I
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
Na sociedade em que vivemos,
encontramos sempre pessoas de carácter que nos desconcerta; umas de
temperamento indolente, olhando tudo à sua volta sem interesse ou
preocupações; para esses tudo está bem na vida; outras são
exaltadas, nervosas, sempre agitadas, para quem o tempo não chega,
sempre ocupadas no trabalho diário, em actividade constante,
desdobrando-se incansável e febrilmente na luta pela vida, enquanto
a saúde lhes é favorável, e não aceitando os inactivos e os
desinteressados; algumas, de compleição doentia, por vezes
sentimentais, emocionam-se com facilidade perante as situações
dolorosas próprias e alheias, deixam-se sucumbir por seus estados
depressivos, não suportando nem os seus momentos angustiosos nem os
dos outros e permitindo deixarem-se dominar absolutamente pelas
contrariedades da existência; outras ainda constituem uma parte da
colectividade que não agrada a ninguém – são as de acções
desonestas, as que se vangloriam com o mal dos outros e não se
importam de usar de artimanhas para avançar, aproveitando-se das
boas vontades e das boas intenções sem que qualquer remorso lhes
fique a mordiscar na consciência; há também o grupo daqueles que se
julgam superiores ao conjunto, quer pelo saber quer pelo poder que
quase sempre lhes vem de atitudes menos altruístas, espécie de
tiranetes aproveitados para a subordinação da massa; são os
pavões da sociedade que acabam par atrair sobre si a
desconfiança, a antipatia do conjunto e até o próprio ódio; são as
que, jogando com atitudes dúbias ou equívocas, não geram amizades e
acabam por viver isoladas. Finalmente, algumas são uma espécie de
anjos protectores da sociedade, principalmente dos infelizes, e
formam uma minoria, porque ser bom e rectamente cristão não é tão
fácil como parece.
Ora estes tipos humanos, que fazem
parte da galeria literária de figuras criticadas através da sátira
social de todos os tempos, são tão reais hoje como foram ontem e
como serão amanhã.
Há certas palavras que traduzem
conceitos sociais e políticos que não podem de maneira alguma
dar-nos o significado de uma realidade em toda a sua extensão;
aceitar com toda a amplitude a significação do termo democracia,
por exemplo, é estultícia tão grande quanto já o fizera crer o
próprio Platão a propósito do conceito de república, uma vez
que ele concluiu que esta forma de governo só seria possível,
realmente, para uma saciedade ideal, que, em boa verdade, não,
existe. Efectivamente, para qualquer dos casos há sempre um grupo
que domina e que tenta orientar os outros, nem sempre seguindo
directrizes de acordo com a totalidade. Dentro dessas concepções da
vida política, temos de
/ 8 / colocar o homem agindo sob as
possibilidades e capacidade da sua inteligência e do seu coração,
concordando ou discordando, mas vivendo.
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Desenho à pena de Júlio Dinis
por Vítor Mendonça (1970) |
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Se isto foi assim e continua a ser,
não há dúvida nenhuma de que o espírito dominador e tirano se foi
modificando através dos séculos e o indivíduo, a pouco e pouco,
embora por vezes com muitos sacrifícios, foi conquistando a
liberdade a que tinha jus, ao mesmo tempo que foi desarticulando e
destruindo os vínculos da ideologia absolutista e dominadora, que,
justificando-se em certas alturas históricas, não deixava de
constituir um vexame à liberdade individual que assiste ao homem
como um privilégio que advém da sua origem divina, como criatura
provinda da vontade e da bondade de Deus.
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Foto n.º 1 –
Reprodução da fotografia pouco conhecida do escritor com lunetas,
que pertence à família Duarte Silva.
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Eis, pois, porque o homem,
conhecendo direitos inalienáveis, foi lutando e conquistando o seu
próprio lugar; mas é a revolução ideológica e filosófica do século
XVIII que definitivamente o lança no caminho que deve seguir,
colocando-o no lugar mais conveniente, pois que o século seguinte
não apresenta mais do que uma prova real de contas postas em equação
anteriormente, tendendo para o desenvolvimento da técnica que havia
de dar à humanidade possibilidades de progresso até então
imprevisíveis.
Vencer o espaço e o tempo, isto é,
percorrer o espaço num mínimo de tempo, é preocupação que absorveu o
homem desde a invenção da roda; com esta e com o aproveitamento das
forças da natureza, estava ele a entrar no domínio da máquina,
procurando atingir um maior rendimento com um mínimo de esforço.
Foi, pois, o homem, ao longo dos
tempos, reagindo a estruturas sociais e de pensamento empedernidas;
e destronadas ideias e atitudes medievas, já sem razão de ser, o
espírito crítico põe em dúvida um conjunto de axiomas e de juízos de
valor considerados imutáveis; a dúvida começa a pairar sobre a
verdade e a solidez de um edifício que, dentro em pouco, ameaçaria
desmoronar-se, porque as bases, apodrecidas pela velhice,
principiavam a ruir em toda a sua extensão.
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Figura n.º 2 – Iconografia de
Arnaldo Zagallo Gomes Coelho Duarte Silva, actual possuidor das
obras da biblioteca de Júlio Dinis de que falamos, residente em
Nampula.
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Descartes, com a dúvida metódica,
isto é, com uma dúvida que serviria para atingir a verdade,
magistralmente exposta nesse prodigioso livro que culminou a grande
revolução das ideias e que se chama o «Discours de Ia Méthode»
(1636), abria como um portento, a porta à ciência, ao mesmo tempo
que dava a cutilada final nos princípios aristotélicos
tradicionalistas, durante
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tantos anos em plano superior, acerrimamente defendidos e
considerados inultrapassáveis; ora este notável autor coloca em
lugar à parte a moral prática que é assegurada pela tradição
consuetudinária e a religião que escapa ao seu método, visto
que está baseada na autoridade, logo que ele empreende a análise que
há-de arruinar os princípios filosóficos tradicionais. E como se
manifestou, durante toda a vida, um crente sincero, muitos
escritores e outros vultos intelectuais aceitaram as suas teorias
como um meio moderno de defender a religião; com efeito, no século
XVIII, a razão apoiou-se na análise e na evidência para fazer a
apologia da fé contra os espíritos fortes. Mas a razão
individualista, que escapa a qualquer limitação, tanto serve para
construir como para destruir; daí o facto de Bossuet se aperceber do
perigo em questão, que o século XVIII viria a confirmar plenamente.
Se este século, em França, foi
considerado o século da filosofia, e esta não é tida então como um
mero exercício especulativo, mas uma força em acção; se passou a ser
considerado o século da ciência, que nesse tempo também não era
especulativa, mas uma força que queria conquistar as almas, pondo-se
ao seu alcance para a vulgarização; se é o século da revolução, isto
é, tendente a destruir em todos os aspectos da sociedade os
princípios da autoridade; se os escritores já não pensam em
trabalhar para um público aristocrata, que até então constituía uma
elite, mas enveredam pela filosofia prática para conquistarem a
opinião pública; se o século XVIII foi tudo isso, também é verdade
que foi o Século do cosmopolitismo: a França, olhando para a
sociedade universal, lançava para fora das suas fronteiras os seus
ideais, ao mesmo tempo que recebia de toda a Europa novas ideias,
adesão às suas e uma mais forte excitação intelectual.
Foto n.º 3 – Ver legenda explicativa.
Portugal, por mercê de
circunstâncias históricas, políticas, económicas e sociais, não pôde
ficar alheio, nem sequer indiferente, à profunda convulsão em que a
Europa se debatia, mantendo-se, como foco alimentador da combustão,
esse país extraordinário.
Com tudo isso, o dealbar do século
XIX é, do ponto de vista técnico, e científico, vincadamente
promissor; os nossos escritores e intelectuais, obrigados a andanças
pelo estrangeiro, verificam a necessidade de reformas dentro do
país, propícias ao avanço das ciências em todos os campos,
nomeadamente no das comunicações internas e externas e na
remodelação dos processos agrícolas, já que a terra era considerada
o grande manancial da riqueza de qualquer país, e, particularmente
do nosso; daí adviria, como consequência imediata, a remodelação das
estruturas industriais e das transacções comerciais.
Ora a vida de Joaquim Guilherme
Gomes Coelho decorre, não longa, em pleno século XIX, desde 14 de
Novembro de 1839 até 12 do mês de Setembro de 1871; nasceu e morreu
no Porto que era, como é ainda hoje, o grande centro comercial desse
vinho espirituoso dos socalcos do Douro que tem o seu nome, filho de
D. Ana Constança Potter, mas órfão muito cedo; trazia nas veias
sangue inglês ligado aos burgueses comerciais da cidade, tendo
conhecido, na intimidade, famílias inglesas e observado aspectos da
sua formação, seus usos e costumes; por outro lado, viveu em época
tranquila e assistiu às reformas do Partido Progressista e
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do Regenerador que se alternavam no poder; Júlio Dinis observava e
anotava; assistiu também ao período agonizante do Romantismo piegas
e ao nascer do Realismo, com a «Questão Coimbrã», mantendo-se,
todavia, à margem das lutas literárias e filosóficas, trilhando, com
equilíbrio e bom senso, um caminho que aproveitava as pedras
positivas de uns e de outros. E marchou seguro de si próprio.
II
A FEIÇÃO TEMPERAMENTAL DO ESCRITOR
E O AMBIENTE DO SEU ROMANCE
O povo português tem características
especialíssimas que o individualizam e especificam entre todos os
povos da velha Europa; latino, distingue-se profundamente dos seus
irmãos de origem; no conjunto europeu, embora mais aparentado com os
latinos, difere destes, mas muito mais substancialmente dos outros,
nomeadamente dos germânicos. E no grupo de particularidades que o
caracterizam, tornando-o um povo sui generis, está a
razão por que, através dos tempos e em momentos oportunos da
história, nunca o colosso da Espanha conseguiu dominar este cantinho
da Península Ibérica, nem as poderosas águias napoleónicas o
submeteram inteiramente; em qualquer dos casos históricos que se
invoque teve necessidade do auxílio externo e alheio; mas este só
foi evidente na quantidade e na técnica, porque o fortalecimento
interior próprio da raça sempre foi chama viva no peito de cada
pessoa nele nascida, vincadamente identificada com a terra numa
amálgama indómita de sangue a polarizar esforços e a fazer
reverdescer e a produzir os campos.
O Português não é uma raça pura,
como não creio existir alguma; a ideologia da raça pura ou a
purificar só podia nascer na cabeça de um louco como o tão
tristemente célebre Hitler, cujas ideias foram alimentadas pelas
teorias filosóficas de Nietzsche; era a utopia idealista num campo
da sociedade a querer vencer a razão dos fados consumados pela
história dos povos europeus.
O povo português é semelhante a um
tapete tecido e cerzido por vários sangues, por várias raças, das
cores mais diversas; aí anda misturado o sangue ibérico, celta,
fenício, godo, franco, saxão, árabe, romano, negro, hindu – tapete
tão matizado que faz ressaltar à vista uma característica primeira e
fundamental: a facilidade de cruzamento com os povos mais díspares a
dar a ideia de plurirracialidade muito particularmente sua e
dispondo-se a integrar todos esses indivíduos no tablado político e
territorial da nação. Mas isto, que é verdade para a português
actual, já o fora decerto modo antes da avalanche dos
descobrimentos; simplesmente depois deles se veio a alargar e a
concretizar longe do solo pátrio. Evidentemente que, à volta desta,
outras se agrupam, brotando, da insuflação telúrica, como o
entusiasmo, o espírito de aventura e a impulsividade ao lado do
carácter amoroso e lírico, da brandura e da generosidade. Lembramos
com emoção o conteúdo ideológico daquela dúzia de páginas de Albino
Forjaz Sampaio. «Porque me orgulho de ser português», que são uma
resposta válida e dada muito a tempo ao orgulho do Conde Afonso
Celso, brasileiro.
Foto n.º 4 – Ver
legenda explicativa.
Foi, pois, assim o povo português
através dos séculos; e ainda hoje o é; sem a menor repulsa e com o
maior à vontade deste mundo, qualquer homem português funda o seu
lar em comunhão íntima de etnias; o que, digamos de passagem, não se
observa com esta liberalidade peculiar, nos outros povos europeus, e
muito em particular, no inglês.
De qualquer modo, o nosso Júlio
Dinis, português do Porto, trazia nas veias, por parte da mãe,
sangue inglês; e como se cruzara o sangue, o escritor seria também o
produto de um cruzamento temperamental, embora já muito diluído na
terra portuguesa; assim como Bocage herdara da sua ascendência
francesa o tique da inconformidade e da rebelião a preconceitos, o
espírito aguçado para a resposta sempre pronta e acutilante, dons
que ele esbanjou prodigamente, assim o nosso Gomes Coelho deixou
desabrochar em si o toque fleumático da alma inglesa, a ponderação e
a acalmia propícias ao julgamento dos homens e das coisas sem
estados de excitação; é figura que, sem grande esforço, podemos
imaginar nas ruas tortuosas e nevoentas dos parques de Inglaterra.
Desde muito cedo que Júlio Dinis
ficou marcado pela tísica; e, tendo-se dedicado ao curso de medicina
em que se formou, alcançando boas classificações, inclinou-se
posteriormente para o magistério, vindo a ser professor da Escola
Médico-Cirúrgica em 1865, por nomeação precedida de dois concursos
de provas públicas. Estava, quanto a nós, bem escolhido o seu ramo
de vida que não lhe pedia grande agitação, mas que o lançava no
estudo e na reflexão; de temperamento ponderado e atreito à bonomia,
o nosso Autor não terá tido «uma predisposição inata para a alegria,
para a esperança e para o amor à vida», como quer ver a maior parte
dos críticos; sabia muito bem, como médico, que a doença de que era
vítima não poupava ninguém e que ele não podia ser uma excepção à
regra; a tuberculose era então um dos maiores flagelos da humanidade
e ele tinha plena consciência disso; o que nos parece é que, mercê
de condições temperamentais, terá sido capaz de sublimar um estado
desesperado e de transformá-lo num exemplo sadio de
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resignação que faz transparecer uma lição de optimismo e de alegria
que não podem corresponder à sua realidade pessoal. As situações de
vida jubilosa que transparecem da sua obra em geral regulam uma
série de situações de altruísmo que não deixam de nos impressionar;
era um consumado artista; tinha que aproveitar a vida de maneira
positiva; não lhe interessava seguir as pisadas dos ultra-românticos,
acrescentando mais situações e descrições lúgubres; e, ao mesmo
tempo que mantinha o equilíbrio literário entre duas posições que se
apresentavam antagónicas, ele procurava uma válvula de escape para o
seu mundo interior que tinha os dias contados; e já que não podia
gozar, na realidade, de uma vida verdadeiramente alegre e sã,
procurava transmitir aos outros, por uma força antinómica invulgar,
tudo aquilo que pode levar à felicidade terrena; e esta resignação
comprovada vai ele constantemente buscá-la à pureza do Evangelho, do
que nos dá tantas provas através das suas obras. Por outro lado,
pouco se tem olhado para as fotografias do nosso primoroso escritor;
em nenhuma delas o Autor se deixa transparecer em felicidade e
alegria que fez brotar de todos os corações; pelo contrário, podem
ser interpretadas como o indicativo de um homem abatido e vencido
pelas circunstâncias dolorosas da doença que o minava; e Augusto é,
com certeza, a alma mais gémea da sua.
Sabemos também quanto ele procurou
alívio para os seus males; o sossego do campo, as estadias na Ilha
da Madeira, provam também as preocupações do homem que, sendo
médico, tinha consciência do seu mal e sentia que a vida se lhe
escapava a cada instante.
Desta combinação de situações
coincidentes na sua existência – a vida de professor no Porto, as
suas estadias em vários lugares no campo, mas relativamente perto
dessa cidade nortenha – deram-lhe possibilidades de criação de uma
ambiência própria para os seus aliciantes romances.
III
DO BUCOLISMO AO ROMANCE CAMPESINO
Pensarmos que o movimento romântico
foi o rompimento absoluto com os ideais clássicos, é mostrarmos
ignorância sobre o espólio literário da época em todas as suas
fases. Na verdade, o retorno à Idade Média e aos valores nacionais
implica um debruçar constante sobre temas e ideias do passado,
incluindo a cultura clássica; foi-o, sim, nos aspectos particulares
da arte e nas estafadas regras formais; mas há valores clássicos que
são eternos, e desses a cada passo os topamos em escritores
românticos, realistas, simbolistas, etc. A ruptura deu-se,
efectivamente, em oposição a tudo o que cristalizara: ideias,
conceitos e situações; pugnava-se pela eclosão de novas directivas
capazes de orientar o homem no sentido de progresso e de opor a uma
ideologia estática, uma ideologia toda dinâmica e individualista.
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Aliás, o conhecimento das
literaturas antigas e as suas relações com as sociedades coevas
fazem parte de uma cultura que todos os vultos intelectuais
posteriores têm obrigação de ter assimilado como substrato base,
sobre o qual tem de assentar todo o edifício cultural moderno. Por
isso mesmo nós encontramos um Eça de Queirós a deliciar-se com
algumas odes de Horácio, até porque o tema do Carpe diem
apresenta enormes possibilidades para ser explorado pelos realistas.
Foto n.º 5 – Ver
legenda explicativa.
Dos muitos exemplos que poderíamos
citar na obra de Júlio Dinis, lembramos aquele passo em que Daniel,
acabado de formar, se sente entediado e, num desabafo, relembra, com
intenção inversa, o locus amenus da vida virgiIiana:
«Ó sonho dourado dos poetas de
geórgicas e idílios, como eu me estou deliciando em ti! Eis a
secura quies, os otia in latis fundis e os molles
somni, de que fala o poeta. É isto! Ora eu sempre queria que
aquele bom Virgílio me dissesse o que se há-de fazer no campo a
estas horas do dia?» (1)
Pelo boca da sua personagem, que,
após o curso, se sente atirada para o começo da vida prática e à
espera dos primeiros momentos em que possa mostrar a utilidade do
que andara a fazer, ironiza a paz virgiliana, embora venha a
aceitá-la com toda a força da sua alma nos sucessos posteriores da
sua encantadora novela.
O romance campesino, aliás, e muito
particularmente entre nós, não pode ser tido como uma criação
espontânea e original do século XIX; a natureza idílica, quer se
apresente como mero cenário, quer como fonte de emoções, perpassa,
vigorosa, através das composições trovadorescas, espraia-se em
rajadas precocemente românticas na «Menina e Moça» e estilizada e
deliciosamente envolvente nos quadros clássicos das éclogas de
Bernardim, Sá de Miranda, António Ferreira, Camões, Diogo Bernardes,
etc., religiosamente renascentista nas descrições naturalistas da
«Consolação às tribulações de Israel» de Samuel Usque; e se alguns
pastores são popular e rudemente caracterizados em certas peças de
teatro vicentino, que quase chegam a tocar a écloga, não são menos
realistas pela sua rudeza os pastores de Manuel de Melo; em
contrapartida, Rodrigues Lobo continua as descrições
lírico-sentimentais ao lado de facetas moralistas que seguem a
directriz mirandina.
Mas é fundamentalmente no século
XVII com as «Pastorais e os «Romances» de Rodrigues Lobo que vai
surgir a base do futuro romance campesino; eram descrições da
natureza em prosa, alternando com composições poéticas
clássico-líricas, como aconteceu com a «Diana» de Jorge de Montemor,
com a «Menina e Moça», mas seguindo sobretudo o modelo da «Arcádia»
de Sanazzaro.
De feição diferente, tentando um
retorno aos ideais clássicos puros e em luta aberta com o estilo
barroco, com a atitude arcádica de influência francesa, alterna a
nossa literatura do século XVIII com a crítica marcadamente
filosófica e iluminista.
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E, dentro do racionalismo
reformador, chegamos ao século XIX; é aqui que, de mistura com
lendas medievais e narrativas históricas nacionais, surge a primeira
criação de novela campesina; Herculano tem o grande mérito de, no
seu tempo, estabelecer um tema a que só Júlio Dinis, posteriormente,
daria forma definitiva, mas de tal modo que nenhum dos seus
continuadores foi capaz de igualar; ele foi entre nós a grande
organização de artista do romance campesino. E temos a confirmação
de que, desde muito cedo, lia com entusiasmo «O pároco da aldeia»,
novela por que sentia grande estima.
Depois da exploração do ambiente
burguês e comercial do Porto, que o autor conhecia de perto e muito
bem, depois das descrições da vida aperaltada dos meios portuenses,
Júlio Dinis lançou-se no estudo activo dos ambientes burgueses
campesinos, porque só estes poderiam trazer à sua alma angustiada a
serenidade e a paz por que ele tanto se esforçava. Conheceu
profundamente esses meios rústicos e bebeu sofregamente a docilidade
dos campos na sua alegria primitiva e sã. E a doença terá sido um
factor considerável na descoberta desse mundo tantas vezes
desprezado.
IV
AS FIGURAS DA OBRA DE JÚLIO DINIS: ASPECTOS
REALISTAS A PAR DO IDEALISMO ROMÂNTICO
É simpático e convidativo o mundo
humano das obras de Júlio Dinis; as figuras femininas, rodeados de
uma auréola de pureza e de simplicidade, convidam-nos a penetrar no
mais íntimo das suas almas e a travar com elas um diálogo
indefinido; mergulhadas num ambiente de burguesia, quer se integrem
na vida da cidade ou na vida rústica de proprietários mais ou menos
abastados da aldeia, trazem às obrigações dos trabalhos a nota suave
e poética da felicidade patriarcal; se elas não fazem parte
integrante da família a que estão unidas pelos laços do sangue, como
acontece com Madalena e Cristina, estão ligadas a ela por uma
espécie de generosidade universalizada que é fruto do amor emanado
do Evangelho que se espelha no rosto e nos corações das personagens:
é este o caso das órfãs Margarida e Clara em relação ao Reitor e à
casa de José das Dornas ou de Cecília em relação à família de Mr.
Richard Whitestone. Jenny constitui o fulcro da família inglesa, à
volta da qual gravitam os sucessos familiares nas suas relações
íntimas com a família Quintino; é o anjo do lar a coordenar todos os
movimentos com tendência a desvio.
Beatriz é o símbolo feminino da
família aristocrata em decadência, a pairar como anjo tutelar sobre
a Casa Mourisca e a alimentar os últimos dias da vida de seu pai já
impotente para reagir à derrocada, mas orgulhoso demais para aceitar
novas soluções que podiam ser a salvação económica; por isso, a
figura de Beatriz só nos aparece em comparação com a de Berta, e,
sobretudo, como uma recordação saudosa; corresponde de certo modo, e
em plano social diferente, à Ermelinda da «Morgadinha», uma outra
flor que estiola entre um pequeno conflito familiar e religioso,
entre um laivo de razão e o fanatismo. A Chiquinha trigueira do João
da Esquina é o tipo leviano de rapariga saída de uma família que
vive do negócio e que não tem propriamente um modo de vida, o que
lhe permite alimentar o espírito com devaneios e dar origem ao
curiosíssimo episódio em que o novo médico se vê envolvido; o
belíssimo quadro onde entram João da Esquina e José das Dornas, em
que este, perante um esforço inaudito, lê, por imposição do
tendeiro, os versos feitos por Daniel a Francisca, e responde,
completamente alheio às intenções tendenciosas daquele, aos seus
comentários – tudo perpassando em naturalíssimo diálogo é uma das
páginas mais felizes do nosso Autor.
As donas de casa, como a mulher de
Tomé da Póvoa, as tias do Mosteiro e a criada Maria de Jesus, etc.,
enchem completamente o ambiente de família com os seus insistentes
conselhos, com os seus cuidados e avisos, com os seus aborrecidos
ralhetes aos criados.
Mas, de entre estas, há uma que
ressalta substancialmente do conjunto pela sua vivacidade e
dinamismo; a descrição da casa da Ana do Vedor, ama de Maurício e de
Jorge, feita na altura da visita daquele, é um primor de pintura
carregada de elementos realistas tanto na apresentação do ambiente
de trabalho na cozinha de trânsito rural, como no diálogo entre as
duas figuras, sempre interrompido pelos avisos de Ana às
preparadoras da fornada. Pormenores precisos e vivos fixados com
êxito surpreendente por quem conhecia de perto estas labutas do
campo. Mas Júlio Dinis tem muitas páginas como estas, em que se
revela um artista consumado e onde mostra o que sabe e o que quer.
Mas a galeria de tipos masculinos
não é menos rica; diferenciada pelo sexo, apresenta, naturalmente,
características próprias. A uma sociedade aristocrata, depauperada e
decadente, ligada a pergaminhos de morgadio a caminho da extinção,
opõe-se o nascimento de uma burguesia laboriosa e concretizadora,
apoiando a sua actividade no trabalho intenso e calculado; é
possível descobrir o tesouro da fábula escondido na terra
abandonada; e é esta a lição que o fazendeiro Tomé da Póvoa quer dar
aos fidalgos da Casa Mourisca, através do seu filho Jorge, que se
enquadra perfeitamente na revolução agrícola. E esta tese do
enriquecimento por meio do cultivo da propriedade
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já vem das «Pupilas», demonstrada pelo labor constante e alegre da
família de José das Dornas, bem como a da decadência dos morgadios
surge simbolizada no Morgado das Perdizes da «Morgadinha dos
Canaviais» e na ruína completa dos Primos do Cruzeiro.
Foto n.º 6 – Ver
legenda explicativa.
As figuras masculinas principais
aparecem-nos emparelhadas por oposição de carácter a que normalmente
correspondem outras tantas femininas; este aspecto curioso já o
notou o Dr. Fidelino de Figueiredo na sua «História da Literatura
Romântica»; é o que acontece de facto com: Henrique de Souselas –
Cristina; Augusto – Madalena; Daniel – Margarida; Pedro – CIara;
Jorge – Berta; Maurício – Gabriela; Carlos – Cecília; etc. Grupos
que se unem por amor, completando-se cada casal perfeitamente. Os
outros tipos deslocam-se à volta destes, animam a acção e dão
colorido e vida ao enredo; obrigam a caminhar a sucessão dos factos
para a sua finalidade primacial, que, em Júlio Dinis, é o casamento.
Ora, para nós, esta solução
sistemática apresenta-se como um dos defeitos do Autor, pois não é,
na maior parte dos casos, com o casamento que acabam as dificuldades
e os reveses da vida autêntica; pelo contrário começam aí; sentimos
esta obcecação do Autor na ânsia de se apoderar de uma felicidade,
que, de antemão, sabia ser-lhe impossível atingir; quereria,
portanto transmitir aos outros aquilo de que ele próprio não poderia
gozar, pois é tradição familiar que a sua correspondência com
Aninhas, mormente as cartas enviadas da Ilha da Madeira, não
constituíam um mero passatempo de comunicação familiar; haveria mais
alguma coisa, pois, dentro dessa tradição; ele gostava dela,
simplesmente tinha consciência do seu estado patológico e da sua
condenação. Mas este desfecho da sua obra, pela frequência com que é
apresentado, constitui a parte mais convencional na elaboração dos
seus planos literários. Citamos, pois, algumas dessas figuras mais
ricas que caminham ao lado da acção principal: João Semana é uma
criação portentosa do génio dinisiano, cujo estudo só pode ficar
completo com o do vulto do Reitor, cuja vida se desenrola
paralelamente à sua na atitude brincalhona, na generosidade sem
medida, na tolerância que é timbre das almas boas, na abertura para
o mundo dos infelizes que a todo o momento esperam as suas decisões
de entrega e de abnegação. O tio Vicente, o Ervanário, representando
um obstáculo ao progresso desenvolvido pelo Engenheiro, pai de
Ângela e de Madalena, coração limpo e capaz de atitudes nobres,
incapaz de uma vilania, mas que vive sentimentalmente agarrado ao
passado; a conversa íntima entre ele e Lena, a propósito da
construção da estrada e do desaparecimento imposto das suas árvores
e da sua casa, é um mimo de suavidade psicológica entre dois
temperamentos, que, para além do amor, se entendiam e conheciam tão
bem. E deixámos para o fim uma outra figura que nos seduz porque a
sentimos palpável, autêntica, entre a massa aldeã; Júlio Dinis
conhecia-a concretamente tão bem como nós; com certeza a viu algumas
vezes avolumar-se nessas tão saborosas representações populares que
são os autos dos Reis Magos, maravilhosas e ingénuas peças sem autor
que pululam nas aldeias do norte do país; Júlio Dinis soube
enquadrar no romance «A Morgadinha dos Canaviais» um desses
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autos populares com muita mestria, facto que já assinalámos em
estudo nosso (2); daí a criação espantosa de João Cancela, o
Herodes, que, senhor absoluto do seu papel, não transige perante os
anacronismos históricos, geográficos, cronológicos e
consuetudinários; o Autor soube como ninguém ir ao povo beber aí os
seus costumes e as suas tradições, amá-lo nas suas manifestações
espontâneas e acarinhá-lo com as suas reproduções.
Não podíamos, todavia, deixar passar
em falta os tipos religiosos que nos dão a ideia absoluta da
interpretação do Evangelho à luz do Autor que procurava o
Cristianismo puro e o opunha, partindo do ultra-romantismo, em
franca discrepância perante as congregações religiosas e as suas
regras intransigentes. O padre idealizado por Júlio Dinis está nas
«pupilas» – é o Reitor; mas esta concepção divina e humana do padre
que vive exclusivamente para os outros, que sofre profundamente com
as suas misérias, que tudo dá, conselhos e bens, para melhorar
situações e resolver problemas, é a mesma de Herculano no «Pároco da
aldeia», da introdução aos «Contos e lendas» de Rebelo da Silva e
virá a ser a mesma de Eça de Queirós na «Ilustre Casa de Ramires».
Em contrapartida, e como os escritores racionalistas, Júlio Dinis
vergasta acerbamente o frade egresso na pessoa de Frei Januário nos
«Fidalgos», e na do missionário na «Morgadinha» que vem a ser
violentamente zurzido pelo próprio João Cancela quando ele levou a
mulher a cortar o belo cabelo de Ermelinda.
Estas atitudes, tão severamente
criticadas então e posteriormente, não deixavam de revelar uma
posição certa ou quando muito equilibrada; hoje, mediante as
profundas reformas da Igreja, todos temos que lhe dar razão.
Perante algumas situações evocadas
da obra deste autor de transição, bem como das personagens mais
importantes, verificamos que conhecia bem os princípios realistas
literários; se o realismo consiste na reprodução fiel da natureza em
todos os seus aspectos – pormenores das gentes e do meio envolvente
em que se agitam – Júlio Dinis soube ,dar-nos com originalidade
quadros dignos do pincel de Courbert; mas as personagens, para além
das características precisas com que são vincadas, estão aureoladas
por um idealismo romântico que as torna verdadeiras; assim,
conseguiu dar-nos homens e mulheres reais que encontramos a cada
passo na nossa vida, e não as chamadas figuras-tipo; deste modo, se
tentássemos transportá-las para a tela, teríamos de cair na célebre
questão entre os apologistas da cor e os do desenho, de que são
representantes e intervenientes os pintores franceses Ingres e
Delacroix.
V
BREVES ASPECTOS DA CRÍTlCA DINISIANA
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Habituámo-nos, desde a meninice, a
considerar Júlio Dinis um companheiro na nossa casa da aldeia;
certas personagens dos seus romances, como a tia Doroteia do
Mosteiro e as suas constantes admoestações aos criados, João Semana,
Frei Januário, Tomé da Póvoa, o Herodes e o Reitor, andavam na boca
do pai como se fossem figuras da família há pouco desaparecidas,
sempre invocadas em ambiente de alegria e com um sorriso nos lábios.
Por outro lado, por meio de um breve inquérito que fizemos em
algumas aldeias do norte da Bairrada, chegámos à conclusão de que as
obras mais lidas pelo povo dessa região e presentes num número
considerável de casas de lavradores, eram, a par do «Amor de
Perdição» de Camilo e da «Rosa do Adro» de Manuel Maria Rodrigues,
«As pupilas do
/ 16 / senhor Reitor»; isto quer dizer
que Gomes Coelho não foi um escritor vulgar, pois da obra se deduz
que comungava ideias, sentimentos e factos entre a massa popular,
que admirava a sua obra em leituras colectivas de feição patriarcal
e familiar.
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Foto n.º 7 – O Dr. João José da
Silveira, que foi o João Semana das «Pupilas».
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Posteriormente, vem a crítica; e
esta, tentando por vezes desvendar mistérios impenetráveis sobre
alguns aspectos da biografia do Autor, que, aliás, não nos merece
grandes complicações e segredos, e sobre os modelos das suas figuras
tiradas da vida real, tem vindo a ensarilhar posições e a desvirtuar
a simplicidade de que se rodeava o homem e com que envolvia a sua
produção literária; às vezes, porque somos complicados, acabamos por
enredar as coisas alheias e até as nossas.
O grande biógrafo e crítico de
Joaquim Guilherme Gomes Coelho foi o Doutor Egas Moniz, autor da
obra notável e de consulta inevitável para quem quiser debruçar-se
sobre o assunto. «Júlio Dinis e a sua obra» é estudo fundamental que
ainda não foi superado e duvidamos muito que o seja; o seu autor,
aliás, amante da investigação e da verdade, é intelectual de alto
coturno e de renome universal; médico, cientista e sábio, natural de
Avanca, professor universitário, teve à mão tudo quanto lhe era
preciso para escrever obra de verdade: documentos manuscritos já
publicados, documentos escritos inéditos (todo o espólio de
trabalhos não publicados, incluindo rascunhos e peças de teatro,
apareceu nas «Obras Completas» da Livraria Civilização), relações
estreitas com a família do escritor e com outras pessoas a ela
ligadas, sendo, além disso, conhecedor profundo de pormenores
tradicionais decorrentes da própria família de Júlio Dinis; estava,
pois, à altura de fazer obra de vulto e não claudicou.
Não nos admiramos de que,
posteriormente, surgissem outros a especularem sobre afirmações
feitas; é até louvável esta atitude e prova que o Autor continua a
manter interesse. Neste caso, e para nós, a tradição familiar tem
valor relevante; se aceitamos as ideias dos outros, é porque nos
merecem toda a consideração, não querendo isto dizer que concordemos
com elas em absoluto. Efectivamente, qual é o interesse de uma
solução definitiva quanto ao modelo de João Semana? Que mais nos
traz de autenticamente positivo e válido, que seja o Dr. José da
Silveira (fotos n.º 5 e 7) de Ovar, para quem nos inclinamos, de
acordo com a maior parte dos críticos, ou o Cirurgião do Coteiro,
Joaquim Silvestre, como quer M. J. Oliveira Monteiro?
|
Foto n.º 8 – Fotografia do avô de Arnaldo Duarte da Silva, Dr. António
Zagallo Gomes Coelho, primo direito de Júlio Dinis e filho de D.
Rosa Zagallo Gomes Coelho, de Ovar [reprodução]. |
Que acrescenta, do ponto de vista
artístico, que a paisagem enquadrante campesina seja a da região de
Ovar ou das proximidades do Porto? Não há dúvida de que Júlio Dinis
conheceu muito bem esses ambientes e pessoas; estamos, portanto no
campo das certezas; mas que cada paisagem seja esta ou aquela ou que
cada personagem apresentada se identifique com esta ou com outra
pessoa, isso é que já nos diz pouco, porque estamos a querer roubar
ao Autor a sua capacidade de criação e de abstracção. Parece-nos que
cada paisagem tem elementos daqui e de além, bem como qualquer
personagem pode apresentar uma espécie de simbiose em que Gomes
Coelho reuniu um conjunto de características físicas e morais que
teriam pertencido a várias pessoas suas conhecidas. Teve a rara
habilidade de observar a realidade com olhos de investigador e de
partir daí para as suas criações a que atribuía qualidades e
defeitos que eram o produto de uma selecção cuidada, purificada pelo
cadinho burilador da sua própria alma; a qualificação das suas
personagens é coerente com a feição temperamental do Autor, sempre
optimista, para quem as violências instintivas, que vêm da falta de
formação e de educação, não apresentam interesse de maior. A alma do
Autor, sedenta de vida, não pode gerar outra coisa que não seja
amor; e este amor não pode enraizar-se senão no Evangelho; por isso,
o convencionalismo dinisiano é pessoal e coincidente com as próprias
criações. Aqui é que está a arte de Júlio Dinis, e disto se salienta
o desvendar das causas por que a sua Obra entrou
/ 17 /
intimamente no seio da Família Portuguesa onde ainda continua a ser
tão apreciada.
Foto n.º
9 – Lê-se perfeitamente a assinatura de Júlio Dinis e, mais
abaixo, a do actual possuidor da obra. |
Para qualquer estudo que venha a
fazer-se sobre o nosso Autor, consideramos indispensável a consulta
dos trabalhos que foram elaborados e proferidos no «Centenário do
nascimento do romancista Júlio Dinis», cuja comemoração foi
promovida pelos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Porto, de
colaboração com a Faculdade de Medicina dessa cidade nortenha. De
importância capital foi então a Exposição Bio-biblio-iconográfica,
onde estiveram patentes ao público documentos como o registo de
nascimento e o de óbito do Autor que podem desfazer certos enganos
espalhados por alguns livros de carácter literário. Do mesmo modo,
embora discordemos de alguns pontos de teses expostas, as palestras
reunidas no «Boletim Cultural (3) não pedem ser desconhecidas
pelos actuais estudiosos da literatura Pátria. Aí estão incluídos
nomes célebres não só da Medicina, mas também da Filosofia, da
Poesia, da Etnografia, da Pintura e da Literatura. O conjunto dos
trabalhos e dos seus autores merece ser lembrado, o que fazemos de
acordo com a ordem de publicação no citado «Boletim»:
|
Joaquim Costa (Dr.) – «Júlio Dinis –
Valor moral da sua Obra»;
António Correia d’ Oliveira – «Júlio
Dinis – Versos lidos junto do seu túmulo»;
Antero de Figueiredo (Dr.) –
«Últimos dias de Júlio Dinis»;
Fernando Magano (Prof. Dr.) – «A
lição do Senhor João Semana»;
Luís de Pina (Prof. Dr.) – «A
Medicina na obra de Júlio Dinis»;
Hernâni Monteiro (Prof. Dr.) –
«Júlio Dinis e a tradição literária da Escola Médica do Porto»;
Almeida Garrett (Prof. Doutor) –
«Júlio Dinis, Médico e Professor»;
Eugénio Aresta (Dr.) – «Uma lição de
Psicologia a propósito da obra de Júlio Dinis»;
Luís Chaves – «Júlio Dinis no campo
da Etnografia» (Notas);
José António de Almeida (Dr.) –
«Ainda as Pupilas do Senhor Reitor»;
A. de M. B. – «Ensaio duma biografia
iconográfica júlio-dinisiana».
Entrarmos em linha de conta com
outros críticos, se exceptuarmos António José Saraiva, na sua
«História da Cultura em Portugal», é cairmos em lugares-comuns que
deixam de ter interesse; mas há uma edição ilustrada de «As Pupilas
do Senhor Reitor», prefaciada por Albino Forjaz Sampaio, em que este
escritor declara que Júlio Dinis não foi um médico no sentido
corrente do termo, mas sim um grande médico de almas; é isto que
todos aqueles que lêem a sua obra podem de facto confirmar.
VI
ENCONTRO COM JÚLIO DINIS EM NAMPULA
O nosso interesse e amor pela obra
de Júlio Dinis já estão documentados em ligeiros estudos nossos, um
publicado num jornal (4) e outro numa revista
(5) da
metrópole; jamais tínhamos pensado, ao virmos para Nampula, que
surgisse nesta cidade algum motivo que nos levasse a debruçar sobre
este escritor do norte de Portugal. O que é certo é que o facto
surgiu e há muito acalentávamos a ideia de a ele nos podermos
dedicar outra vez. É que, nesta cidade de Moçambique,
/ 18 / vivem
pessoas ligadas pelo sangue à família Gomes Coelho; foi da
conversação e do convívio com Arnaldo Zagallo Gomes Coelho Duarte
Silva que nos nasceu a ideia de, mais uma vez, nos deleitarmos com a
obra deste primoroso e malogrado escritor, visto que está na posse
de algumas obras que pertenceram à sua biblioteca, e uma delas até
está assinada pelo próprio punho de Júlio Dinis: trata-se da «Chronica
do Sereníssimo Príncipe D. João», escrita por Damião de Goes, uma
edição feita «na real oficina da Universidade», Coimbra, Anno de
MDCCLXXXX (fotos n.º 9 e 10).
|
Foto n.º 10 – Uma das páginas iniciais da obra a que no texto
se faz referência. |
O outro livro pertenceu ao
Convento do Pereiro em Santarém, segundo uma nota manuscrita no
topo da primeira página, tem por título «Ceremonial moderno da
Província da Arrábida, segundo o rito Romano», composto pelo
Padre Fr. João de S. José do Prado e oferecido a Sua Magestade
Fidelíssima de Elrey D. José I; saiu da officina de Francisco
da Silva, Lisboa, MDCCLlI (foto n.º 11).
Nessa troca de impressões entre o
Sr. Duarte Silva e nós, ressaltou a força da tradição familiar a
propósito de alguns pontos de vista do nosso escritor: o facto das
cartas trocadas entre o tio e a sobrinha Aninhas não ser uma simples
troca de correspondência ou mera simpatia, havendo por detrás disso
alguma coisa de carácter sentimental; a família personalizava
Aninhas como algumas das suas heroínas. É de salientar que,
posteriormente à morte do escritor, Aninhas promoveu uma edição das
suas obras que levaram impresso o nome de cada pessoa de família a
quem foram oferecidos os vários volumes: Alberto; Rosa (mãe do Sr.
Duarte Silva que ainda possui os referidos volumes, e cujo avô, Dr.
António Zagallo Gomes Coelho, veio a ficar com a biblioteca do
Autor, se formou ao mesmo tempo que ele e era seu primo direito);
Laura; Beatriz; Eduardo; Matilde. Por outro lado, o caso da conversa
entre o filho (Júlio Dinis) e o pai (Dr. José Joaquim Gomes Coelho)
que, vendo-o sempre a escrever, lhe dissera que, se ao menos
escrevesse coisa de jeito como esse Júlio Dinis, autor das crónicas
da aldeia, «As Pupilas», que saíram no «Jornal do Porto» em
folhetins, em 1866, ainda valeria a pena todo esse esforço. Mal
sabia ele que esse elogio era dirigido ao seu próprio filho.
Estes acontecimentos familiares,
perpetuando-se entre as pessoas do mesmo sangue, passam a ter valor
documental; nós sabemos que em todas as famílias há factos que se
continuam de geração em geração, que existiram na realidade, mas que
não podem ser confirmados pela tradição escrita; e estes estão nesse
caso.
Foto n.º 11 – Reprodução de uma das primeiras páginas do «Ceremonial»
com a nota ao cimo a que nos referimos no contexto. |
A nossa felicidade, contudo, não se
limitou a este encontro, ocasionalmente aparecido e ligado à nossa
vida profissional; tivemos a sorte também de encontrar um outro
Amigo, verdadeiramente apaixonado pela cidade do Porto e por tudo
quanto se possa ligar a ela; livreiro de profissão, amante da boa
leitura, é conhecedor de Júlio Dinis de longa data, possuindo em sua
mão citações e fotografias que pôs à nossa disposição para as
utilizarmos à vontade; o Sr. João VilIares da Silva foi um destes
homens raros que, com dificuldade, encontramos na vida; são as
fotografias que vão neste trabalho, indicando as casas e a fonte de
Ovar, o Dr. José da Silveira, bem como o n.º 29 do «Boletim da Casa
do Concelho de Ovar», de Junho de 1957, onde vêm dois artigos que
defendem a reivindicação desta vila e as suas estreitas relações com
a vida e a obra do escritor em causa. Além disso, proporcionou-nos
também umas anotações para esclarecimento dessas fotografias que lhe
foram enviadas da Beira pelo Sr. Manuel Rodrigues de Pinho, em Abril
de 1964, e que reproduziremos em nota.
|
Tudo isto patenteia o mundo lusíada
tão espalhado no globo mas sempre interessado nos problemas de raiz
profundamente nacionais; é o forte amplexo rácico que nos faz vibrar
a alma nas recordações das nossas coisas, das nossas gentes, e das
nossas terras. Descobrir Júlio Dinis em Nampula, a tantos anos da
sua / 19
/ morte e a tão longa distância no espaço, foi para
nós motivo de reflexão deliciosa e algo de surpreendente e singular.
A 12 de Setembro de 1971,
celebrar-se-á o centenário da morte do grande escritor, do médico
das almas, como lhe chamou Albino Forjaz Sampaio; estas nossas
considerações foram pensadas e escritas com um ano de antecedência
dessa celebração; que elas constituam uma pequena contribuição, para
que o autor da suavidade e da vida pacífica na Literatura
Portuguesa, continue a ser conhecido entre as novas gerações como de
facto merece, através de todos os recantos de Portugal espalhados
pelo mundo.
Nampula, 13 de Junho de 1970.
TRANSCRIÇÃO DAS ANOTAÇÕES ÀS FOTOGRAFIAS
DE MANUEL RODRIGUES DE PINHO
JÚLIO DINIS EM OVAR
FOTOGRAFIAS
N.º 3 –
Casa em Ovar – Largo dos
Campos – onde Júlio Dinis viveu durante alguns meses, nela começando
a escrever as «Pupilas», nos meses de Julho e Agosto de 1863. Da
parte de dentro da janela que se vê à direita (sem vidros) teve
Júlio Dinis ocasião de ouvir sua prima «puxar pela língua» a uma
beata que todos os dias ali passava da Capela dos Campos que fica no
extremo do Largo para onde faz frente a casa.
Esta beata aparece-nos nas «Pupilas»
e na «Morgadinha».
Sobre esta casa escreveu Antero de
Figueiredo em «Os Serões»: «Oh! Casa amiga e insinuante que tiveste
a caridade da ilusão para com um meigo doente, e estimulaste um
espírito abatido a criar livros que a tantas almas levou o deleite
subtil duma arte amena!»
N.º 4 –
Antiga recebedoria de Ovar,
para onde Júlio Dinis ia passar as noites, conversando com as
pessoas que mais tarde havia de imortalizar sob os nomes de
Margarida, Clara, Reitor e Daniel (que outro não seria senão ele
próprio).
A esta casa se refere o escrito numa
carta publicada nos «Inéditos e Esparsos», dizendo: «...ou a
conversar no escriptório do recebedor de décimas, grande original
que vim encontrar aqui, um verdadeiro typo de romance. Chama-se o
Sr. Thomé Simões».
À janela da casa vêem-se a filha da
que foi a «Margarida das Pupilas» e uma neta (esta vestida de
preto).
N.º 5 –
A casa onde vivia o Dr. João
Semana, das «Pupilas», e que era o médico João José da Silveira, que
Júlio Dinis retratou fielmente, no dizer dos que com ele conviveram.
Esta fotografia foi tirada em 1944,
e à janela ainda se vê uma das filhas do Dr. Silveira.
Esta casa, que ficava no Largo do
Calvário, foi demolida há uns três ou quatro anos, para no seu lugar
se construir um edifício novo
(6).
N.º 6 –
A Fonte do Casal,
reconstruída. Actualmente chama-se Fonte Júlio
Dinis, porque o escritor, algumas vezes sentado na ponte que lhe fica
junta, tomava apontamentos, escrevia ou prestava atenção às
lavadeiras.
Os azulejos da Fonte representam
cenas das «Pupilas do Senhor Reitor.
Esta fonte (então em estado
primitivo) é aquela junto da qual se desenrola o capítulo XXXII das
«Pupilas».
N.º 7 –
O Dr. João José da Silveira,
o verdadeiro João Semana.
_____________________________________
(1)
– «As Pupilas do Senhor Reitor», Lello & Irmão. Porto. 1968, pp.
175-176.
(2)
– «As Janeiras», «As Pastoras» e «Os Reis» – in «Aveiro e o seu
distrito, n.º 2 e 3, 1967, pp. 59-65 e 29-44. Cf. «Aspectos de
folclore em Júlio Dinis», in «Jornal da Bairrada, n.º 274.
(3)
– «Boletim Cultural da Câmara da cidade do Porto», Vol. II, pp.
393-562, Porto, 1939.
(4)
– «Aspectos do folclore em Júlio Dinis», in «Jornal da Bairrada»,
n.º 274.
(5)
– «As Janeiras, as Pastoras e os Reis», in «Aveiro e o seu
distrito», publicação semestral da Junta Distrital de Aveiro, n.º 2
e 3, 1967, págs. 59-65 e 29-44.
(6)
– Devemos ter em conta o ano em que o Sr. Manuel Rodrigues enviou
estas notas e não o ano em que estamos actualmente. |