No passado dia 15 de Março,
Eduardo Cerqueira, notável polígrafo aveirense, assumiu as
funções de Presidente da Junta Autónoma do Porto de Aveiro.
Ao concorrido acto que se
realizou no Salão Nobre da Junta Distrital presidiu o Governador
Civil, Dr. Francisco do Vale Guimarães.
Ladearam o primeiro Magistrado
Administrativo do Distrito, os Senhores Conselheiro Albino dos
Reis, Governador Civil do Distrito de Viseu e Presidente da
Acção Nacional Popular de Viseu, além das mais destacadas
entidades do Distrito Aveirense.
A presença de tão alta
representação viseense certamente traduz a inteligente certeza
de que o Porto de Aveiro, virado ao Atlântico, será a via mais
certa para a promoção das riquezas beirãs. |
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Após o Chefe do Distrito ter
recordado a satisfação inesquecível de ter empossado durante o seu
primeiro mandato, o saudoso e insigne aveirense, Dr. Alberto Souto,
como Presidente do Município de Aveiro, salientou o júbilo que de
novo agora sentia em conferir a posse da presidência da Junta
Autónoma a Eduardo Cerqueira.
Referiu depois o Chefe do Distrito
traduzir a presença de tão numerosa e qualificada assistência «acto
de consideração pelo empossado, inteiramente devido aos seus méritos
intelectuais, à sua extrema dedicação a Aveiro e respectivo
distrito, à rectidão das suas atitudes, à sua independência, ao seu
civismo».
Todos quiseram manifestar – disse –
com a sua presença o interesse por tudo quanto ao porto do mar
respeita. Nesse interesse comungam as actividades económicas de
outras regiões do norte e centro do País, com particular relevo para
Viseu, a lutar pela legítima aspiração com entusiasmo perfilhado por
Aveiro, de ver construída a via rodoviária que possibilite o acesso
rápido e fácil ao litoral aveirense e, consequentemente, ao seu
porto de mar.
Frisou o Dr. Vale Guimarães ser
Aveiro o maior porto bacalhoeira do País, já utilizado, também pelas
frotas de arrasto costeiro. Assinala-se-Ihe hoje papel de relevo
como porto de comércio, cujo crescimento tem sido espectacular, pois
atingiu a taxa de 20 %, média dos últimos cinco anos. A previsão de
um porto de comércio para movimentar 100 mil toneladas está de longe
ultrapassada. Em 1970 o tráfego foi já perto de 250 mil.
Disse o Governador Civil que mais se
acentuará esse crescimento logo que sejam ampliados os cais de
acostagem e completado o seu apetrechamento. E maior será ainda –
acentuou – quando for mais regular e eficaz a defesa da barra contra
o assoreamento.
O Governador Civil acrescentou ter o
Governo procedido com acerto ao consignar no terceiro Plano de
Fomento prioridade para o porto de Aveiro.
O Governo de Marcelo Caetano
reconhece competir a este porto papel relevante na economia nacional
e daí ter inscrito no orçamento do ano em curso verbas apreciáveis
destinadas ao começo de obras de prolongamento dos cais e ao seu
indispensável apetrechamento.
Afirmou, depois, que apesar do
dinamismo, do poder de decidir e da larga visão do Ministro Rui
Sanches, nem tudo se consegue realizar com a brevidade desejada,
especialmente quando faltam estudos e projectos.
É um sério problema – acrescentou –
este de se encontrar quem estude e projecte em traços convenientes.
A propósito declarou ser devido a
essas dificuldades que determinadas obras de interesse vital para o
desenvolvimento da cidade e sua região ainda não
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iniciadas, citando entre outras o dique estrada para a Murtosa, os
acessos à cidade, a nova ponte da Barra e a ligação por
«ferry-boats» para S. Jacinto. Afirmou, depois, encontrarem-se
vencidas as maiores dificuldades pelo que não será preciso esperar
muito mais tempo para se verem lançados empreendimentos susceptíveis
de transformar a pequena cidade num grande centro urbano.
A finalizar, o Dr. Vale Guimarães
falou acerca da acção que alguns industriais estão a desenvolver no
sentido de construir, no Porto de Aveiro, um terminal para
contentores de carga seca. Mais um elemento a demonstrar ter este
porto possibilidades imensas cujo aproveitamento não exige
investimentos de grande volume.
De seguida falou Eduardo Cerqueira,
que agradeceu as palavras com que o Governador Civil o distinguiu e
o amparo e estímulo que lhe trouxeram as individualidades presentes,
de entre as quais destacou o chefe do Distrito de Viseu.
Em palavra sentida, evocou homens e
fados relacionados com a história do porto de Aveiro, tendo depois
lido o seu magnífico trabalho.
«Aveiro e o seu Distrito», que por
inúmeras vezes tem sido honrada com a pena inconfundível de Eduardo
Cerqueira, aqui deixa arquivado o memorável discurso do ilustre
escritor e jornalista aveirense, formulando os mais sinceros desejos
pelos melhores resultados no exercício do seu mandato.
*
* *
Quando, aí pelos finais do primeiro
quartel deste nosso século de celeridades e insatisfações, comecei a
atentar nos problemas desta terra, a que um artista, pensador e
homem público de dilatada projecção nacional, com inteira
propriedade, chamou anfíbia, reavivava-se o anelo de fazer ressurgir
o seu porto de mar.
Mais que um sentimento, uma
incentivadora convicção alentava os espíritos mais esclarecidos para
o recomeço de uma luta e para uma vitória. Fundamentavam-se numa
longa história, com uma fase de crescente prosperidade e um momento
de esplendor, e um
arrastado e desesperador período de
decadência, e, a par dessa lição de evidências estimuladoras, em
virtualidades flagrantes.
Aveiro – e quem refere Aveiro,
engloba uma região ampla e rica, conglomeração de diversidades numa
unidade cada dia mais significativa, operosa e fecunda – só
retomaria o caminho do florescimento das suas capacidades, que o mar
lhe propiciava e ao mesmo tempo negaceava, pelo combate.
Na ordem técnica, opondo resistência
bastante ao que o mar propiciatório, e o seu vai-e-vem – e a sua
inquietação, e o seu prometer e furtar-se, ora era oferta e germe de
iniciativa, ora um fermento de desesperanças – e fixando uma barra
com folgado passe. Garantindo uma comunicação permanente e sem
escolhos que separassem e tolhessem. Reatando, em corrente franca e
leal, o fluxo inalienável da protecção que o progenitor deve ao ente
que engendrou – já que a Ria é filha, umbilicalmente ligada, e
indispensavelmente, ao mar de onde proveio.
No domínio da persuasão, uma pugna
persistente se impunha, e através dela irrefragavelmente demonstrar
que o porto, rudimentar e precário, podia – podia e devia – voltar a
exercer a sua função de fomento. E, nesse campo, tornava-se
imperativo abalar ideias contumazes de abandono dos pequenos portos,
então as dominantes em altas esferas responsáveis, que tomavam os
investimentos neles realizados como despiciendos, ainda quando
alcançassem êxito.
No aspecto de criação de receitas
que dessem viabilidade a um plano de acção e melhoramento sucessivo,
houve que vencer resistências e critérios estabelecidos.
Foi necessário convencer incrédulos,
desfazer cépticas dúvidas, enfrentar interesses escondidos por
detrás de um pseudo zelo público e malquerenças sub-reptícias;
arvorar uma bandeira e brandir um gládio; usar de todos os recursos
da dialéctica, por vezes acerada; clamar, com voz forte e clara, e
porventura rude, as razões irrefragáveis, a que a rotina, a
mesquinhez de aspirações e algumas dominantes ideias da época – que
afinal, foi ainda ontem – se mostravam pouco permeáveis.
Foi preciso combater. Para convencer
e para aliciar. Para esclarecer e para empolgar. E Aveiro, como em
épocas pretéritas – o capitão-mor João de Sousa Ribeiro, ou José
Estêvão, Gustavo Ferreira Pinto e quantos da sua geração o
acompanharam – teve os homens necessários, esforçados e lúcidos para
abraçarem e advogarem, com fé e denodo, o problema magno, e o
tomarem vigorosamente como uma causa vital da cidade e da região, e
lhe determinarem as coordenadas que o situassem no amplo âmbito do
interesse nacional.
Alberto Souto e Rocha e Cunha, dois
dos expoentes cimeiros do pensamento aveirense e do largo bairrismo
congregador e proliferador, formularam a ideia latente,
articularam-na, lançaram o fermento e conferiram-lhe a funcional
orgânica. Homem Cristo, tão ardoroso como
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esclarecido, lutador desbordante de energia, doutrinador
comunicativo e de penetrante visão antecipadora, numa campanha
estrénua – catalizadora e impulsionadora – infunde nos espíritos
incrédulos a convicção de que o porto de Aveiro se deve tornar um
factor ponderoso de fomento económico de dimensão nacional.
Essa convicção criei, nesse período
heróico de luta. Mantive-a e fortaleci-a, nos contactos que
generosamente me proporcionaram os seus sucessores na fase, que se
seguiu, de realizações, a viver com vivida solicitude, e entusiasmo,
e apaixonado desígnio de servir os problemas que brotam em cadeia
das primeiras soluções almejadas – o Coronel Gaspar Ferreira, que
até exaurir as energias, tão intensa e proficuamente, tão
silenciosa, mas tão esforçada e clarividentemente, fundiu a sua com
a vida da Junta Autónoma; e o meu antecessor e benévolo amigo
Engenheiro Carlos Gamelas Gomes Teixeira que consubstanciou
prestante e fervidamente esta genérica ambição de lídimo aveirismo e
de cidadania de dotar a sua terra do porto que um conjunto de
condições irrefutáveis pode proporcionar ao País.
Mantive e fortaleci essa convicção,
nos resultados que já hoje se patenteiam como consequência das obras
de melhoramento da barra, iniciadas há cerca de quatro decénios,
quase timidamente – e a respeito das quais, não devo esquecer
técnicos de alto merecimento e governantes que compreenderam acima
dos nossos sentimentos, as nossas positivas razões.
Nos tempos já longínquos em que
essas razões pareciam ainda fantasias, eram modestas as
perspectivas. Evitava-se que nos espíritos rotineiros e sem rasgo de
anseio e previsão, se considerasse mais que uma pequena cifra, como
uma ambição de desmesurado bairrismo.
Situava-se então a meta dos desejos
aveirenses na doméstica centena de milhares de toneladas de tráfego
comercial.
Não havia restrições no anelo, mas
uma cautelosa táctica no apresentar de uma reivindicação a que
faltava ainda um ambiente francamente propício.
Um porto é um órgão em si mesmo
portador do germe de crescimento – uma força vitalizadora
essencialmente dinamizadora e expansiva. Sabia-se, já então,
compenetradamente, e calava-se, porque a ambição demasiada – ou
apenas aparentemente excessiva – faz perder as empresas. Dar um
passo com segurança, medi-lo e assentá-lo, é, avançar. Tentar um
salto pode ser cair num abismo.
Seguiu-se a esse primeiro, outro
passo, ainda lá fora na barra. Outros se sucederam a configurar e a
estruturar o porto em progressivo desenvolvimento, e sob renovados
auspícios de expansão.
Aquela pseudo meta do nosso
comedimento no pedir foi alcançado há apenas cinco anos. Foi já
dobrada em 1969. E já as nossas insatisfações – legítimas e
fundamentadas, creio bem –; e a experiência colhida; e as convicções
nesse lapso de tempo firmadas, e as necessidades que se conhecem e
pressentem; e os ritmos de crescimento dos nossos dias, que todos
ambicionamos ainda acelerar, fazem redobrar as ambições e previsões.
O porto que se desejava uma válida,
mas restrita parcela do fomento económico nacional, ultrapassou-se,
neste lapso de tempo – tão curto e, ao fim tão longo para as nossas
pretensões. Vem requerendo já, patentemente uma posição mais
significativa no conjunto das actividades comerciais-marítimas do
País.
E já, não como uma reserva
supletiva, mas como um elemento com valia própria. Não suplente e
suplementar, mas de efectiva e autónoma personalidade, com o seu
âmbito próprio, de cada vez mais dilatado, de influência e
penetração e escoamento.
Os nossos pressentimentos e
prognósticos de há meio século e os que o tempo confirmou ou veio a
provocar, poderiam considerar-se eivados de parcialidade bairrista,
de amplificados por um afecto que perdera o sentido das proporções e
da objectividade. Mas as perspectivas de um porvir de horizontes
rasgados não constituem imaginação com ânsias desmedidas dos
naturais.
Técnicos franceses encarregados
oficialmente de se pronunciar, no aspecto económico e demográfico
sobre as provindouras possibilidades da região, e de definir um
objectivo do seu desenvolvimento, a prazo largo, que habilitasse a
fundamentar o plano regional insuspeitamente, despidos de todo o
sentimentalismo que possa criar ilusões aos naturais, revelaram-nos
cifras que, nem a nossa sóbria modéstia nem a nossa audácia de
desejar, nunca haviam imaginado.
Na frieza dos cálculos, admitem
possibilidades futuras para a cobertura, num quadrilátero delimitado
pelo Forte da Barra, Aveiro, a Ilha da Testada e a desembocadura do
Vouga na Ria, de instalações portuárias e industriais, numa área de
4000 hectares. E concluem, considerando possível nessa zona um
tráfego teórico de 40 milhões de toneladas de mercadorias diversas.
Remotamente julgam mesmo verosímil, que esse número surpreendente
possa ser excedido.
Bem notamos que esta estimativa
alude a um tráfego teórico. Também nós o colocamos no domínio
estrito dos cálculos matemáticos, das hipóteses construídas
racionalmente, e abstraindo de incontroversos condicionalismos da
mais diversa ordem. Todavia, este depoimento isento de falseamento
sentimental, persuade-nos, mais firmemente, de que as aspirações que
Aveiro formula, parcimoniosas, mas crescentes, se revestem de
fundamentada legitimidade. E de que, quando
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as exprimimos, não apresentamos uma reivindicação local, mas pedimos
para o País, e para a comum prosperidade.
Abandonemos, porém, um futuro sem
prazo, ainda do domínio das conjecturas, plausíveis, mas longínquo.
Temos problemas reais imediatos a formular – do dia de hoje, para
preparar um amanhã próximo, que satisfaça as precisões de uma região
em plena progressão e com índices de crescimento dos mais elevados
do País – e quiçá de outras, limítrofes ou geograficamente mais
distantes, mas também com suas potencialidades e que aqui venham a
encontrar o mais acessível polo de comunicação oceânica.
Chego à Junta Autónoma com tarefas
aplanadas, por esforços persistentes de estudo, ordenação e
proposição dos temas essenciais. Enunciarei alguns dos de
importância primordial e que continuarão necessariamente a
constituir as mais instantes preocupações do Organismo em que
imprevistamente sobre mim veio impender uma quota parte ponderosa de
responsabilidade.
Cabe a lógica primazia ao
melhoramento da barra – da barra já melhorada, consideravelmente,
mas na qual se continuam a verificar fenómenos perniciosos de
assoreamento. Há que buscar um meio eficiente de eliminação desse
pertinaz e tolhedor assoreamento, e, ao mesmo tempo, rápido e
económico, para a transposição das areias acumuladas a norte para as
praias do sul onde o cordão litoral mingua.
A par desse meio preconiza-se o
prolongamento do actual molhe central. Dessa obra se antevê uma
melhoria apreciável dos factores hidráulicos, com efeito na
desobstrução da barra, mas também uma mais volumosa deposição de
areias na Praia do Farol, e uma mais concreta protecção consequente
do edifício onde o mesmo farol se encontra instalado.
Seguindo o caminho das águas
provindas do mar, impõe-se à atenção de quem sobre os problemas
portuários se debruce, o conveniente aproveitamento da Ilha da Mó do
Meio, onde se implanta como determinante caracterizadora e
toponímica o chamado Forte da Barra. Aí ressalta a necessidade de se
estudarem, com vista a um provir, que supomos não muito distanciado,
obras acostáveis, a executar por fases, ao passo que as
circunstâncias as vão requerendo. Visar-se-ia propiciar a
implantação de novas instalações e condicionalismos mais
aliciadores, vantajosos e práticos à navegação do comércio. O
futuro, nos nossos dias, chega mais depressa do que nunca. Pensemos
nele antes que nos ultrapasse.
Prosseguindo para o interior da
laguna, ressaltam as conveniências de promover o gradual
melhoramento do porto bacalhoeiro. Simultaneamente convém acompanhar
o desenvolvimento da frota local, com tão acentuados reflexos na
economia da região aveirense, e ir preparando, com espírito de
previsão, este sector portuário para outras actividades relacionadas
com as pescas longínquas.
Segue-se, pela sua situação, o porto
comercial. Está no início e constitui uma valiosa realidade. Foi uma
confirmação e um dealbar de auspícios. Foi a satisfação de uma fase
de progressão e um gerador de ambições. Em brevíssimos anos,
demonstrou-se a imperativa necessidade da sua expansão, já
construindo um novo troço de cais acostável, já através de um
apetrechamento cada vez mais completo e eficiente. O crescente
interesse que este sector portuário revela para as actividades
regionais – e eventualmente vem despertando para além desta
circunscrita zona do País – recomenda inequivocamente que procure
corresponder-se-lhes com as condições que naturalmente pretendem
encontrar. Importa proporcionar as condições, não aguardar que se
lhes sinta a precariedade, captar e não descoroçoar.
Também no porto de pesca costeira se
verifica clara necessidade de ampliação. O incremento que se vem
registando no arrasto costeiro, suprindo o decréscimo acusado por
outros sistemas de pesca, e tendendo a sobrepujar os montantes dos
movimentos de pescado anteriores, trazem essa ampliação para o
número dos problemas a encarar com brevidade.
Assunto que há alguns anos vem
merecendo zelosa atenção da Junta e que com o tempo vai
recrudescendo de acuidade e premência é o de dotar o porto de uma
doca-seca. Constitui uma compreensível aspiração – para com mais
propriedade exprimirmos esse compreensível anseio, digamos mesmo,
uma instante e óbvia necessidade – dos armadores da frota aveirense
de pesca longínqua.
E, naturalmente, para regular o
funcionamento do porto, que se deseja e prevê com ascendente
movimento, considero – todos consideramos – indispensável a melhoria
das condições de navegabilidade dos canais principais, pelo
prosseguimento de sistemáticas dragagens que lhes confiram maior
largura e as refundam.
A jurisdição da Junta, todavia, não
se confina propriamente ao porto de mar. A seu cargo encontra-se
também a ria, que é paisagem singular, um acidente geográfico único
na Península, lugar de êxtase e com inúmeros motivos de pitoresco,
mas um valor económico
não menos digno de realce. As
circunstâncias modificaram-se. Já hoje, com a camionagem, os adubos
químicos e outros factores, a sua fisionomia é diferente da de há um
quarto de século. Rareiam os moliceiros, na própria feição humana se
vem descaracterizando, e
/ 44 / como via de transporte foi
declinando de importância. Não movimenta já, como então, mais de
quinhentas mil toneladas de materiais e produtos. Talvez pobres, mas
num total de meio milhão de toneladas. Pelos seus esteiros e pelas
muitas dezenas de cais ribeirinhas as cargas e descargas orçarão
porém pelas suas duzentas mil – mais do que a generalidade dos
pequenos portos nacionais.
Merecerão pois esses veios de água e
os cais de que dispõem a constante atenção da Junta, e o seu
carinho. A ria é bela, mas é útil.
Aliás, se a valia económica da ria
em certos aspectos declinou, noutro, pouco mais que inexplorado
ainda, tem ampla compensação. O lençol de águas plácidas, a luz
vivíssima que nelas se espelha esplendorosa, a sua afinidade com o
mar que o gerou e alimenta, e, pela barra, lhe dá a mão que alenta e
dinamiza, a brisa que enfuna as velas, o peixe que o frequenta e as
aves que a ela se acolhem nas suas migrações, tornam-na o lugar
sumamente atraente e aprazível. A nova indústria que é o turismo
encontra vasto campo neste acidente marítimo sem par. Há uma nova
fase da história da ria a explorar criteriosa e sistematicamente.
Destipificou-se, porventura nos aspectos transitórios das
actividades humanas. Mas os seus valores permanentes criam novas
suscitações de interesse: mirar a paisagem, o recreio da pesca, da
caça e do navegar na laguna mansa, levado pelo vento e com a
propulsão de um veloz motor. A ria continuará também a ser um centro
de trabalho graças aos que nela procurem, nalgum ócio, o descanso
reparador.
A Junta dedicará todo o seu
interesse aos assuntos que este moderno aspecto da vida da ria tende
a tomar cada vez com maior intensidade. E, no que estiver ao seu
alcance patrocinará e auxiliará a criação de pequenos portos
especificamente destinados à navegação de recreio e desporto, em
vários locais da ria.
Aliás procurará, como sempre, que
esse complexo aparelho hidráulico, tentacular e tão extenso, protele
esses fenómenos de envelhecimento que, porventura, desde o nascer
manifesta. É esse o seu dever e a sua devoção. Procurará cumpri-la,
na senda que traz bem aberta. Dizendo-o, eu, que agora a ela chego,
creio poder afirmá-lo em relação aos seus demais membros, que com
zelo, dedicação e entusiasmo tão utilmente têm sabido servi-la.
O sucinto enunciado dos pontos de
mais saliente importância dão a medida do peso que sinto recair
sobre os meus ombros débeis, em preocupações, em partilha de
esforços para a busca das soluções mais breves e fecundas, no
alcançar dos melhoramentos que para a nossa unilateralidade de
função ou mero sentimento serão os que mais merecem efectivação, e
mais próxima e mais impositiva, e é necessário fazer avultar no
conjunto; no ter de preterir o pormenor, por vezes tão visível e
justificável tão no pendor das próprias deferências, pelo que deve
ter prioridades cronológicas e de verbas.
Constituem estas as sofredoras
peias, repartidas por tabiques orçamentais, na compensação que se
julgue a adequada. O orçamento pressupõe uma área com fundo e regra,
e atento zelo, rigores não isentos de maleabilidade, um jogar com
possibilidades que não corte os voos e o desapontamento dos limites
de elasticidade, por mais que o calor da vontade acalente e
impulsione e dilate.
Mais que em nenhuma parte, já que as
exigências satisfeitas são elas próprias generatrizes de novas
necessidades, em todo o serviço para a comunidade, a administração
deste Organismo tem feição de um repto. Há que afrontar ainda o mar
incerto na sua dádiva, às vezes generosa, e outras tantas adversa, e
criar trilhos firmes para uma caminhada longa, debelar sintomas das
doenças lagunares, e aviventar, criar, ver antecipadamente, novo e
previdente, e dentro da objectividade, saber sonhar.
A faina nesta instituição foi e será
um desafio. Em que não se pensa em émulos, mas se têm como certas as
dificuldades que se nos antepõem na pugna exigente, e é um desafio
para ganhar.
Quiseram os Membros da Junta, com
benevolência de avaliação sobrevalorizar o meu nome modesto,
sugerindo-o para o lugar em que agora sou investido. Quiseram
arrancar-me da posição de espectador interessado, que segue
atentamente e aplaude – ou alguma vez discorda – para a acção
pública directa. Desvaneceram-me e trouxeram-me um sobressalto.
Veio esse a obter por generosa
decisão do Senhor Engenheiro Rui Sanches – a quem competia a escolha
definitiva – a concretizadora confirmação do que primeiro fora uma
surpresa, com todo o sentido do inesperado, e depois motivo das
minhas inquietações. A nomeação, que não cabia nas minhas hipóteses
de obrigações cívicas ou de mero aveirismo, fico a devê-Ia a uma sua
cativante prova de confiança que, certamente, me sobrestima as
capacidades.
Conheço-lhe, todavia, o rasgo de
acção dinamizadora, a clarividência, a compreensão que tem dos
nossos problemas fundamentais e a boa vontade de os solucionar. Sei
– e todos o vimos verificando – do seu espírito renovador, do ritmo
que imprime à sua acção, do seu férvido empenho de reconquistar o
tempo que protelou.
A Junta, e o Presidente que para ela
escolher, a região de Aveiro – e no que ela reside e que dela se
reflecte no País, confiam em que supra, com a sua deliberação
oportuna e prestimosa, a magreza dos nossos recursos e as nossas
carências. Julgamos imprescindível
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a justa quota parte que na sua acção de governante conceda aos
assuntos que intensamente vivemos.
Dela depende, não o êxito pessoal de
uma missão a que circunstâncias alheias à minha vontade, e às minhas
predilecções de espírito, me conduziram, porque esse, nem a mim
mesmo me importa, mas o alcançar do que convictamente consideramos,
como os mais decisivos e reprodutivos benefícios para Aveiro e a
Região e a Nação em que a cidade se integra. Contamos, aliás, com a
ciência e a consciência, com a boa vontade diligente e prestadia, o
detido contacto com os nossos temas e os nossos anelos, dos Serviços
Superiores de que a Junta depende ou em volta de cujas atribuições
de algum modo gravita e é subsidiária, e em que o eco útil que
sempre neles buscamos para as nossas pretensões, nos não faltará,
com liberalidade, e cooperador incentivo.
Essa dupla esperança – se não me é
lícito dizer essa plena certeza – me anima ao ocupar este cargo,
cujas tradições honrosíssimas agora evoco e me pesam a redobrar
responsabilidades. Partilharei, assim, animosamente, nesta tarefa de
servir Aveiro – a que me sinto tão intimamente apegado – e de lhe
advogar os interesses mais Iídimos e, filialmente, lhe dar o que as
faculdades me permitam, o que devo à terra mãe – berço onde teria a
felicidade de ver a luz mais resplendente e excitante, terra onde os
pés se me enterraram como raízes, e sorveram um húmus cheio de água
e salino, que não tem obstáculos no horizonte e confere aos
espíritos este indeclinável desejo de expansão livre e larga que
aqui caracteriza o homem.
Trazer a Aveiro um esforço de
cooperação, para qualquer aveirense representa uma restituição
afectiva. Também a cidade, ela própria, cumpriu esses deveres
filiais. Proveio do mar, e do mar recebeu traços genéticos e,
porventura, de psicologia colectiva. Não prescinde das suas bênçãos
diárias. Um dia, para que elas lhe não faltassem, como um filho que
cede ao pai uma parcela do seu próprio corpo, renunciou às mais
significativas pedras – as das muralhas erguidas pelo Infante das
Sete Partidas – para assegurar o contacto diário, o ósculo
abençoador do oceano que lhe dera a existência. A cidade mutilou-se,
em holocausto ao genitor.
O pesado sacrifício que me exigem,
ao temperamento, a escassez de tempo, a saúde com claudicações,
tendo em mente esse exemplo de despojamento, será ao fim, talvez
menos útil do que ardentemente desejaria, mas numa pequena imolação
– e, bem o entendo, irrecusavelmente devida. |