância plena a
bem-aventurança de alguma vaidade incomensurável...
Ora o paradoxo, na realidade, só se
desfaz, e o homem público surge apenas como uma entidade humanamente
possível quando o compararmos com o funcionamento de uma grande
empresa e a integrarmos em uma técnica semelhante à da divisão do
trabalho. Como ao empresário, pertence-lhe o plano de conjunto de
organização e de invento; a sua adaptação ao momento e ao meio; a
previsão da sua viabilidade e economia; a execução cujo compasso,
frequência e potencialidade ele regula – e como contrapartida à sua
ilimitada responsabilidade moral e política há que fixar-lhe limites
amplos para os movimentos livres da sua direcção e do seu mando. Mas
como o próprio empresário também que, em todas as fases da sua
acção, tem de dividir mecanicamente as tarefas de forma a confiar
por encomenda aos técnicos e competentes o esclarecimento de cada
pormenor e a factura de cada engrenagem, assim o homem de Estado,
sob pena de condenar a sua obra à impotência e ao fracasso, tem de
socorrer-se a cada instante do conselho e do auxílio dos
especializados para que por esta única via possível cheguem à sua
informação e à sua decisão os únicos elementos que podem com a
necessária segurança ilustrar a primeira e determinar a segunda.
Mas porque a mera existência de um
homem de Estado não é assim um humano impossível, não se desmereçam
por esse facto das virtudes e dos talentos indispensáveis à sua
afirmação. O conhecimento dos homens, do momento e do meio; o
desbaste e verificação das informações e dos conselhos; a previsão
dos efeitos e das resistências de qualquer das suas medidas; a
firmeza e o tacto, a persistência e a maleabilidade da sua execução;
a mera escolha dos colaboradores necessários (e a escolha destes é
fácil e externo barómetro pelo qual podem aferir-se dos merecimentos
de um governante), eis o complexo teclado cuja harmonia exige para
quem possua o raro dom de no-la fazer sentir as mais nobres
qualidades de equilíbrio das mais altas faculdades da inteligência e
da vontade humanas.
Ora Emídio Navarro foi
incontestavelmente esse estadista.
Num ministério presidido pelo alto
valor político de José Luciano; com a fazenda pública administrada
pela sagacidade sem igual de Mariano de Carvalho; a vara da justiça
entregue às mãos honradas e ao alto espírito jurídico de Veiga
Beirão; ao lado de Barros Gomes maquinando já o seu mal sucedido
sonho de expansão colonial; ombreando com a farda constelada de S.
Januário e a sobrecasaca florida de Henrique de Macedo – o talento,
a superior organização do novo marechal político que subira ao seu
posto com luz própria, que não precisava do brilho alheio, vai
firmar-se com vertiginosa rapidez nos escassos trinta e seis meses
de Governo que este monumento precisamente se destina a perpetuar.
Navarro na complexa pasta das Obras
Públicas, onde as comunicações, a agricultura, a indústria, o
trabalho e o comércio formam o estofo das preocupações de cinco
ministros, diagnosticara com presteza o nosso mal e demonstrou
fartamente ter mãos para lhe descobrir e aplicar o remédio.
Em esquema, o nosso mal económico
era então como continua sendo o inferior aproveitamento das nossas
riquezas. Senhores de um subsolo satisfatório, de um solo de
excelente produtividade, de uma vantajosa posição geográfica de
metrópole e colónias, de inconfundíveis belezas naturais – não era
que isso tudo não formasse exuberantemente a quádrupla base de uma
indústria desenvolta, de uma agricultura privilegiada, de um
comércio expansivo, de um turismo rendosíssimo: de tal sorte que à
balança comercial não pudesse rapidamente fazer-se aumentar o volume
das suas transacções e mudar quiçá o seu desequilíbrio de sentido; de
tal sorte sobretudo que à balança económica se não pudesse assegurar
um largo e produtivo saldo em nosso favor. Mas velhos erros de longe
vindos, defeitos quase orgânicos, tradicionais pusilanimidades e
dispersões traziam inquinado de todos os vícios o meio social e
político, onde o baixo nível de civilização material e intelectual
manchava agora de negro o lugar que na carta do mundo a nossa
audácia e a nossa gente talhara largamente para a independência e
para a imortalidade portuguesas.
Este era o mal.
O remédio estava num plano de
fomento digno desse nome.
A descoberta da sua fórmula precisa
honra já o tacto de governo de Navarro.
Mas um outro merecimento lhe
enaltece porventura ainda com mais destaque o seu perfil de homem
público: o exacto sentimento que ele teve da necessidade de caminhar
depressa na execução da sua obra de imediatas realizações.
Era necessário, com efeito, caminhar
depressa, em primeiro lugar, porque na efervescência industrial da
Europa do último quartel do século XIX já podiam pressentir-se as
temerosas palavras de Salisbury que Fuschini
/ 26 / queria
saber gritadas a cada ouvido português: só têm direito à vida as
nações que trabalham e progridem.
E era necessário ainda caminhar
depressa, porque a questão social marcara já a crescente esfera
intervencionista do Estado e, nestas condições, amortecendo o pleno
estímulo da concorrência livre, ia fazer incidir as atenções
públicas para uma melhor distribuição de riquezas de preferência a
uma produção maior. E Portugal poderia encontrar-se, como hoje aliás
se encontra, na situação paradoxal de não poder fazer recuar a hora
intervencionista, sem ter deixado actuar plenamente os incitamentos
produtivos máximos de que só o individualismo tem o segredo. Quer
dizer, era preciso a todo o transe evitar o que então já se
desenhava: a situação de haver a distribuir melhor uma riqueza antes
de a haver satisfatoriamente criado. O que em meu modesto entender
se assemelha também (seja dito entre parênteses) à forma por que em
Portugal se arrasta a velha questão do jogo: enquanto lá fora se
deixa ao jogo regulamentado produzir os seus notáveis benefícios na
criação de praias e termas e quando já dele menos se precisa é que
se pensa como na Bélgica em reprimi-lo – em Portugal, onde a livre
expansão da tavolagem é um segredo de polichinelo, pensa-se que a
moralidade pública consiste em não regulamentar o que vai existindo
para simples exploração de nós todos e sem nenhum dos benefícios
públicos a ele atinentes.
Ora Navarro não pensava desta
maneira em relação ao nosso problema económico. E se o acusam de
excessiva precipitação na edição de algumas medidas e de excessiva
largueza na concepção de alguns dos seus projectos – as
circunstâncias acima referidas não o absorverão plenamente dessa
precipitação e dessa largueza, quando para essa absolvição se não
queira invocar o argumento rigorosamente económico de que não há
colheita sem sementeira, de que não há benefício e fartura sem
temporárias abstenções e sacrifícios?
Meus Senhores:
É esta a visão segura da situação e
do momento que plenamente dirigiu a acção governativa de Emídio
Navarro e faz dele incontestavelmente um homem de Estado.
Como Oliveira Martins no seu
Projecto de Fomento Rural, melhor do que Elvino de Brito,
Navarro concebe o mais largo plano de fomento que depois da
Regeneração germinou em cérebro de homem público do
constitucionalismo português.
É assombrosa, toca as raias do
prodígio a multiplicidade de aspectos da sua obra, a actividade
desenvolvida nos três anos da sua lida ministerial por um homem
insuficientemente rodeado das competências especializadas
indispensáveis e operando a meio das enferrujadas engrenagens da
rotina burocrática. Pode dizer-se mesmo que na complexidade dos
serviços do antigo ministério das Obras Públicas não ficou um único
escaninho onde a acção impulsionadora de Navarro se não fizesse
sentir e onde, apesar de o não terem sabido seguir e de
propositadamente haverem contrariado os intuitos da sua herança, não
ficasse ligado ao seu nome a lembrança de um incitamento vantajoso
ou de uma reforma benemérita.
Passemos, com efeito, rapidamente
revista (para não cansar a vossa atenção mas para ao menos lhes
medirdes o alcance, à obra do ministro das Obras Públicas de 1886 a
89.
Se considerarmos primeiro os
problemas magnos das comunicações e do ensino técnico que juntamente
com o crédito agrícola podem formar os pilares fundamentais da
reconstituição económica nacional, a obra de Navarro constitui o
mais notável plano de fomento concebido e começado e executar nos
últimos 50 anos.
Pelo que respeita às comunicações e
deixando de lado pelo seu aspecto dispersivo as medidas de
reorganização dos correios e telégrafos (basta lembrar a remodelação
da posta rural, D. 4 Agosto 1887), em nenhum aspecto do problema se
descura a sua ânsia de reforma e de organização. Em matéria de
viação ordinária são firmadas pelo seu punho as P. P. 28 Abril, 18
Julho e 17 Agosto 1887, regulando as adjudicações e empreitadas de
obras públicas e a construção de estradas municipais e distritais; o
D. 21 Fevereiro 1889, último que ele assinou, sobre a polícia das
estradas; a P. 28 Dezembro 1888 sobre expropriações amigáveis e
sobretudo a lei de 21 de Julho de 1887, a que ele deu um começo
brilhante de execução e que, a não ser posta de lado, teria dotado
em 18 anos o país da rede de estradas sumariamente digna de uma
nação da Europa. Em matéria de viação acelerada o seu pensamento era
o de dar à nossa rede ferroviária as malhas que lhe ficaram faltando
e regularizar os respectivos serviços, como se pode ler expresso nas
P. P. 19 Março 1886 e 23 Maio 1887 que interessam à Beira-Baixa; no
D. 15 Março 1888 que regulamenta a fiscalização da construção dos
caminhos-de-ferro; nos D. D. 14 Agosto 1887 e 21 Fevereiro 1889
sobre despachos de mercadorias; e ainda na P. 21 Fevereiro 1889 que
organiza a fiscalização dos caminhos-de-ferro sobre as estradas
ordinárias. As comunicações telefónicas também o preocuparam: o D.
15 Setembro 1887 aprova o contrato que interessa às redes de Lisboa
e do Porto. Finalmente, a abertura de portos que assegurassem a
expansão comercial aos nossos produtos mereceu ainda a sua larga
atenção: basta relembrar as obras do porto de Lisboa onde havia a
construir senão o cais da Europa pelo menos um cais europeu (P. 28
Junho 1886;
/ 27 /
D. 22 Dezembro do mesmo ano; P. 6 Agosto 1887 que aprova o projecto
definitivo) e, além do porto de Lisboa, os portos de Ponta Delgada e
Horta que na lei de 21 de Julho de 1887 receberam um notável
impulso.
Isto pelo que respeita às
comunicações.
Pelo que respeita ao ensino técnico,
não é menos notável a acção de Navarro. O obsoleto D. 16 Dezembro
1852, de Fontes e Atouguia, em matéria de ensino agrícola e os D. D.
20 Dezembro 1864, de João Crisóstomo e 3 Janeiro 1884, de António
Augusto de Aguiar, constituíam à época o nosso parco material
legislativo. Navarro organiza os Institutos Industriais e Comerciais
(D. 30 Dezembro 1886 e R. 3 Fevereiro 1888), reforma o Instituto de
Agronomia e Veterinária (D. D. 2 Dezembro 1886 e 8 Novembro 1888),
regulamenta as escolas industriais e de desenho industrial (D. 23
Fevereiro 1888). E não deixando em letra morta as respectivas
autorizações legais, organiza a escola profissional de Belém (P. 22
Outubro 1886), cria as escolas agrícolas de Coimbra, Faro, Viseu,
Portalegre e Santarém (D. D. 3 e 17 Novembro 1887, 18 Julho 1878);
as escolas industriais da Covilhã, Alcântara, Porto, Braga, Coimbra,
remodelando depois as do Porto e Guimarães (D. D. 13 Junho 1888 e 10
Janeiro 1889); funda as escolas elementares de desenho industrial de
Bragança, Faro, Figueira da Foz, Leiria, Setúbal, Viana do Castelo,
Vila Real, Funchal e Matosinhos (D. D. 13 Junho 1888 e 10 Janeiro
1889); descendo ainda no campo agrícola a especializar o ensino em
harmonia com as aptidões culturais de cada região, estabelece essas
delicadas organizações de progresso que poderiam ter sido as escolas
práticas de viticultura da Bairrada e de Torres Vedras, a escola
prática de lacticínios de Castelo de Paiva, a escola frutuária da
5.ª região agronómica (D. D. 30 Junho 1887 e 18 Julho 1888); aumenta
os irrisórios vencimentos dos professores seus dependentes (L. 1
Junho 1888); preenche com elevado critério algumas vagas do
professorado técnico superior, nomeando entre outros Vilaça e Dias
Costa; manda vir do estrangeiro a modernizar o nosso ensino
industrial altas capacidades designadas como tais pelas elites
oficiais dos seus países, entre elas os professores Bigaglia,
Corrodi e Yanz; completa enfim o seu formidável plano de educação
técnica com as instituições paralelas de ostentação e experiência,
como o museu agrícola e florestal de Lisboa, a estação
ampelo-filoxérica de Torres Vedras, as estações químico-agrícolas, o
hospital veterinário de Lisboa, os sindicatos vinícolas que ele
organiza e regulamenta (D. D. 24 Novembro e 22 Dezembro 1887, 19 e
27 Dezembro 1888, 14 Fevereiro 1889; P. P. 1 e 30 Dezembro 1887, 14
Novembro 1888.
Mas a acção de Navarro não fica por
aqui.
Reorganiza os serviços gerais do seu
ministério (D. 28 Julho 1886), e encarando seguidamente cada um dos
serviços públicos seus dependentes, cujo funcionamento interessava o
fomento nacional, fez passar por todos eles uma corrente de ar
fresco e novo, sacudindo-os no seu adormecido torpor. É assim que
são remodelados os serviços agrícolas e antifiloxéricos (D. D. 9
Dezembro 1886), os serviços pecuários (D. 16 Dezembro 1886), os
serviços coudélicos (D. 22 Setembro 1887), os serviços veterinários
(P. 16 Junho 1886), o conselho superior de comércio e indústria (D.
3 Fevereiro 1887), os serviços zootécnicos (D. 3 Janeiro 1889 e P.
24 Janeiro seguinte), finalmente os serviços hidráulicos (D. D. 2
Outubro 1886 e 24 Fevereiro 1887), esses mesmos que no dizer de
Sertório do Monte Pereira são o eixo do problema agrícola português.
A agricultura tinha assim, dada a
nossa feição económica, um lógico lugar de destaque no plano de
Navarro. Neste capítulo, porém, a sua acção ainda se fez sentir nas
tentativas feitas para a vulgarização do emprego dos adubos químicos
(P. F. 30 Dezembro 1886 e 19 Setembro 1888, R. 27 Dezembro 1888), na
arborização das formosíssimas serras do Gerês e da Estrela (D. D.13
e 27 Dezembro 1837), – Serra da Estrela que lhe ficou devendo as
páginas maravilhosas de uma autêntica jóia literária e cujas sombras
e cujas riquezas a ele há hoje ainda primariamente a agradecer e em
tantas rápidas, dispersivas, estratégicas medidas, despachos e
cuidados que o natural cansaço dos meus ouvintes, que não o seu
minguado valor apenas me força a omitir. Só o crédito agrícola, não
sei como, lhe escapou... Porque apropria estatística agrícola, como
a estatística demográfica, de resto, lhe não passou despercebida, na
necessidade da sua fundamental função informadora: quer ordenando o
recenseamento agrícola e pecuário (P. 3 Dezembro 1887) quer
preparando com Eduardo Vilaça e de acordo com o congresso de S.
Petersburgo o notável censo da população de 1890.
Mas um último aspecto da sua obra
(pelas suas derivações e reivindicações em nossos dias) não pode
naturalmente ser deixado no esquecimento por quem tem a honra de
falar, além de em seu nome próprio, um pouco também em nome de uma
sociedade de turismo, a Propaganda de Portugal, aqui representada
aliás pelo mais prestigioso dos seus dirigentes efectivos – essa
vigorosa têmpera de organizador que é o seu presidente e meu querido
amigo, o engenheiro Vasconcelos Correia. Navarro, com efeito,
anteviu plenamente, com notável antecipação sobre todos os homens
públicos do seu tempo, as possibilidades e as riquezas que da
exploração do turismo podiam facilmente provir para a economia
portuguesa, como factor positivo apreciável a introduzir na nossa
balança de pagamentos, guardadas mesmo as proporções devidas em
relação aos exemplos fornecidos pela economia suiça, italiana ou
francesa. Para este efeito havia principalmente
/ 28 / a
resolver o problema das comunicações, ligando para a comodidade da
admiração estrangeira as belezas perdidas das nossas diversas
regiões e paralelamente a dotar as cidades, as termas, as praias dos
requintes do conforto, da sanidade e da arte que tornassem
aprazíveis as excursões e as visitas. É o que Navarro fez
subordinando também a este pensamento a construção das estradas e
espalhando em Coimbra, Viseu, Figueira da Foz, Serra da Estrela,
Gerês, Porto e Lisboa, entre outros muitos pontos do país, uma forte
documentação do seu elevado modo de pensar a este respeito.
Isto para não falarmos ainda da sua
pequena pátria adoptiva – de Luso e do Buçaco.
Tal é, meus Senhores, nos seus
traços sumários e, salvos alguns aspectos que propositadamente
guardámos para final, a obra gigantesca do grande ministro de 1886.
Tal é a obra que uma política tacanha e rotineira abafou
teimosamente à nascença. Tal a obra de Emídio Navarro que eu bem
quisera ter sabido projectar, nos seus delineamentos ao menos, sobre
os vossos espíritos, mas para a qual as minhas apagadas palavras
eram uma obscurecida lanterna mágica em muito indigna desse assunto
e deste lugar. Foi a teimosia do dedicado secretário da comissão
executiva da construção do monumento. o Dr. Lúcio Abranches, que
decididamente viu pelas lentes de aumento da sua amizade os fracos
recursos de quem, minhas Senhoras, por tão longo tempo tem abusado
da vossa paciência e da vossa gentileza. Fique o erro desse meu
querido amigo lançado à conta do muito que lhe deve esta homenagem e
para único testemunho, no seu caso, de que as perfeições não são
deste mundo...
Felizmente, porém que a obra de
Navarro vivia já na vossa admiração e no vosso reconhecimento! Essa
consoladora certeza que já tinha imperado no meu espírito para me
não ver forçado a declinar, embora contristadíssimo, a honra que me
era dada – essa consoladora certeza me resta ao menos quando daqui a
poucos minutos eu abandonar esta tribuna: as minhas palavras não
roubaram o lugar a ninguém, porque nenhuma palavra se tornaria
necessária para resumir melhor do que pela vossa simples presença a
admiração e o reconhecimento de que, interpretando o sentimento
nacional, estamos todos possuídos neste momento.
Minhas Senhoras e Meus Senhores:
Vou terminar.
Falando um dia de Navarro, Carlos
Lobo d’Ávila repetiu com raro acerto a sentença de Victor Hugo:
Les coeurs de lion sont les vrais coeurs de père.
Não há dúvida. Ninguém atacou com um
ímpeto mais irresistível o adversário que ousasse defrontar-se e
medir-se com ele. Mas ninguém, por seu lado, cultivou com mais
esmero as flores do seu jardim que, ao contrário de Numa, nunca foi
ele que temeu de ver espigadas e sobranceiras; ninguém serviu com
lealdade maior o seu amigo; ninguém socorreu com mais nobreza os
seus contendores na adversidade; ninguém patrocinou com mais carinho
os que se acolhiam à sua defesa, e ai dele! Tantas vezes lhe pagaram
com negra ingratidão as desculpas e os favores; ninguém amou os seus
com mais apaixonado afecto e mais paternal solicitude, amparando na
esposa a que foi delicada enfermeira da sua alma atribulada,
prolongando no triunfo dos filhos as suas próprias ambições,
sorrindo com desvanecido enlevo ao atrabiliário bulício dos
primeiros passos dos seus netos; ninguém serviu com mais acrisolado
zelo esta sua pequena pátria adoptiva de Luso, onde a sua rude
têmpera beirã procurou consolo para tantas desilusões e que no seu
coração, mais talvez do que a sua pátria, era a sua terra, a sua
pátria pequena, como há pouco acentuei, servindo-me do concêntrico e
enternecido qualificativo de Raymond Poincaré para a sua dourada
Lorena!
As nobres e elevadas qualidades
afectivas de Navarro casam-se bem, na verdade, com esta paisagem
maravilhosa. As árvores seculares da mata dão-nos como ele a ideia
do domínio e da força e, na sua variedade indefinida, lembram-nos
também a pujante polimorfia das suas aptidões intelectuais; mas os
vales são sombreados e amenos, doira-os aqui e além um raio
palpitante de sol e no chão húmido a relva fofa abafa por vezes os
passos num tom de recolhimento e de mistério. Devia sentir-se bem
aqui quem, como Navarro, ambicionava, reflectia, amava e sofria: das
Portas da Rainha ou de Coimbra, de Santo Antão, do Calvário ou da
Cruz Alta divisam-se, com efeito, indefinidos panoramas, longínquos
e esfumados horizontes, possibilidades eternamente novas; mas nos
vales dos Fetos ou dos Abetos, no rumorejar da Fonte Fria ou nas
imediações do Convento ou da Cascata, a abóbada cerrada das suas
árvores, a pujança e o embrenhado da sua vegetação, o correr brando
e cristalino da sua água fez-se, com efeito também, para confidência
dos nossos pensamentos, para cenário dos nossos amores ou para
consolação das nossas lágrimas.
Como Navarro, porém, acima de tudo
era dotado da qualidade máxima que através do nosso modesto esquema
temos visto sempre esmaltando-Ihe o perfil – a vontade esclarecida –
o poeta Iírico dos «Quatro dias na Serra da Estrela» não era
homem para quedar-se nestes seus amores espirituais em um cómodo
platonismo. Dispondo dentro ou fora do poder de uma enorme
influência, usou dela largamente em benefício desta terra, quer
pondo-a em rápida comunicação com os centros da população e do
turismo nacional
/ 29 /
(e sob este último aspecto é típica a projectada e ainda hoje não
concluída estrada a Penacova, de que tanto se vem falando) quer
dotando-a de melhoramentos locais importantíssimos, desde a
cenografia do Hotel do Buçaco (a que estão também ligados os nomes
de Manini e Ernesto de Lacerda) até o alargamento da mata e desde o
estabelecimento balnear de Luso, ao tempo modelar, até a sua estação
de correios e a sua escola.
Nestas condições, se em muitos
outros pontos do país poderia erguer-se o busto que ensinasse a
fixar às crianças portuguesas as másculas feições de Emídio Navarro,
em nenhuma outra terra como esta ele se levanta como um dever tão
alto de agradecimento e de respeito.
Tácito conta naquele seu latim de
bronze (nesse latim que a subida educação humanista de Navarro
aprendera a penetrar e a cultivar com afinco); Tácito conta que,
apesar de Roma nunca ter erguido uma estátua a Bruto, não havia
forasteiro que não perguntasse onde era a estátua de Bruto. E esta
simples pergunta, acrescenta o velho e profundo historiador romano,
era a melhor estátua que lhe poderiam ter erguido.
Felicitemo-nos todos, meus Senhores,
no entanto, por que de hoje em diante não fique em Luso sem resposta
uma legítima e idêntica interrogação dos forasteiros: e àquele que
quis tornar a sua pátria mais rica não aconteça o mesmo do que
àquele que quis tornar a sua pátria mais livre!...
Luso foi, neste ponto, mais grato do
que Roma. Em alguma coisa lhe havia de levar a palma...
Mas deixem-me, para terminar,
dizer-lhes também: Quando uma comemoração desta natureza não é
apenas prestada no vago rumor da praça pública que o homenageado em
sua vida só distraidamente conheceu; quando, pelo contrario, um
preito como o nosso tem por cenário a terra que sobre todas ele amou
e serviu, é minha ideia de que a sua campa se não cobre apenas de
uma pedra mais alta, onde o seu nome pode ler-se em letras mais
solenes, mas que sobre o seu corpo inanimado, a acalentá-lo e a
reconstituí-Io, piedosamente se desfolham as mais perfumadas e
deslumbrantes flores que a vara mágica da bondade humana floriu no
jardim sem igual do nosso coração.
E, meus Senhores: se, para lenitivo
de tantas mágoas, Navarro tão enternecidamente cultivou e amou as
flores; se a sua última vontade, aqui expressa, foi a de que o seu
corpo baixasse, além no cemitério, ao germinal da própria terra –
que nesta abençoada terra de Luso as mais belas flores de Portugal
velem e perfumem para sempre o seu repouso e a sua glória e,
cercando o pedestal desta estátua, exaltem, para sempre também, a
sua lição e o seu exemplo.
Tenho dito.
QUATRO DIAS NA SERRA DA ESTRELA
(1)
(Notas de um passeio)
I
No corrente anno do nascimento de
Nosso Senhor Jesus Christo em agosto, não sei em que dia da semana
ou do mez, porque no campo não tomo conta aos dias, estava eu,
sub tegmine fagi, muito bem repimpado numa poltrona feita de uma
raiz enorme de pinheiro, na fonte do Carregal, na matta do Bussaco,
cavaqueando com o nosso bom amigo Silvestre de Lima, director Geral
de varias coisas no ministerio das obras publicas, e entre as quaes
se comprehende a superintendencia suprema nas mattas do reino.
O tegmine fagi é apenas uma
sujeição á conhecida citação do Virgilio. No Bussaco não ha faias,
ou antes, não é naquelle sitio da matta que ellas se encontram.
Apparecem alguns faias, poucos, de passagem, montados em
burricos, mas não enraizam nem medram no sólo. Deveria dizer
«repimpado á sombra dos annosos cedros» se o Silvestre de Lima não
me tivesse advertido de que essa expressão tambem não é
botanicamente verdadeira. O famoso cedro do Bussaco,
descripto e cantado em prosa e verso como irmão e rival do cedro do
Libano, é tudo menos cedro. É um cypreste, cupressus! Tal
qual como acabo de o dizer.
É o cupressus glauca, tambem
chamado lusitanica por não haver na Europa outro massiço daquelas
arvores frondosas tão importante como o do Bussaco, e por ser de
PortugaI, que ellas se espalharam por Hespanha, França e Outros
paizes. Para Portugal vieram não se sabe bem se de Gôa, se dos
Açores. Em vida do snr. Moraes Soares procuraram-se no archipelago
açoriano noticias dos ilustres avoengos d’aquellas respeitaveis
matronas, mas não se achou parentella viva, apparecendo, porém,
aIguns soallhos feitos de madeira d'aquelle arvoredo, o que deixou a
suspeita de que a familia fôra ali exterminada a machado n'um
horroroso arboricidio. O snr. Lopes Mendes e outros cavalheiros
fizeram indagações analogas em Gôa, e ahi parece que nem nos soalhos
appareceram vestígios da linhagem deste arvoredo fidallgo. As
chronicas do convento são muito escuras a respeito do caso, e as
investigações ulteriores nada apuraram. O mais seguro é dizer-se que
veio não se sabe d'onde. Certo é que, no Bussaco, vive como em
terra, que é já muito sua, com uma longa sucessão de gerações, todas
em pé, o cupressus lusitanica, ou cypreste lusitano. Pelos
modos, a família do cypreste é muito numerosa e variada, não sendo
uma das suas menores exquisitices o ter o nome de funebre uma
variedade, que se emprega na ornamentação de parques e jardins, e
que no feitio se distenceia enormemente
/ 30 / da
conhecida arvore, o cupressus fastigiata, de forma esbelta e
esguia, com que se marginam os arruamentos dos cemiterios. Ora vão
lá fiar-se em nomes de botanica! E aqui está, o que no momento lhes
posso dizer do cupressus, ou cypreste.
Dos cedros, segundo me contou o
Silvestre de Lima, há só tres variedades conhecidas: o do Hymalaya,
o do Libano, e o do Atlas, ou atlantico. A rammia do cedro,
do authentico, é formada por um agrupamento de agulhas, mais ou
menos finas, sermelhantes ás do pinheiro, essencialmente differentes
dos ramusculos que caracterizam o cupressus. Há no Bussaco alguns
exemplares d'aquellas tres variedades de cedros, bem como de muitas
outras essencias florestaes, dos paizes mais distantes e das
latitudes mais diversas, como o laurus camphora, ou arvore da
camphora. A matta possue hoje cerca de quinze mil arvores de
plantação moderna, na maior parte coniferas. Voltando aos cedros,
direi, que mesmo á entrada da portada do convento, do lado esquerdo
da escada, ha um soberbo cedro do Hymalaya, de agulhas miudas e
finas, e que pelas suas dimenções deixa a gente espantada ao
saber-se, que ainda não tem vinte annos de existencia. Fronteiro a
elle, está um velho cupressus, pertencente ao grupo dos mais antigos
da matta, e muito conhecido de todos os frequentadores do Bussaco.
Já pouca ramagem alimenta, e estende os seus braços descarnados,
espalmados e alvacentos, como ossada de um grande cetaceo, que
comido pelos lobos marinhos e deslavada pelas aguas! No terreiro
contiguo tem o agonisante cupressus alguns companheiros, que
supportam com inexcedível galhardia o peso dos annos, e que das
alturas enormes da sua ramaria copada parecem dizer desdenhosamente
ao cedro do Hymalaya, que ainda precisa comer muitas razas de sal,
ou sugar muitos litros de resina, para lhes ver o topete. Podera!
Teem tres seculos de existencia e engorda! E aqui está o pouco que
me ocorre dizer a respeito dos cedros authenticos e verdadeiros em
conpetencia com os falsos cedros, ou cupressus, que
predominam no Bussaco.
Estava, pois, muito bem repimpado na
fonte do Carregal, cavaqueando com o Silvestre de Lima, ermitão da
matta, o qual passa ali uma grande parte dos mezes de verão, tanto
para cumprir os seus deveres officiaes de velar pelo desenvolvimento
da arboricultura, como para tratar de uma bronchite chronica, de que
padece. Arranjou para isto uma receita sua. Á hora, em que a cigarra
canta, vae sentar-se nas portas de Coimbra e ali passa um
largo espaço, resfolegando com toda a força dos seus pulmões. A essa
hora, a brisa do noroeste traz para aquelle sitio as emanações dos
pinheiraes, de que estão revestidos aquella vertente da montanha, e
os seus contrafortes. Diz elle, que por aquelle modo absorve mais
pura, e Sem passar pelas mãos dos boticarios, a seiva do pinheiro
marítimo; e como a fé é quem nos salva, acha-se
consideràvelmente melhor depois d'alguns dias daquelle resfolegar á
hora da cigarra. Quem quizer topar com elle a essa hora, vá
procural-o ás portas de Coimbra.
Muito bem repinpado, como ia
dizendo, em cavaqueira com o Silvestre de Lima, dava-me elle conta
dos ultimos visitantes conhecidos que tinham andado pela matta. Aqui
esteve fulano, e mais sicrano, e mais beltrano. O Bussaco é hoje
frequentado por um grande numero de touristes. O caminho de
ferro da Beira-AIta passa no sopé da montanha, a oito ou dez minutos
de distancia do entroncamento da Pampilhosa. Quem vae veranear do
sul para o norte, raro deixa de visitar a formosa matta, que se
anuncia desde pouco adiante de Soure, num convite de luxuriante
verdura; quem desce da Beira-AIta, considera a visita como romaria
obrigatoria; na gente das provincias do norte começa a manifestar-se
a mesma devoção. Além disso, as praias da Figueira, de Espinho e da
Granja, tão frequentadas desde o meado de agosto em diante, ficam
perto. O Bussaco é uma excelIente estação preparatoria, para ali se
passarem os ardores calmosos de julho e agosto. Junto do convento
construiu-se este anno, por conta do thesouro, um restaurant.
O mesmo individuo, que o tomou de arrendamento, arrendou egualmente
algumas casas novas (por tal signal que de um mau gosto inexcedível)
tambem mandadas construir por conta da administração das mattas
supponho que com dinheiro surripiado no orçamento á arborisação das
dunas. O convento, por aquelle lado, já está soffrivelmente
mascarado e mascarrado á modenna! Mas voltemos ao caso: quem quizer
passar alguns dias no Bussaco ali mesmo encontra gasalho e comida –
o que é circumstancia absolutoria, ou pelo menos muito attenuante da
irregularidade orçamental, que deixo denunciada. Em Luzo ha dois
hoteis. O serviço não é um primor, as commodidades não abundam, mas
o preço também não escalda: 800 réis por dia. E come-se á tripa
fôrra! O melhor petisco é o belIo leitão assado. N'um d'esses
hoteis janta-se de ordinario ao ar livre, em meza estendida debaixo
de copado castanheiro. De Luzo ao Bussaco vae-se perfeitamente a pé.
É como quem vae da baixa ao passeio da Estrela. E para
afastar qualquer fadiga, ha o recurso aos burricos, que são aqui de
raça menos fina, e muito mais malcreados que os seus colllegas de
Cintra. Como se vê, a visita ao Bussaco faz-se hoje em
satisfactorias condições, e por isso, sendo já consideravel a
quanltidade dos visitantes, tende ella a crescer enormemente de anno
para anno, desde que se abriu o caminho de ferro da Beira-Alta.
Além desta colonia adventicia, e que
tados os dias se renova, ha no Bussaco e em Luzo colonias
permanentes. O convento tem casas que se alugam. Nunca
/ 31 / ficam
desoccupadas. Ha familias, que aIi se demoram dois e tres mezes. A
pureza do ar, e a frescura do arvoredo encantam e são de muito valor
hygienico. Vive-se ali n'uma convivência intima, quase patriarchal.
Á bocca da noite, reunen-se as familias n'um grande salão de
baile, ornamentado de cortiça, e dansa-se animadamente ao som de
um piano, com grande escandalo do Francisco. O piano no velho
cenobio, açoitando com as suas notas estridulas as faces macilentas
dos frades, que em telas apodrecidas se perfilam ao longo das
paredes do claustro! O’ tempora!
Ao Francisco se deve em parte a
conservação do Bussaco. Era um servidor dos frades. Elles foram-se,
e elle ficou, cuidando sempre da egreja. Quando os conventos e
respectivas cereas se venderam ao desbarato, alguns individuos da
Mealhada e Coimbra entenderam que Bussaco era bom campo de
exploração. Os cupressus, os carvalhos e os pinlheiros
seculares haviam de dar magnífico taboado! Metteram-se de gôrra com
um governador civil, que lhes poz tudo a caminho do barbaro intento.
Quando tal soube, o Francisco partiu de carreira, deixando a malta e
a sua querida egreja, e foi procurar o pae dos snrs. Serpas, e
lavado em lagrimas deu-lhe parte do malefico plano. O snr. Manuel de
Serpa correu a Lisboa e o Bussaco foi salvo, escapando á devastação
geral. Por tal diligencia merece o Francisco as honras de benemerito.
Mas o Francisco não perdeu o antigo
feitio. A invasão da matta pelos melhoramentos e tambem pelas
desenvollturas da epoca, escandalisa-o. Sae de noite da sua tóca, e,
quando o ruido escarninho do piano se acolma quando todos dormem, o
Francisco percorre a matta, inspecciona as modificações, que nella
se vão introduzindo, examina as construções novas, que se levantam,
e murmura longas apostrophes de reprovação e anathema! Elle até
amaldiçôa as arvores novas, de ramaria franjada e variada, que
vieram reprovar a matta! Para elle o Bussaco só devia ter carvalhos
e cedros. E se alguem lhe disser, que aquellas arvores adustas, que
venera e acata com supersticioso respeito, não são cedros mas
cyprestes, responderá que o mundo está perdido e que os pedreiros
livres, tendo roubado tudo, até roubaram o nome ás suas queridas
arvores!
Pobre Francisco! É por isso, para
não ver a invasão que o fere no imo d'alma, para não assistir ás
profanações da clausura, que elle só dá os seus passeios a horas
mortas. Os frades do claustro sahem então das suas tellas para
acompanharem o seu velho servidor nas suas digressões solitárias; e
os gritos do corujão, que se faz ouvir pelo mais adiantado da
noite, reflectem o soluçar d'esses espectros, congregados nos sitios
mais sombrios da matta, ao abraçarem-se no velho Francisco num
grande chôro lamentoso!
E agora reparo, que ainda lhes não
disse, em que estava cavaqueando com o Silvestre de Lima, na fonte
do Carregal, e que rellação teve essa conversação com o meu passeio
á Serra da Estrela. Fica para a seguinte.
II
Eu fallava do Francisco, o velho
sachrista do convento do Bussaco; e já agora sempre direi a razão,
porque elle, aberrando dos seus principíos fundamentaes, ousa
affrontar a luz do dia e a presença profanadora dos visitantes,
quando estes pretendem vêr a egreja do convento.
Na egreja ha tres imagens, de
escultura italiana, que constituem verdadeiros primores artisticos.
São de meio corpo, e representam: uma dellas a pecadôra arrependida
de Magdala; a outra, S. Pedro – et super hanc petram edificabo
ecclesiam meam; e a terceira a Mater dolorosa, a que
inspirou aquelle soberbo cantico mais belo ainda na singelelza
lancinante da letra do que no esplendor da musica, de que o revestiu
Rossini, e que começa:
Stabat mater dolorosa
Juxta crucem lacrymosa
Dum pendebat filius
Das tres a mais formosa é a da
Magdalena. Espanta, realmente, que aquella formosura de cabeça tenha
até hoje escapado á rapinagem grauda e miuda, que se tem apossado da
maior parte das preciosidades artisticas, que existiam nos
conventos... e até fóra d'elles. Aquella cabeça, de menos de metade
do tamanho natural, vale alguns contos de réis. Vejam se a sua
conservação no Bussaco é ou não caso para espanto! N'aquelIe rosto
casam-se, em harmonia sublime, os traços de uma belleza incomparavel
com os estragos de uma rude penitencia e os signaes inequívocos de
amargura profundissima. As madeixas soltas de uma opulencia
luxuriante, teem um não sei que de mádido, que parece ressumbrar
pranto; e as veias azuIadas, que se lhe desenham sob a pelle de um
branco opalado, parecem traduzir simultaneamente a delicadeza de uma
rica organização feminina, que se atesta no oval correctissimo do
rosto, e a morbidez de um sangue macerado de continuo pelos ceIicios,
que lhe cingem os rins, e dessorado nas Iagrimas que em fio lhe
escorrem dos olhos embaciados. A peccadora arrependida está ali
fielmente representada, como a creou o Evangelho. Eu nunca entro na
egreja do convento, que não me quede, esquecidamente, alguns minutos
a comtemplar aqulelle primor da arte italiana!
A cabeça de S. Pedro é também muito
notavel; mas como a dôr do santo, por ter negado tres vezes o
mestre, é de um mysticismo pouco comprehensivel, não impressiona
essa imagem tanto como a cabeça da Magdalena. O meu amigo Sousa
Martins, para explicar
/ 32 / a Carlos Tavares, que ainda não visitou a egreja do
Bussaco, a expressão da cabeça de S. Pedro, dizia-lhe que figurasse
na sua mente a cabeça de um homem, que tivesse tomado uma dose forte
de coloquintidas. Não sei se a expllicação é satisfactoria,
porque não sou medico, nem experimentei ainda o tal medicamento.
Protesto até não o experimentar; porque, em vista de tal explicação,
que me pareceu ter laivos rabelaisianos e voltairianos, suspeito que
quem o tomar deve vir a achar-se em dolorosos apertos! O que é certo
é que Carlos Tavares deu-se por inteirado, e não pediu mais
explicações a respeito da expressão da cabeça do santo.
Escrevo descosidamente, misturando
alhos com bugalhos, como costuma dizer-se. Ainda não contei o
assumpto do meu cavaco ameno com Silvestre de Lima, e a relação
intima d'esse facto com a serra da Estrella, e já enxertei no texto
d'estas notas os nomes de Sousa Martins, o abalisado clinico e
illustradissimo professor da escola medico-cirurgica de Lisboa, e de
Carlos Tavares, um orador distinctissimo, que promette ser um médico
não menos distincto, porque conncluiu este anno o seu curso
n'aquella escola, obtendo as classificações mais subidas em merito.
Soceguem, que tudo lhes será explicado. Não tardará que eu Ihes
conte tudo por miudos. Por agora, limito-me a prevenir os meus
amaveis Ieitores (se é que os tenho) de que nestas rapidas e
ligeiras notas ha um capitulo de um alto valor humanitario e
scientifico – o qual lhe não é dado por mim (ça va sans dire)
mas pelo nome de Sousa Martins. É uma prevenção salutar para com
essa isca, ter quem até lá me ature.
Cá volto ao Francisco, e á imagem da
Mater dolorosa. Esta imagem sob o ponto de vista exclusivo da
plastica, não é inferior á da Magdalena; mas, sob o ponto de vista
do ideal artístico a que o esculptor tinha de attender, é-lhe muito
inferior. Se me é licita a comparação, direi que ella traduz as
bellezas e os defeitos das madonas de Raphael. Aquella Matter
dolorosa debruça-se sobre o corpo inanimado do fillho, e as lagrimas
deslisam-Ihe pelas faces, mas sem n'ellas cavarem os sulcos
profundos da dor inconsolável. Tire-se d'ali aquella imagem;
arranquem-lhe do peito as espadas, raspem-lhe do rosto as Iagrimas
crystalinas, e a mesma esculptura Ipoderá servir, e talvez muito
melhor, para significar a virgem alvoroçada e pudibunda, que se
inclina, n'uma primeira confissão de amor, para o amante ajoelhado a
seus pés. Na Magdalena não succede assim. Raspem-Ihe do rosto as
Iagrimas, e logo ao primeiro relance se verá, ou que a imagem foi
mutilada d'aquelle seu complemento, ou que o esculptor quiz
significar que as Iagrimas se tinham evolado das palpebras
escandecidas por effeito do ardor da febre. Na Mater dolorosa,
a dôr é, por assim dizer, convencional, e resulta, menos da
expressão do rosto, do que dos accessorios da imagem. Tambem nas
suas virgens e madonas, Raphael traduziu principarmente a belleza
mundanal. Se algumas d'ellas são o retrato da Fornarina, a
sua sensual amante! A belleza divina vem-lhes dos accessorios, que
não da expressão da figura, ao contrario do que se nota nas virgens
de Murillo, pintor natural de um paiz mais profundamente religioso,
que a Itália, onde o catholicismo não tem sido mais que um paganismo
disfarçado...
Se alguns dos snrs. criticos
encartados da Arte (com A maiusculo) entende que escrevi
tolice grossa, metto a viola no sacco, e apresento-lhes as minhas
humildes desculpas.
As tres imagens, que deixo
rapidamente descriptas, constituem tres primores artisticos de alta
valia, e por certo teriam sido já rapinadas, se o Francisco, o velho
sachrista, as não defendesse com a solicitude desconfiada de
um cão de guarda. É por isso, e só por isso, que sáe de dia da sua
tóca! Elle é o depositário das chaves da egreja, e de ninguem as
confia. Quando entram visitantes, perfila-se ao pé do altar-mór,
onde estão as tres imagens, e não as perde de vista, com medo de que
algum d'elles possa furtaI-as ou danifical-as! Diga-se porém, para
desdouro do meu pobre Francisco: este zelo, que indubitavelmente tem
sido o salvador d'aquellas preciosidades, é inteiramente estranho a
qualquer concepção do beIlo na arte. É o zelo religioso,
desprendido de qualquer ideal artistico. Porque o Francisco mostra
egual solicitude por um presépe, com figuras grosseiras de barro,
que está ao fundo do côro. Para elle o boisinho e os tres
reis magos do presépe, que não valem nada, valem tanto como a
cabeça da Magdalena! Ha na egreja outras imagens e figuras; mas só
as tres, que deixo descriptas, e as do presépe, é que Ihe inspiram
aquella solicitude feroz, capaz de o levar ao assassínio contra uma
tentativa de furto. As outras deixaria elle furtar sem pena de
maior. O porque desta singular mistura do presépe com
aquellas tres imagens, é que nunca pude averiguar.
Para acabar com o Francisco, lá vão
mais algumas pennadas. O velho sachrista é muito parco de
comentários e explicações, menos quando o interrogam a respeito da
batalha do Bussaco, ferida em 27 de setembro de 1810 entre o
exercito francez, commandado por Massena, tendo Ney, Junot e Regnier
por Iogares-tenentes, e o exercito anglo-Iuso, commandado por
Wellington, com os generaes Leith e Hill. Essa batalha testemunha o
erro crasso, que praticaram dois generaes illustres: Massena
atacando posições inexpugnaveis, cuja posse pela victoria lhe não
podia dar mais do que lhe deu depois da derrota a passagem de
Boialvo; e Wellington defendendo posições, cuja conservação pelo
malogro do ataque não impediu, que tivesse de retroceder
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precipitadamente para se acolher ás linhas de Torres Vedras. Sob o
ponto de vista da estrategia militar, a batalha do Bussaco foi um
duplo desastre. Aliquando bonus dormitat Homerus. E foi para
perpetuar a memoria d'este duplo erro de officio, que o snr. Fontes
mandou Ievantar, no ponto mais culminante da linha de defeza, um
monumento, que um raio já partiu uma vez, e que os solldados do 14
de infanteria são incumbidos de guardar de verão, o que não é
desagradavel, e de inverno, o que lhes é extremamente incommodo e
aborrecido!
O Francisco conta as peripecias da
batalha, e mente, que é mesmo um condemnar para a sua alma! Só póde
ter como attenuante para tamanhas pêtas o ter assistido á batallha...
de longe, ao abrigo da matta, onde raras ballas chegaram. A esse
tempo tinha elle quinze annos feitos. É já velhote, como se vê, mas
de rija tempera, pois que tem resistido a tres ataques de apoplexia.
Esta força de resistencia vital poderá talvez explicar-se pela forma
especiaI do seu nariz, muito parecido, nas dimensões e no colorido
com a carúncula de um peru, O sangue afflue apopleticamente... mas a
massa cerebral fica illesa, porque a caruncula do nariz incha e o
absorve. O que não é pêta, e isso conta elle conscienciosamente, é
ter o general Wellington dormido num dos quartos do convento, que
ainda se mostra no estado, em que então se achava, e ter elle tido o
cavallo amarrado á terceira oliveira do terreiro, contiguo á entrada
do convento, donde expedia as suas ordens, quando os incidentes da
batallha o não obrigavam a aproximar-se mais da linha de fogo.
N'este capitulo, o Francisco faz narrações assombrosas, que deixam a
perder de vista, no exaltar grandíloquo, as proezas dos heroes de
Homero! Se, porém lhe fallam dos frades, do convento, da vida antiga
e socego religioso, que ali havia, o Francisco toma-se de repente
meditabundo e carregado, e quasi sempre responde com estas unicas
palavras: n'esses tempos havia menos luxo e mais religião! E
responde assim, dardejando um olhar de colera por sobre os chapeus
de telha e louçainhas garridas, tapageuses, das
visitantes que o interrogam. É um ollhar, que vale por um anathema
contra a violação e profanação da clausura,
Além de guarda da egreja, o
Franoisco é o relojoeiro. Tambem não pude saber a razão da
mania; mas é certo que o velho sachrista não consente que alguem
cuide dos sinos e do relogio. De uma vez, que quizeram entregar esse
cuidado a outrem, para se remediarem os continuados desmandos em que
o relogio ali anda, o Francisco chorou taes lagrimas, que não houve
remedio senão fazer-lhe a vontade. Como o sino de oiro,
cantado por Thomas Ribeiro, desperta nas mornas solidões das noites
indianas a recordação das nossas passadas grandezas, assim talvez o
sino plangente do Bussaco desperta na alma do pobre Francisco uma
ressurreição da clausura, que elle pranteia, e á qual persiste em
apegar-se, a despeito de tudo, com a tenacidade de uma alma, que não
póde viver de outra vida! O sachrista do Bussaco e o actual ministro
do reino teem esse ponto de contacto: um fundiu em magnificos versos
acrisolados sentimentos, que outro exprime inconscientemente em
magoas do coração. O humilde sachrista não pedirá uma esmola ao
radiante ministro; a unica esmola, que poderia pedir-lhe, seria que
authenticasse a promessa, que para o consolar lhe fez Silvestre de
Lima, de o enterrar no Bussaco, plantando-Ihe um cedro, um
cupressus, em cima da cova, Um bello ideal de poesia: o passado
rejuvenescendo viridente pelas transformações da natureza! Mal sabe
o pobre Francisco, que esse ardente desejo seu corresponde a
affirmações pantheistas, que se acommodam muito mal com o juizo
final do valle de Josaphat e outras doutrinas religiosas, que os
seus frades lhe ensinaram!
E agora acabo de vez com o Francisco
e muito solemnemente lhes prometto, que no capitullo seguinte
contarei o assumpto principal da minha conversação com o Silvestre
de Lima na fonte do Carregal, e bem assim a connexão intima d'essa
conversação com os nomes de Sousa Martins e Carlos Tavares, com a
explicação das razões que no dia seguinte deram commigo na serra da
Estrella, e o mais que se seguiu, muito curioso em aventuras e
informações de varias especies,
Até que a final vou dizer qual era o
assumpto principal da minha conversação com o Silvestre de Lima, aos
tantos de agosto, pelas quatro horas da tarde, na fonte do Carregal,
que passa por ser a de mais fina agua de todas as fontes do Bussaco.
III
Silvestre de Lima estava muito
choroso. Alguns dias antes, uns malvados tinham deitado fogo ao
matto grosso da vertente occidental da montanha (maleficio já
renovado depois d'isso) e por pouco que o incendio não salteia na
matta. O sino tocou a rebate; mas, ao contrario do que noticiaram as
gazetas – e essa falta de verdade escandalisou profundamente o nosso
amigo – ninguém acudiu da povoação de Luzo ou das aldeias visinhas.
A gente de Luzo é de seu natural bravia, e olha com olhares pouco
benignos para os forasteiros, que lhes dão abundantes elementos de
commercio, e para os progressos, que pela affluencia d'elles se
realisam, e que lhe augmentam as condições do bem estar. A matta,
para ella, não é senão um repositorio de boas traves e vigas, que
muito bem podiam ser cortadas para desfazer em taboado, e de matto,
que muito bem podia ser queimado, para d'elle
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relvagem, que servisse ao pascigo do gado. Por tanto, se a matta
ardesse, que a levasse o diabo. Até seria um beneficio!
Mas voltando á vacca fria: certo é
que uma grande parte da formosa matta do Bussaco, senão toda, teria
sido devorada pelas chamas, se não acudisse ao incendio o
destacamento do 14. Os soldados atiraram-se a elle com todo o denodo
e valentia, e voltaram de lá triunphantes, arrastando grandes tições
da ramaria com que o tinham abafado, e vangloriando-se... de terem
derrotado os francezes! As faulhas do incendio fizeram rebentar, sob
a fórma picaresca, tradicional das casernas, uma faulha do antigo
valor guerreiro, que só pede um ensejo para se manifestar, e um
general para o dirigir. O ensejo é de certo mais facil de achar que
o general. Aquelles solldados, que tinham derrotado o fogo,
sentiam-se de animo capaz de derrotar egualmente os invasores da
patria; e quiçá se lastimavam de o não poderem fazer. Grito
inconsciente de uma aspiração nobilissima... que deveriamos
aproveitar para nos precatarmos!
Os soldados portaram-se
valentemente, e o general em chefe, Silvestre de Lima, elogiou-os em
ordem do dia. Este caso amofinou muito o nosso bom amigo, porque
elle quer tanto aos musgos da matta, como quer aos musgos da sua
cara. Mas não era isso o que principalmente o trazia tão penalisado.
Casos tristes lhe obumbravam o espirito O verão corria muito
damninho para os velhos pinheiros da matta, dignos rivaes dos
cupressus ou falsos cedros. Uma duzia, dos mais venerandos e
corpulentos, tinham baqueado repentinamente, despedaçando o arvoredo
proximo, e deixando em aberto enormes clareiras. Vi uma secção de um
d'esses troncos, que accusava uma edade não inferior a duzentos e
cincoenta annos para o gigante prostrado! Silvestre de Lima
contou-me, que, á hora de maior calor, e quando nem a mais leve
brisa se fazia sentir, os vellhos pinheiros começavam a gemer;
mas com tão fortes e doloridos gemidos, que se ouviam em toda a
matta, causando uma impressão de profunda tristeza, como se fôra um
ser animado, que estivesse a despedir-se d'este mundo, e a
contorcer-se nas agonias da morte! Dentro de breves minutos,
ouvia-se um baque estrepitoso: era o gemebundo pinheiro, que caia,
fuIminado! Tão sabido se tomou o caso, que em soando os taes gemidos
sinistros, o padre Mauricio, capellão do convento, dizia já para o
Silvestre de Lima, seu amigo, e habituaI companheiro de passeio: lá
vae mais um! E punham-se a olhar um para o outro, não rezando as
encommendaçães pelos moribundos, porque a Iythurgia botanica ainda
os não formulou, mas encommendando mentalmente à madre natureza a
seiva, que dera vida e ramagem ao adusto patriarcha da montanha!
Silvestre de Lima, pensando
reflectidamente sobre o caso, qualificou-o de apoplexia, que
elle me explicou pouco mais ou menos do seguinte modo: a ardencia da
temperatura, combinada com a humidade do solo, provoca um forte
movimento ascensional da seiva; as cellulas do pinheiro, que já
estão gastas, estálam, rompem-se; é essa a causa dos gemidos; o
estalar de muitas cellullas na mesma zona de secção produz como que
um córte, e o pinheiro tomba. Eu fiz um gesto de quem não ficava
muito convencido com a explicação, e Silvestre de Lima atalhou,
dizendo:
– Também disse isto ao Sousa
Martins.
– O Sousa Martins está cá?
– Está. Vae-se hoje embora, em
excursão á serra da Estrella.
Despedi-me sem mais conversação, e
parti de corrida. Não queria deixar partir Sousa Martins sem o
abraçar. Em Lisboa, atarefados um e outro com afazeres, que os
prendem todas as horas do dia, só de longe em longe nos avistamos,
trocando, não um aperto, mas um aceno de mãos. Puz-me a procural-o
em Luzo, mas no hotel Serra e no Lusitano ninguem o
conhecia de sua figura. Dei-Ihes um signal inequivoco: a cabelleira
do abalisado medico. Ah! isso sim! está ahi um senhor com uma grande
cabelleira. Não precisei de que me indicassem o seu quarto, porque
vi detraz de uma janella a gaforina enorme do illustre clinico. Não
vá pensar, quem o não conheoe, que elle usa uma cabelleira de tenor.
Sousa Martins traz o caibello aparado comme il faut; mas a
natureza é que zomba da thesoura do cabellereiro, porque lhe poz na
cabeça pilosos tufos indomáveis!
– Então v. como tem passado?
– Bom, e v.?
– Magnificamente. Então volta á
serra da Estrella?
– É verdade. Preciso de alguns
esclarecimentos complementares para o meu relatorio e para um estudo
importante de postos medicos.
– Tenho pena de não o poder
acompanhar; mas com uma hora só, que falta para a partida do
comboio, não me desembaraço.
– Pois eu sinto, que v. não venha,
mas não posso perder um dia, á espera
– Então boa viagem. Se jantar a
horas, ainda lhe venho dizer adeus. E fui jantar. Volltei ao hotel.
Sousa Martins estava atacando as fructas. Faltavam vinte minutos
para a partida do comboio.
– Venha dahi, homem!
– lmpossivel. Precisava, pelo menos,
de duas horas de trabalho, para deixar obra feita.
– Isso remedeia-se. Á noite nós
dormimos, e v. desanca o governo á vontade, se nem ahi o deixar a
telha de querer endireitar o mundo.
Reflecti alguns segundos. A idéa era
magnífica, e decidiu-me. Fui a casa n'um pulo; entrouxei um bom
cobertor, um lençol e uma travesseirinha, para as dormidas ao
relento; metti n'um sacco alguma roupa
/ 35 / branca, e
viveres de conserva; puz uma carabina em bandoleira, pau ferrado na
mão e toca de partirda para a estação do caminho de ferro, em passo
acelerado. Dois minutos depois partia o comboio, começando a
deslisar por debaixo dos nove tunneis, e por sobre os seis
viaductos, que separam a estação de Luzo da estação de Mortagua. Foi
ahi que comprehendi o plural nós, empregado por Sousa
Martins. Em Lisboa, aggregára-se-lhe Carlos Tavares, com quem eu já
travára conhecimento na Ericeira; Carlos Tavares, que resolvera
acompanhar Sousa Martins quasi com a mesma precipitação, com que eu
me decidira a partir, e que se apresentava de sobrecasaica e sapato
fino, parecendo-Ihe que o solo granitico da serra seria liso e macio
como o betume granitico dos passeios do Rocio!
Carlos Tavares, que tem um
formosisimo talento, possue tambem os mais formosos oIhos d'este
mundo, olhos de antilope, doces, humidos, avelludados. Chegam a ser
um escandalo n'um homem de sciencia séria e austera como elle é. E
ao vêl-o, franzino e languido, e assim entrajado, não pude ter-me
que não dissesse a Sousa Martins, com as minhas prosapias de beirão
enrijado em Traz-os-Montes: – este peralta fica-nos por lá desfeito
em bocados!
– Talvez! – murmurou elle com um
sorriso desdenhoso. Mas o caso é que voltou inteirinho. Outro tanto
não sucedeu aos sapatos!
Assim foi, que parti para a serra da
Estrella, excursão de que prometi dar conta, porque como já disse,
ha n'ella um capitulo de alto valor humanitario e scientifico. Esse
era o fim principal da visita de Sousa Martins. O resto foi
accessorio, embora de muito agrado para todos nós. Ahi por nove
horas da noite demos fundo em Mangualde. A razão d'esta paragem
constitue o primeiro capitulo da nossa expedição á serra. Como bons
exploradores, que eramos, juráramos que haviamos de descobrir, pelo
menos, tres segredos; um por cada cabeça. Como já estava descoberto,
o do Cubango, descobrimos o segredo de Mangualde, o de
Gouveia, o da lagoa escura, e o da geleira. Para bem
dizer, só descobrimos verdadeiramente os dois primeiros. Os dois
ultimos, achámol-os mas não os desatámos. Recommenda-os a
futuros exploradores, especialmente o da geleira. D'estes e
outros assumptos tratarei nos capitulos seguintes, sendo o primeiro
destinado á apresentação do phtysico da serra, snr. Alfredo
Cesar Henriques, ex-flanneur do boulevard des Italiens,
e actualmente cidadão da serra da Estrella, sob o patrocinio de
Sousa Martins.
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(1) – É mantida a ortografia da época em
que o documento foi escrito. |