Estou a vê-lo. Alto, franzino, quase
transparente. Tenho nos ouvidos o timbre da sua voz, a que o gesto
nervoso e amplo mais vivacidade emprestava. Parece-me sentir ainda a
cadência dos seus passos, que o faziam adivinhar ao longe. A frase
de Pascal, que ele tantas vezes citou na vida: «I'homme c'est un
roseau...» o homem é uma cana, mas uma cana que pensa, quase que se
lhe poderia aplicar à letra. A encimar aquele corpo débil, que uma
aragem faria vergar, havia uma cabeça – uma bela e inconfundível
cabeça. Ela era o espelho da sua personalidade: testa ampla,
emoldurada por madeixas de cabelos, que o tempo embranquecera; olhos
fundos, que tanto eram capazes de um olhar de enternecimento e
doçura, como de um brilho de indignação ou da mística fixidez de
alguém que contempla o Absoluto. Face cavada de sulcos profundos,
cuja mobilidade permitia o gesto do rosto, a completar aquele com
que todo o seu ser físico comentava a palavra, que lhe saía dos
lábios.
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D. Manuel Trindade Salgueiro foi um
homem de Ílhavo. Dizer que foi um homem de Ílhavo é dizer que foi um
homem que trazia o mar no coração e nas veias. Se se encostasse o
ouvido ao seu peito, talvez se ouvisse dentro dele, como acontece
aos búzios, o murmúrio das ondas.
Os homens de Ílhavo têm a vocação do
Oceano. A sua terra é o mar. Ali vivem, ali trabalham e ali morrem
também. Mais do que o lavrador, o seu destino está pendente do
incerto e do imprevisto. Quando saem para o mar, acompanha-os sempre
a dúvida do regresso. Talvez esteja aí a razão por que são tão
profundamente religiosos. O Senhor dos Navegantes podia ali ser
invocado antes mesmo de Ílhavo ser terra cristã. Junto dos altares
da igreja paroquial há sempre luzes acesas em sinal de prece pelos
que andam no mar, e as paredes da igreja e das capelas cobrir-se-iam
facilmente de ex-votos de promessas feitas por homens em perigo, ou
pelas mulheres e filhas deles que ficaram em terra à espera de eles
voltarem.
Nem sempre as preces são atendidas.
Há lâmpadas que parecem arder inutilmente. Há orações que se
assemelham às pérolas perdidas no fundo dos Oceanos e parece não
servirem a ninguém. Esse é um mistério cuja solução se encontra
escondida no coração de Deus. As almas simples aceitam-no com
resignação.
/ 22 / A fé dá-lhes a resposta
antecipada daquilo que não conseguem por ora compreender.
D. Manuel Trindade Salgueiro era
filho de um homem do mar – de um homem que perdeu a vida no mar. Nos
cemitérios das outras terras, pelas lápides sepulcrais pode
refazer-se a história das gerações. Os filhos podem ajoelhar-se
junto dos jazigos dos pais: o pó das sepulturas é feito da carne dos
seus maiores. Em terra de pescadores, porém, o cemitério dos homens
é, muitas vezes, o mar.
Um homem do mar, que perdeu o pai no
mar, sente no marulhar das ondas o que os outros descobrem na
brancura das campas ou na silhueta esguia e recolhida dos ciprestes.
Talvez esteja nisso a razão por que D. Manuel Trindade Salgueiro
gostava tanto do mar. Quando voltava a Ílhavo, o seu passeio
predilecto era até junto da amurada da Barra, em frente do Oceano,
por onde todos os dias entram e saem os barcos que andam na faina da
pesca.
O homem de Ílhavo tem um modo de ser
especial. Senhor absoluto e plenamente à vontade dentro do barco,
sente-se estranho em terra. A terra é o domínio da mulher. É ela que
governa o dinheiro, que matricula os filhos na escola, que trata do
baptizado ou dos papéis do casamento. Em terra o homem sente um
complexo de inferioridade, ou, quem sabe, de superioridade, como se
valessem pouco as coisas da terra, comparadas com aquelas, mais
importantes, que ele vive em cima das ondas.
Tenho pensado no que teria sido
aquela criança, órfã de pai desde os mais tenros anos, se, em vez do
pai, lhe tivesse faltado a mãe. Em Ílhavo esta circunstância reveste
um significado especial.
D. Manuel Trindade Salgueiro foi um
modelo de homem, de intelectual, de sacerdote e de bispo.
Homem dotado de qualidades
invulgares de carácter, de inteligência e de sensibilidade, acordava
facilmente nos homens com os quais contactava, mesmo que não
comungassem do fervor da sua fé religiosa, a sintonia do coração.
Nítida vocação de intelectual, foi
um contemplativo da verdade, que ele procurou repartir com os
outros, no magistério da palavra e da pena, no seminário, na cátedra
universitária e no púlpito da sua catedral.
Sacerdote e bispo, dominava-o a
paixão de levar os homens a Deus. Em papel, que traz a sua
inspiração, escreveu ele esta palavra de S. Francisco de Sales:
Senhor, que eu aproxime de Vós todos aqueles que se aproximam de
mim.
Um homem de tal robustez espiritual
a morte não o vence. As suas virtudes e o seu talento falam dele
para além da morte. |