Desassombrado nas suas
opiniões, Homem Cristo fazia da sua pena um látego com que
intransigentemente zurzia quem quer que fosse e sem temer as
animosidades e as consequências. Criou, assim, a par de
fervorosos admiradores e de fiéis amizades, muitas inimizades
e profundos ressentimentos, que contra ele se voltaram
tenazmente.
Fez parte do Directório do
Partido Republicano, ainda na vigência da Monarquia,
conjuntamente com Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, Jacinto
Nunes, Azevedo e Silva e outros marcantes vultos da propaganda
republicana.
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Estabeleceu doutrina, não só
no seu jornal, mas noutros órgãos da Imprensa, como os
“Debates”, e em “O Século”, fundado e então dirigido por
Sebastião de Magalhães Lima.
Quando se engendrou a revolta
do Porto, de 31 de Janeiro de 1891, Homem Cristo manifestou-se
contrário ao movimento, alegando que, sem a preparação
necessária, esta estaria condenada ao malogro e a derramar
sangue inutilmente. Preso e julgado, como se provasse a sua
inocência, veio a ser absolvido. Sempre arrebatado e rude, ora
atacava os monárquicos, ora combatia os republicanos, com o
ímpeto indomável de um franco-atirador.
Apóstolo convicto e entusiasta
da democracia e da instrução popular, realizou obra muito
valiosa contra o analfabetismo, especialmente, em quartéis,
enquanto oficial.
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Um trecho
autógrafo de Homem Cristo |
Quando da implantação da
República, viu-se forçado ao homísio, havendo suspendido a
publicação do seu semanário, editou, em Paris, o “Povo de
Aveiro no Exílio”.
Ficaram memoráveis muitas das
suas polémicas. Aos seus ataques respondeu Guerra Junqueiro
com o seu desforço «A Execução de uma Quadrilha». Ao desafio
de Afonso Costa, o temível panfletário aveirense respondeu,
negando-se a duelos, mas afirmando-se pronto a desafrontar-se
onde quer que o encontrasse. Como resultado dessa pendência
veio a deixar o Exército em 1909.
Deflagrada a primeira Grande
Guerra, intervencionista convicto e acérrimo, regressou ao
País, e voltou a publicar em Aveiro o seu jornal, então, sob o
título de “O de Aveiro”.
Foi nomeado, em homenagem aos
seus méritos e cultura, pouco após o termo da conflagração,
professor catedrático da recém-criada Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, lugar que desempenhou, com alguns anos
de interrupção da docência, por motivo de incompatibilização
com outros professores, até atingir o limite de idade.
/ 37 / Em Aveiro, além
de outras actividades e serviços de menor repercussão, foi
presidente da Associação Comercial e Industrial e da Junta
Autónoma da Ria e Barra de Aveiro, onde teve acção
notabilíssima a favor do ressurgimento portuário e económico
da região.
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Publicou: «Os acontecimentos
de 31 de Janeiro e a minha prisão», «Pró-Pátria»; «Banditismo
político»; «Cartas de longe»: I – A instrução secundária em
Portugal e em França – II – Em defesa da instrução do povo;
«Monárquicos e Republicanos»; «O bolchevismo na Rússia»; e
Notas da minha vida e do meu tempo, 7 vol. Foi colaborador da
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, e de numerosas
outras publicações, como o «Guia de Portugal», de Raul
Proença, o «Diário de Notícias», a «Ideia Nacional», dirigida
por seu filho primogénito, etc. |
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HOMEM CRISTO NO PARLAMENTO
A extraordinária notoriedade
alcançada por Homem Cristo resultou primacialmente da sua
denodada actividade jornalística, exercida em mais de sessenta
anos ininterruptos. Iniciou-a aos dezassete, no jornal “O
Trinta”, – fundado por Cecílio de Sousa –, moço prosélito dos
ideais republicanos, voltado ainda mais à pura doutrina que à
feição polemicante, que seria o seu pendor temperamental mais
conhecido, e o tornaria tão famoso como temido.
Já então usava a linguagem
incisiva e ardorosa, e certa veemente intransigência. Ainda
não sofrera, todavia, os desapontamentos, nem a incompreensão
e resistência pela inflexibilidade das suas atitudes,
simultaneamente meditadas e impulsivas, ou o bloqueio de
silêncio e hostilidade que em sua volta os antagonistas
procuraram estabelecer e apertar. Ainda não haviam surgido os
diferendos com os correligionários, nem as lutas acendradas
até ao rubro com as facções adversas.
O azedume do panfletário sem
contemplações, que aliás nunca lhe obnubilaria a jovialidade
de trato; o vigor exasperado de desforço na luta desigual a
que se encontrou submetido, de um contra uns tantos, mais ou
menos numerosos e dotados; a indignação máscula e bravia do
homem inflexivelmente rijo, que não condescendia com
transigências comprometedoras, com a molície acomodatícia do
deixar correr, e com as tergiversações, ladeantes dos rumos
definidos; o desencadear da irada veia de fundibulário de
certeira pontaria, com evidentes excessos e em que o
exacerbado espírito de justiça crítica atingiria, pela
incontinência e desmesura, a injustiça, que execrava e
combatia; o desbordar de fervor comunicatório, que lhe estava
intrínseco e latente e constituía a sua característica
dominante e de maior evidência – surgiriam depois, em
crescendo. Intensificar-se-iam com o tempo, o estudo aturado
dos livros e dos homens, e o treino ininterrupto.
Singularizá-lo-iam na
/ 38 /
truculência da arremetida, no estilo perfeitamente ajustado,
transparente como uma evidência, inteligível a toda a gama de
leitores, despido de atavios supérfluos, vernáculo sem
demasias de purismo, e contundente como uma clava, cáustico
como vitríolo, recheado de apodos e sarcasmos, e fluente,
espontâneo, desafectado.
Teve tribuna efectiva em
órgãos da imprensa, muito jovem ainda nos “Debates”, em “O
Século”, onde Sebastião de Magalhães Lima lhe confiou o
comentário internacional e redigiria, por vezes, o artigo de
fundo.
Visceralmente jornalista,
panfletário de inexcedida energia e intrepidez, com
excepcional penetração e capacidade dialéctica, homem com uns
quantos princípios irremovivelmente firmes, a esses
inalienavelmente apegado, democrata até ao âmago e, como
consequência, republicano, propugnador dos seus ideais, na
exegese serena ou por vias, com mais lata audiência, da
própria pugna e da diatribe, a feição plumitiva, a que deu o
talento e a infatigabilidade de pelejador sem tréguas, o
individualizou e notabilizou.
Toda a demais acção, privada
ou pública, da sua vida ardente e agitada, embora levada a
efeito com escrupulosa exacção e, em regra, com destaque no
cotejo com a generalidade, e fecunda e útil, apaga-se em
relação à do jornalista, tantas vezes solitário, a bradar a
plenos pulmões o que ninguém mais tinha a coragem de
proclamar.
A carreira militar, de que a
política o afastou e na qual deixou rasto e fez sementeira
pródiga de promoção humana nos soldados iletrados; as
iniciativas que tomou a favor de Aveiro, como figura
proeminente de uma vaga liga defensora dos interesses da
cidade, que ficaria restrita ao seu esforço e influência
individuais e, mais tarde, culminaria com uma obra de extrema
eficiência, na campanha de apostolização – essa também
jornalística – e nas tarefas sumamente esclarecidas,
convincentes e pertinazes a que se entregou como presidente da
ainda então incipiente Junta Autónoma da Ria e Barra, para o
ressurgimento portuário aveirense; a cátedra da recém-formada
Faculdade de Letras da Universidade do Porto; a sua vincada
passagem pelas organizações políticas militantes constituíram,
embora atestassem méritos relevantes, como que episódicas
fases da sua biografia, acessórios complementos de um
«curriculum» em que a tudo sobreleva o jornalista nato e
incomum, o foliculário como nenhum outro na nossa época
singularizado.
O jornalismo, na sua feição
política, específica e eminentemente o caracterizou.
Franco-atirador, com um jornal fundado aos vinte e dois anos,
que, pouco após a fundação com alguns qualificados redactores
e colaboradores, passou a redigir praticamente sozinho, fez do
seu semanário famoso sua pessoalíssima e exclusiva tribuna,
sem peias, desobrigado de toda a sorte de contas ou
satisfações a dar, sem ligações que compelissem a
transigências, proclamando as suas convicções e as verdades de
que estava persuadido, clamando em nome dos que calavam as
reclamações, desferindo raios e frechas, e trovejando com
estertorosa iracúndia os protestos.
Um aspecto da sua vida
pública, porventura o mais esporádico, tem sido omitido nas
referências biográficas a Homem Cristo. Não lhe acrescenta a
glória, mas não compromete o nome prestigioso de que deixou
recordação imperecível. Queremos referir-nos à sua passagem,
em duas legislaturas pelo Parlamento.
O famoso e temeroso
fundibulário do «Povo de Aveiro», que escrevia com uma
fluência excepcional, ao correr da pena e redigindo colunas
compactas para o seu semanário quase sem uma emenda,
espontâneo, rápido, servido por uma multímoda e fidelíssima
memória e uma bagagem cultural invulgar, não evidenciaria
talvez correspondentes dotes parlamentares. Nunca se mostraria
o orador do tipo em que normalmente o concebemos, cultivando a
forma, desferindo a fantasia, rebuscando os efeitos retóricos,
mas na pugna parlamentar embora fugaz, logo se impôs pela
desassombrada virilidade e as suas peculiares qualidades.
Conversador invulgarmente
atraente, com uma grande variedade de inflexões ajustáveis ao
tema e à circunstância, que do nasalado ao cristalino passavam
no preciso momento, ora com registos graves e cavos, ora a
tocar na elocução o esganiçado e o falsete, arrastando as
palavras para lhes imprimir um reforço de expressão ou em
ritmos céleres, dando o claro e o escuro, e o colorido e o
acre sabor, repetindo e repisando, recheando de pitorescos
traços o desafectado colóquio, o jornalista rude e acerbo
transmudava-se, prendia e enlevava. E ainda que, em frequentes
ensejos, o interlocutor acabasse por se cingir a escutá-lo, já
porque tinha a arte nata e consumada de discorrer, já porque
tinha maior domínio dos assuntos e poder de transmitir, ou por
falta de oportunidade e exercício dessas propícias faculdades,
viveu, por conveniência própria e porque as circunstâncias,
por ele em grande parte criadas, o isolaram na sua cidadela,
sem contacto directo com assembleias.
Quem, aliás, o ouviu alguma
vez discretear numa pequena roda de admiradores ou afeiçoados,
ou nas reuniões, calmas ou tempestuosas, a que presidira na
sua terra natal, ou a falar em público, lendo ou sobretudo
improvisando, sentiu-lhe na forma tão desarrebicada como
sugestiva e no tom incisivo e vivaz, o poder de persuasão e
atracção. Não era orador espectacular, de grandes reptos e
tropos arrebatadores, mas impressionava qualquer auditório
pela força desbordante que punha ao discurso, pela sobriedade
e propriedade acessibilíssimas, a clareza de ideias e factos
expressos, filtrados pelo seu lúcido espírito e condimentadas
pela palavra
/ 39
/ ou o dito de mais realçante significado, ainda que
com laivos de plebeísmo ou caindo no despejo de linguagem.
*
* *
Um dia, finda há cerca de um
ano a primeira Grande Guerra, na qual foi intervencionista
entusiástico, com uma obra de propaganda e esclarecimento que
lhe trouxe um enorme prestígio e criou uma corrente de opinião
para lhe confiar a chefia de um novo partido político, Homem
Cristo, com essa redobrada aura, sem para o facto meter prego
nem estopa, sem dar nesse sentido um só passo, já que
inteiramente desconhecia a escolha da sua candidatura, surdiu,
de surpresa, deputado pelo longínquo círculo eleitoral de
Timor.
A eleição verificada a 3 de
Agosto de 1919, para o fogoso e grande jornalista constituiu
uma tal surpresa que, ao princípio, nem a queria acreditar,
uma vez que ninguém sequer o havia consultado sobre a
propositura – «um caso raro, creio que único na nossa história
constitucional, o ser eleito deputado um cidadão, sem o
desejar, sem o esperar, sem ser consultado, por mero arbítrio
dos eleitores».
(1)
|
A inesperada eleição, se ao
próprio escolhido causou surpresa, adquiriu foros de
inquietante acontecimento nos meios políticos. Não era dócil a
Câmara, nem acomodatícia e a oposição não se coibia de
criticar e interpelar o governo. Mas uma vez desgarrada de
todos os grupos, inteiramente descomprometida, impiedosamente
castigadora, causaria compreensíveis inquietações. Assim, a
acta da eleição extraviou-se, ou foi propositadamente
descaminhada e sonegada. Ao facto se referiria, na sua estreia
parlamentar, que efectuaria apenas vinte meses após a eleição,
pois só veio a ser proclamado deputado em 27 de Janeiro de
1921, e só veio a tomar assento na Câmara na segunda quinzena
de Março seguinte. |
Diploma de
Deputado de Homem Cristo. |
A maledicência rosnava várias
causas para o desinteresse que o panfletário, tão malquisto de
certas parcialidades políticas, mostrava em ocupar a sua
cadeira de deputado e fazer valer os seus direitos, uma vez
que o presidente da assembleia de apuramento lhe enviara um
duplicado da acta. «Uns diziam: – Tem medo que lhe batam.
Outros: – Tem medo de ir lá e ficar entupido. Outros: – Não
sabe falar. Os factos desmentiram tudo isso».
(2) Estivera
quarenta e um anos sem falar em público, precisamente desde
1880, num discurso de que a imprensa da época exaltou as
qualidades oratórias. Mas não estranhava que, pela falta de
hábito, se pensasse recear que, indo à Câmara dos Deputados,
pudesse «ficar engasgado, fazendo uma triste figura».
O seu primeiro discurso
parlamentar data de 4 de Abril desse ano, de uma breve
quinzena depois de assumir o seu lugar, o bastante para tomar
o pulso à Assembleia, conhecer o ambiente, poder avaliar as
reacções que o seu modo e temperamento provocariam quando
arremetesse.
A sua intervenção tem aspectos
de desforço pessoal, mas constitui uma candente crítica ao que
classificou de triste regime de solidariedade, com actos de
indisciplina e corruptibilidade com correligionários: «Pedi
a palavra para ler à Câmara – são as suas primeiras
palavras – um papel largamente distribuído em Lisboa, há
dois ou três dias, e que foi escrito na polícia. Não digo pela
polícia. Digo na polícia, por um dos seus mais ínfimos
funcionários, que, todavia, se atreve a dirigir-se nos termos
que a Câmara vai ouvir ao sr. Presidente do Ministério.»
Lê um manifesto do Grupo
Carbonário «Os Treze», que o criva de doestos e enxovalhos –
bandalho, traste, desavergonhado, pulha de Aveiro, bandido,
todo um chorrilho de insultos do mais soez primarismo. Repudia
a pasquinada e acrescenta:
«Se declaro que não escrevi
que o «Grupo dos Trese» não recebeu dinheiro do sr. Liberato
Pinto não é para dar satisfações por mínimas que sejam /.../
mas para pôr em relevo essa miséria moral. Que envergonha o
País, que diminui a República, que atenta contra a dignidade
nacional.»
Liberato Pinto, contra quem
vinha travando rija e inclemente campanha no seu semanário,
embora em tom mais comedido, é visado, a propósito de um
inquérito que o Governo mandara proceder aos actos do
Comandante da Guarda Nacional Republicana, quando mandou
passar guia àquele seu subordinado para se apresentar no
Ministério da Guerra.
O discurso é quase como um dos
seus violentos artigos, ditado. Não iguala, por ventura, o
jornalista, mas não o desmerece. Paulo Freire, no dia
seguinte, e ele só se atreveu a quebrar a muralha de silêncio
que mais uma vez se quis formar em volta do vigoroso
jornalista aveirense, – fazia o seu habitual comentário à
sessão da véspera:
(3)
«O sr. Homem Cristo estreou-se
ontem na Câmara. Foi um sucesso. Voz forte, gesto largo,
imponência de parlamentar aguerrido. Durante minutos a voz do
sr. H. C. tonitroou na sala /.../ e a Câmara submissa,
acagaçada, metida debaixo das carteiras, ouviu. E o sr. H. C.
gesticulava e vozeava alto: – «Enquanto o regime não se
libertar destas misérias, não terá autoridade para proceder
contra bandidos desta força», refere uma passagem em que o
orador alude a ameaças de morte:
/ 40 / o texto integral
parece arrancado ao «Povo de Aveiro»: ...«O autor do
papelucho /.../ declarou alto e bom som, sem pejo nem receio,
que me havia de assassinar. Pois venham os assassinos. A mim
não me metem medo. Não vim a esta Câmara para ficar calado
diante de atentados desta ordem nem para recuar perante,
bandidos desta natureza. E não é por fanfarronice, nem por
valentice, que clamo aqui e em toda a parte que não tenho
medo. Não pretendo as honras de valentão, antes as rejeito.
Mas tenho, e isso me basta, a consciência do meu dever. Que
venham os assassinos. Mas que se apressem, porque se não
vierem quanto antes eu lhes estrangularei a voz da calúnia e
da infâmia, eu lhes cortarei a língua perversa.»
A catilinária ultrapassava o
diapasão habitual. Era insólita, mas nova. A hostilidade
premeditada, a primeira impressão de tácita censura pela
veemência incomum foi cedendo à curiosidade. Homem Cristo,
pouco a pouco, foi dominando o auditório meio atónito com a
energia desmedida. Inteiramente senhor de si, conquistada a
atenção pelo vigor e pelo poder de argumentação, o estreante,
com um longo passado de semeador de tempestades, impunha-se à
conjurada inimizade da maioria adversa. Já com pleno à vontade
relata o cronista da sessão: «Lá ao longe, lobriga um
contínuo: Olá, traga-me um copo de água, que tenho muito que
dizer!» E a Câmara, toda a Câmara, já então ri descontraída.
No final, descarregada a ira,
o tom mais sereno e ameno, é de ironia acobertada de modéstia.
Assim remata essa primeira oração parlamentar:
«Tenho sessenta e um anos
de idade. E só agora entro nesta Câmara, embora sem o pedir,
sem trabalhar por isso, sem o esperar e sem sequer o desejar.
A prova – e mostra o duplicado da acta de eleição – está aqui,
é a famosa acta da eleição de Timor, o célebre documento que
se procurava. Eis o diploma que me teria desde há muito dado
entrada na Câmara se, porventura, nela tivesse querido entrar.
Não é o que foi roubado. Os eleitores, parece que conhecendo
já os desgraçados costumes deste país, tiveram o cuidado de me
enviar um diploma igual àquele que se extraviou. É este.
Bastaria havê-lo apresentado para ter sido desde logo
proclamado deputado. Mas como não tinha empenho nenhum em
entrar nesta Câmara, e não o digo por desconsideração por ela
ou por qualquer dos seus membros, mas pela consciência de que
não vinha cá fazer nada, deixei-o ficar tranquilo na gaveta
onde o tinha fechado.
Enfim, cá estou. Mas cada
vez reconheço mais a minha inutilidade.
Lembra-me, a propósito, um
caso que já tornei público uma vez, no meu periódico, e que
José Luciano de Castro, aborrecido com as insofridas ambições
do seu correligionário José de Alpoim, contava, certo dia, a
alguns íntimos, numa das salas do seu palácio da Rua dos
Navegantes.
José Luciano, moço ainda,
quis ser deputado. Não tão moço que não tivesse já vinte e
seis ou vinte e sete anos, e não fosse já conhecido pelos seus
escritos sobre Direito, sobretudo Direito Administrativo e
Economia Política, a que toda a vida mais ou menos se dedicou.
José Estêvão, seu patrício,
pois que ambos eram de Aveiro, dispunha nessa época de larga
influência política, como forte coluna, que era, da
Regeneração. Mas José Luciano tinha receio de se dirigir
directamente a José Estêvão. Empregou como intermediário seu
cunhado José Henriques, grande amigo do tribuno e com
relevantes serviços à causa constitucional. José Henriques
escreveu a José Estêvão no sentido que José Luciano desejava.
Mas não obteve resposta.
À coca, José Luciano viu um
dia José Estêvão chegar a Aveiro. E correu a Estarreja buscar
o cunhado. Vieram os dois e procuraram José Estêvão em sua
casa. Este apareceu pouco depois a receber as visitas; tratou
José Henriques com muito agrado, abraçando-o efusivamente, mas
sem fazer de José Luciano o menor caso. E trava-se o seguinte
diálogo:
– Não recebeste uma carta
minha? É que te escrevi solicitando a tua intervenção a favor
da candidatura de meu cunhado.
– Recebi. O que me admira,
menino – disse voltando-se para José Luciano – é a sua audácia
em querer ser deputado. Que títulos apresenta a justificar a
sua pretensão? Quais são os seus serviços ao País? Quais são
os seus méritos provados? Como hão-de os eleitores consagrar o
seu nome? Se fosses tu, José Henriques, homem cheio de
serviços autênticos e méritos reais! Mas teu cunhado!
Desculpa, mas é audácia.
José Luciano comentava no
salão do palácio da rua dos Navegantes: – Eu já pedia ao
soalho que se abrisse para desaparecer por ele abaixo».
Hoje, em regime
republicano, que se diz de pura democracia, o critério é
outro. Sem ofensa para os jovens deputados que me ouvem e são,
sem dúvida pessoas de grande mérito. Se a estátua que está
defronte desta casa pudesse animar-se, descer do seu pedestal
e entrar por aqui dentro, é natural que José Estêvão ficasse
admirado. Mas eu, por mim, eleito tanto contra a vontade dos
dominadores do regime, que até ao meu diploma desapareceu, e
recebido com tão pouca simpatia por esta Câmara, que só ao fim
de mais de ano e meio se resolveu a proclamar-me deputado, é
que não tenho de que me admirar. A culpa é minha, não é da
Câmara. Eu sou velho e vejo aqui tudo cheio de gente nova. Mas
isso só quer dizer que os novos têm o talento e os serviços
que eu não tenho, a competência que me falta; que eles são um
valor e eu uma inutilidade
/ 41 /,
e que razão me assiste para dizer que não vim aqui fazer nada.
Sim, Senhor Presidente,
entro nesta casa por respeito aos meus eleitores, que me
elegeram tão espontaneamente que me julgo no dever de os não
desgostar. Mas reconheço a minha insuficiência para cumprir o
seu honroso encargo, a minha inutilidade, perfeita
inutilidade, dentro desta casa.
Positivamente, os tempos
mudaram.»
Plenamente cônscio dos seus
predicados, tinha vencido afoitamente a primeira prova. A sua
forte personalidade, embora em torno da sua primeira
intervenção parlamentar se mantivesse a campanha de segregador
ostracismo político, e o propósito de lhe abafar todos os ecos
exteriores, arrefeceu de algum modo a animadversão contra o
indesejado ferrabrás iconoclasta, esfrangalhador de
reputações, impenitente e incorrigível. Bernardino Machado,
que combatera ardorosa e pertinazmente, e crivara de apodos
numa desafronta que julgou devida, casual ou deliberadamente –
mais provavelmente procurando o ensejo – olvidando os motivos
que os haviam afastado, dirigiu-se-Ihe, numa breve troca de
palavras de cortesia. Sentiu-se que na Câmara passaria a
contar-se com uma nova voz, livre como uma rajada, poderosa,
independente, com a ousadia de abordar e verberar os temas
tabus, doesse a quem doesse.
Fiel, como era seu timbre, às
obrigações assumidas, salvo os dias em que se deslocava ao
Porto para dar as suas lições na Faculdade de Letras, passou a
exercer a sua função de deputado com assiduidade e activa
participação. Reduziu «O de Aveiro» – designação então
adoptada para o seu inconfundível semanário – a duas páginas,
que o tempo escasseava-lhe para preencher as quatro habituais.
Desdobrava-se, afanosamente, pela actividade parlamentar, pela
docência universitária e pela inalienável missão jornalística,
que lhe estava nas tendências irremovíveis ou, para usar a
sugestiva expressão corrente, na própria massa do sangue.
Na sessão de 10 de Abril
seguinte, a Câmara comemorou a batalha de La Lys. Homem Cristo
propõe-se «levantar duas ou três afirmações» de antecedentes
oradores, numa hora que, «se não era de recriminações, era,
todavia, de justiça e de verdade histórica», que «nunca
se deve perder a ocasião de afirmar».
A reposição da verdade
histórica, no ensejo, consistia, em afirmar a sua convicção de
que não fora o partido com maioria na Câmara que tomara a
iniciativa da participação do nosso país na Grande Guerra de
1914 – 1918, mas que ela resultara das obrigações do tratado
que de longa data nos unia a uma Nação – a Grã-Bretanha – que
tinha entrado nessa pendência.
«Mas – continuava –
se não houve nenhum partido a tomar a iniciativa da guerra,
houve, todavia, a obrigação, que não foi cumprida, de auxiliar
o partido que então estava no poder. Este é que é o facto.»
E, preconizando o princípio de
que, uma vez declarada a guerra, não havia mais que discutir
se Portugal devia ou não ter tomado parte nesse conflito,
frisava:
«Não quero aqui censurar
ninguém, porque, repito, a hora não é para retaliações nem
para recriminações. Mas o que também não posso, eu que defendi
tenazmente a intervenção na guerra, é consentir que se diga
aqui que ninguém foi contra a guerra. E não só por ter o meu
nome ligado à guerra, mas porque do facto de ela ser
contrariada resultou uma coisa tremenda para Portugal – e essa
coisa tremenda foi não termos feito na guerra a figura que
devíamos ter feito, nem tirarmos da guerra o resultado que
devíamos tirar. Esta é que é a verdade.
«Não houve quem combatesse
a guerra? Então porque estive eu três meses metido na Cadeia?
«Houve o mais vivo combate
à guerra. Contrariou-se a guerra por todas as formas. Esse
combate à intervenção na guerra desmoralizou o Exército,
desorientou a opinião pública».
Verberando a atitude dos que,
no decorrer dela, combateram a nossa intervenção no conflito
mundial, e lamentando a conduta dos partidos, observava:
«Se, feita a paz, nos
tivéssemos sabido manter naquela atitude de moralização e de
respeito pelo Direito, pela Justiça e pelo Trabalho, em que
nos devíamos ter mantido, nós seríamos hoje o primeiro povo da
Península e não estaríamos assistindo a este espectáculo único
de a Espanha ter maior consideração internacional que o país
que combateu ao lado dos Aliados.»
E continuava, considerando que
se tornaria desnecessário associar-se à homenagem da Câmara,
pois, tendo defendido a guerra e nunca se tendo arrependido de
o fazer, tacitamente lhe estava dada a sua adesão.
«Além, todavia, dessa
adesão tácita – concluiu – eu queria declarar
expressamente que me associava às palavras de V. Ex.ª, sr.
Presidente, e que o principal acto de Portugal, nos últimos
tempos foi a sua entrada na guerra. Lamento apenas que desse
facto se não tenha tirado as consequências que seriam de
esperar.»
Voluntarioso e inquebrantável,
experimentados os dotes e os meios em que os exercia, a
intensidade a imprimir intrínseca e extrinsecamente ao
discurso, e as capacidades de captar a atenção, já nem mesmo o
impressionam as desapontadoras qualidades acústicas do
hemiciclo onde os «pais-da-pátria» debatiam as grandes e as
pequenas questões nacionais ou de mera regedoria – daquela a
que chamou, dando largas à veia satírica, na epígrafe de um
artigo publicado no seu jornal, «Uma Sala Desmoralizadora».
Conhecera-a na fase
precedente, antes do incêndio
/ 43 / que
sofrera, e lá ouvira oradores como Pinheiro Chagas, Latino
Coelho e Hintze Ribeiro, e figuras de saliente relevo como
Rodrigues Sampaio, Mariano de Carvalho, Emídio Navarro e Dias
Ferreira, além de outras que deixaram nomeada. Depois de
reconstruída, só então lá voltava e «surpreendido,
surpreendidíssimo ao vê-Ia, ao ouvir falar dentro dela, que
ninguém tivesse clamado que aquela sala era uma das fontes, e
das mais perniciosas da desmoralização e da anarquia
portuguesa». (4) E repisava, espantado e exprobatório,
exagerando o traço como um caricaturista, na maneira que lhe
era tão própria: «Aquela casa é imoral: Aquela sala é
dissolvente. Aquela sala foi feita justamente para o pau
de bater bifes, para os chinfrins, para as algazarras, a falta
de atenção, a falta de respeito, a votação de projectículos às
carradas, sem ninguém saber o que se vota, enfim, tudo aquilo
que assinala a Câmara, desde que se construiu o novo edifício.
Porque, é notável, a grande decadência da Câmara dos Deputados
coincide precisamente com a nova sala».
Analisa as consequências
morais e políticas de um caso com aparências somenos e que,
entre austero e risonho, considera influente na vida pública
nacional, e se diria coisa simples, de secundária importância,
«essa coisa de oradores não se ouvirem», os oradores que eram
precisamente os componentes da assembleia legislativa e os
procuradores dos povos das diversas regiões do País.
Pois «o deputado, com a
consciência plena de que o não ouvem, fala sempre sob essa
pressão terrível, e em vez de orar berrava, o que obstava a
uma verdadeira e sã eloquência», e assim, «não havendo forças
humanas, nem regras de educação, nem leis de boa sociedade,
nem praxes de bom tom, nem o diabo», que forçassem os
demais, não ouvindo, «a ser surdos, a ser mudas e ainda por
cima a estar quedos como penedos».
Por isso, a sala era por si
mesma, uma causa de desmoralização, um motivo de desordem, um
motivo de indisciplina e de anarquia. «Não única, de certo,
mas uma causa», acentuava.
Não tarda, no entanto, a tomar
a palavra, certo de que se fará ouvir, na verberação severa de
acontecimentos académicos pouco antes ocorridos em Coimbra.
Com o seu proverbial desassombro, ferindo para todos os lados,
e sem temor de a todos desagradar, em 19 de Abril: ...«O
Tempo» disse em público o que todo o mundo diz em Coimbra. Que
sabe o Governo a esse respeito?» E acrescentava: A República
não pode consentir que se acusem de verdadeiros crimes os
funcionários públicos, ficando de braços cruzados. Tem de
proceder contra os acusadores ou contra os acusados.»
A traços gerais, refere as
consequências do conflito, que tivera origem num discurso
pronunciado pelo estudante Eduardo Coelho, quintanista de
Medicina, junto do féretro do professor Daniel de Matos, a
greve consequente, os manifestos com ataques aos professores,
o perigo de se suscitar a solidariedade dos estudantes das
duas outras Universidades, para, depois, salientar o número
limitadíssimo de lições que da greve resultariam. Aliás, mesmo
sem essas atitudes estudantis de rebeldia, o número de aulas
era reduzido sob os mais diversos pretextos: «Sabe V. Ex.ª,
Presidente, quantas lições tenho dado na Universidade do
Porto, desde onze de Março até hoje? Duas. SEM EU NUNCA TER
FALTADO! Os estudantes, que marcam as férias a seu talante,
faltando às aulas em massa – é um novo género de greve –
entenderam que as deviam prolongar de onze de Março a onze de
Abril. Um mês, nada menos. Depois houve feriado, porque os
generais estrangeiros
(5) foram ao Porto. Nos dias em que eles
lá estiveram, e nos dias em que eles já não estavam. E por
aqui, sr. Presidente, pode V. Ex.ª calcular, e a Câmara, o
estado a que chegou o ensino em Portugal.»
Confronta o nosso com o regime
do ensino e a orgânica da Faculdade de Letras de Paris, que
pouco antes visitara. Discreteia sobre um problema da sua
predilecção e com que estava inteiramente familiarizado:
«...em Paris, há seis cadeiras de História Antiga, com seis
professores diferentes. Em Portugal há só uma. Há quatro
cadeiras de História da Idade Média, com quatro professores
diferentes. Em Portugal há só uma. E há onze cadeiras de
História Moderna e Contemporânea, com onze professores
diferentes. Em Portugal, para não fugir à regra, há uma só!
«Já por esse lado, nós
estaríamos em espantosas condições de inferioridade. Já por
esse lado o nosso ensino seria miserável. Junte-se-Ihe a
anarquia das greves dos cursos livres e dos feriados, sem
falar na péssima preparação e falta de zelo de uma parte do
professorado, e ver-se-á que o ensino entre nós NÃO É NADA.»
Levado ao exagero, reconhece,
depois, calmamente, que as responsabilidades não cabiam ao
governo de então, mas a muitos governos, para pedir «por amor
do País» e com aplausos da assembleia, «que se ponha cobro a
esta situação, que se tornou intolerável».
E, passado o tempo da
acrimónia, remata a sua segunda intervenção parlamentar – que,
como a primeira, nos chega pela deficiente reconstituição dos
taquígrafos – dirigindo-se, com serena isenção ao Dr.
Bernardino Machado:
«Sabe V. Ex.ª, sr.
Presidente do. Ministério, V. Ex.ª que foi professor ilustre
tantos anos, que a mentalidade nacional está cada vez mais
baixa. E há-de reconhecer, com o seu talento, a necessidade
impreterível de a elevar.
/ 44 / De contrário,
onde iremos parar? Dediquemo-nos a esta obra, sobre todas
benemérita, sobre todas patriótica.»
Volvida precisamente uma semana,
e, assim, a 26 desse mesmo mês de Abril de 1921, tomando já
familiaridade com o ambiente, perseverando em trazer a público o
que as conveniências partidárias procuravam evitar, chama a
atenção da Câmara e do Governo para os ataques de que vinha
sendo alvo, no Rio de Janeiro, o embaixador de Portugal, que a
imprensa brasileira e alguns membros da colónia portuguesa ali
residente acusavam de actos pouco consentâneos da sua função.
Nem só sobre esses factos incide a acerba crítica de Homem
Cristo, mas contra o facto de o representante diplomático do
nosso país não tomar clara e firme defesa de Portugal, nas
reavivadas teses nativistas. A campanha reacendera-se e o
deputado, em termos embora mais moderados que o panfletário,
refuta-a com larga e concludente argumentação: «Sob este
ponto de vista a nossa glória é sem igual. /.../ Ao mesmo tempo,
quanto mais os anos decorrem mais se reconhece e admira a
cultura e a ciência, a alta ciência, dos portugueses dessa época».
Da do descobrimento e do desbravamento da terra brasileira.
Acusa contundentemente o
embaixador Duarte Leite de não se dedicar sem tergiversação à
tarefa patriótica de erguer bem alto o nome e o prestígio da sua
pátria, prossegue com a peremptória condenação do procedimento
que se atribuía ao nosso representante – a quem, aliás, já
espontaneamente, defendera, com o seu habitual calor, em outro
período da sua vida política.
E fazendo-se eco do que chegara
ao seu conhecimento, conclui: «Pode esse homem continuar
representando o nosso país no Brasil, depois de tudo o que fica
relatado? O Governo e a Câmara que respondam. Apelo para os seus
sentimentos patrióticos».
*
* *
Em consequência do caso Liberato
Pinto (a que fizemos alusão, tão sucinta como exige a natureza
desta notícia que se não compadece com pormenores marginais) e
por a favor daquele oficial e influente político se haver
manifestado em meados de Maio uma larga parcela da G. N. R.,
surgiu uma crise política e com ela a queda do Governo.
Em “O de Aveiro”, o indomável
director do aguerrido semanário comentava os acontecimentos com
a sua vivacidade costumada e acrescentava
(6): «Ainda há oito
dias tive que aplaudir o sr. António José de Almeida (Presidente
da República nessa data) e já hoje tenho que o censurar.
«Sou amigo do sr. António José
de Almeida e não o sou nem do sr. Correia Barreto, nem do sr.
Bernardino Machado, nem do sr. Álvaro de Castro. Mas a verdade é
uma só, é que o sr. Correia Barreto e o sr. Álvaro de Castro
andaram bem e que o sr. António José de Almeida andou mal»:
Períodos antes escrevia: «Não quero com isto ofender pouco nem
muito o sr. dr. António José de Almeida a quem dedico a mais
profunda amizade. Estou repetindo o que cem vezes tenho feito na
minha vida, que é pôr acima de tudo o dever cívico, quando ele
se impõe de uma maneira imperiosa».
Punha praticamente termo,
antecipado de dias, à sua carreira parlamentar, tão
proteladamente encetada e tão abruptamente interrompida:
«Anuncia-se já que alguns deputados não voltarão à Câmara. Eu
sou um deles. Entrei ali de cabeça erguida, sem directa nem
indirectamente o solicitar. Foi por simples respeito aos
eleitores, contrariado, forçado, como quem ia cumprir, sempre o
disse, uma pena. Não hei-de ser eu que lá permaneça numa
situação humilhante...»
A curto trecho, o Parlamento foi
dissolvido, e, assim, Homem Cristo não chegou a levantar de novo
na Câmara, como tencionara e anunciara no seu jornal, a questão
da greve académica coimbrã, da qual, dizia, «não foram só os
estudantes que andaram ma!».
*
* *
Nas eleições seguintes
apresentou-se às urnas pelo Círculo de Aveiro uma lista
extra-partidária, a denominada Aliança Regionalista, que
englobava vários matizes. Compunham-na Jaime Duarte Silva,
Manuel Alegre e Homem Cristo, como deputados e o dr. Augusto de
Castro – não natural do distrito, mas de ascendência aveirense –
como candidato a senador. O movimento regionalista – que
mereceria ser recordado – saiu vencido pela coligação Egas Moniz
– Barbosa de Magalhães. A campanha tomou calor acendrado, com «O
de Aveiro» na vanguarda. Por largo tempo se mantiveram os ecos
dessa luta apaixonada, e apaixonante, como a generalidade das
pugnas eleitorais.
Não teve melhor êxito em
Moçambique, nas mesmas eleições legislativas, para as quais,
como sucedera em Timor, nem sequer teve conhecimento prévio da
candidatura do seu nome. A iniciativa partira de vinte e cinco
eleitores de Lourenço Marques «que se lembraram de apresentar o
nome do Sr. Francisco Manuel Homem Cristo (pai), o erudito
jornalista, hoje lido em toda a parte onde se fala a língua
portuguesa – conforme diziam no manifesto de propaganda
publicado em 1 de Julho. Uma breve justificação da escolha entre
os títulos com que a justifica, termina por declarar: «Outra
/
45 / causa nos leva a votar em Homem Cristo. O ilustre
professor de História da Universidade do Porto e director de “O
de Aveiro” não promete a ninguém os seus bons ofícios em
qualquer negócio, empresa ou emprego, nem a sua influência se
exercerá para abafar qualquer processo de sindicância, libertar
criminosos e apadrinhar injustiças».
Não figurava em qualquer lista.
Tinha sido apresentada a candidatura, «em tempo e modo legal»,
mas isolada. Deveria, pois, ser riscado o nome de outro qualquer
candidato e substituído pelo seu. E a verdade é que, não tendo
vencido embora, ainda assim, e apesar de se ter tomado como
probabilíssima a eleição pela sua terra natal – que de certo
preferiria no caso de obrigado a opção – conseguiu sair
vitorioso nalgumas das principais assembleias de voto daquela
província ultramarina.
Voltaria a ser eleito deputado
em Janeiro de 1923, de novo candidato pelo agrupamento
regionalista aveirense, desta vez vitorioso em luta não menos
tenaz. Menos assíduo nessa legislatura do que na primeira de que
fizera parte, absorvido com as suas fogosas campanhas, Homem
Cristo não deixa, assim mesmo, de participar nos trabalhos da
Câmara, e de intervir, uma ou outra vez, com a sua veemência
insubmissa. As suas opiniões dissentem da maioria ou até da
totalidade. Considera-se todavia, na obrigação cívica de as
manifestar, ainda que desagradem ou destruam qualquer ideia
estabelecida. Como algures dissemos, estar só não o coibia,
desde que estivesse convencido de uma verdade. Em certas
circunstâncias antes se queria só de que mesmo bem acompanhado.
Aliás, ele o proclamou: «Ninguém
cultiva menos o favor público neste país do que eu, a antítese
mais perfeita do engraxador que Deus tem criado». E
completou: «Não lisonjeio os meus leitores, não lisonjeio os
meus próprios amigos».
Em 12 de Março de 1923, volta a
usar da palavra, para prestar homenagem a Basílio Teles, dois
dias antes Falecido – «não para afirmar que foi um grande
português e um grande patriota», qualidades de todos
conhecidas, mas, como lhe estava no ânimo inquebrantável para ir
à mão dos que pecavam por simples inexactidão, «para destruir
a lenda da sua misantropia, e declarar os motivos por que ele se
afastou da política da República».
Trazia o seu depoimento pessoal
nessa breve intervenção no decorrer do preito que a Câmara
prestava ao grande e incompreendido vulto republicano. E esse
testemunho de algum modo infirma uma impressão vulgarizada
acerca de um notável pensador, – de quem Júlio Brandão num
folheto «in-memoriam»,assinalava com um «talento enorme que
refulge aureolado por um carácter que se diria antigo. É de
bronze e cristal essa figura estóica». Ao mesmo tempo
proporciona-nos um ensejo para apreciar a forma do improviso
oratório de Homem Cristo, na homenagem a um amigo, a que algum
arrufo ocasional não ensombrou o velho afecto – «constante»,
como o próprio Basílio escrevia em 4 de Julho de 1922.
Transcreveremos assim toda a parte final desse discurso,
extraída da redacção obtida pelas notas taquigráficas:
DISCURSO DE HOMEM CRISTO NA
CÂMARA DOS DEPUTADOS NA SESSÃO DE 12-03-1923
«Basílio Teles foi um homem de
acção, por excelência. Afirmando que ele foi um trabalhador, V.
Ex.ª afirmou, evidentemente, uma verdade. Desde 1877 até ao
presente trabalhou sempre pelo desenvolvimento das ideias do
País, pelo prestígio da República e pela grandeza da Pátria, sem
descanso algum. Se, em 1910, não fez parte do Governo
Provisório, foi porque o impediram. Nem mais, nem menos.
Basílio Teles fez-me muitas
vezes as suas confidências. Ele, que toda a gente apontava como
encerrado em sua casa, sem sair, não só me abria a porta de par
em par, mas procurava-me na Faculdade de Letras para, ruas
abaixo até à estação de S. Bento, me ir fazendo as suas
confidências. Disse-me mais de uma vez: – «Em 5 de Outubro
estava assente que eu seria Ministro do Interior. Encontrava-me
em Paris, ocupado nos trabalhos revolucionários e, de repente,
sem a menor satisfação aparecia Ministro das Finanças. Entendi
que, tratado desse modo, me devia abstrair, mas depois procurei
ainda avistar-me com um dos altos trunfos da República» – e o
seu nome abstenho-me agora de citar – «tendo-me sido impossível
trocar impressões com esse homem, o qual dispunha então
absolutamente do movimento republicano.
Em seguida, procurou Basílio
Teles uma outra individualidade que hoje desempenha altas
funções na República, e da mesma forma viu inutilizados os seus
esforços.
Desde que não podia ser senão um
elemento secundário na política, natural era que se afastasse.
Mas nunca Basílio Teles deixaria de anuir a todas as propostas
que lhe fizessem para trabalhar pela reabilitação da República e
por um melhor caminho para os destinos do País.
O que acontecia, porém, com
Basílio Teles? Acontecia que era sempre convidado à última da
hora. Vinha uma revolução, convidavam-no na véspera; vinha
outra, sucedia o mesmo. E ele, que era um homem metódico, que
era um homem de planos, não queria, naturalmente, aderir por tal
forma a movimentos revolucionários.
Ainda na antevéspera do 19 de
Outubro fui a sua
/
46 / casa, a pedido de um chefe outubrista. Dizendo-se
que Basílio Teles não abria a sua porta a ninguém, pediu-me esse
chefe outubrista que o acompanhasse, pois que queria expor-lhe
as ideias do movimento e convidá-lo para tomar a chefia.
– Vamos lá – disse-lhe –, mas,
certamente, Basílio Teles não adere à tentativa que vão fazer,
porque ela é feita sem um objectivo fixo, e ele não é homem para
essas coisas.
Lá fomos. Basílio Teles
respondeu exactamente o que eu previa, com uma grande lucidez de
espírito, com grande conhecimento das coisas, acabando por
dizer:
– «O melhor é desistirem desse
movimento e empregarem todos os esforços para que ele não saia,
porque, se sair, será mais um desastre para a Pátria.»
Nunca se encerrou, não digo na
sua torre de marfim, porque se algum fraco tinha era o seu
orgulho, mas de renúncia, levada a um extremo que não sei como
definir. Vivia pobrissimamente e não havia forma de aceitar
fosse o que fosse por mais que os seus amigos insistissem. Eles
não sabiam mesmo como lhe haviam de falar a tal respeito para
não o melindrar, porque, naquele estado de renúncia e de
concentração, em que vivia tudo lhe poderia parecer uma esmola,
e Basílio Teles não era homem a quem se pudesse dar a ideia de
que, pela circunstância de não poder lutar com a vida, receberia
qualquer coisa. Se lhe ofereciam um emprego, declarava-se sempre
incompetente; de modo que era impossível arrancá-lo àquela
miséria em que ia definhando o seu espírito.
|
|
Aceite, porém, esse facto, o que
é certo é que Basílio Teles – e era isto que eu queria afirmar –
nunca, em época nenhuma, deixou de estar pronto a intervir em
certas circunstâncias, e essas circunstâncias nunca se deram. |
|
Postal
de Basílio Teles para Homem Cristo |
Infelizmente para ele, morreu
com a maior amargura que pode torturar a alma de um homem – a
amargura de ver o avanço da mediocridade que triunfou por todas
as formas na República. Ele, um homem de tanto talento, viu-se
preterido por quantos medíocres têm surgido; ele, um homem tão
honrado, de uma honestidade verdadeiramente antiga, viu-se posto
de parte por quantos exploradores têm aparecido nesta terra,
desde 5 de Outubro. O seu ideal viu-o manchado. Assim foi
fenecendo, fenecendo, fenecendo até desaparecer, encolhido na
sua cama, anteontem de madrugada, como se ainda aí a perversão
terrível em que se apaga o País o pudesse ir incomodar.
Sr. Presidente: Associo-me às
palavras de V. Ex.ª, mas lamento que, em vez de dois minutos de
silêncio, não tivesse V. Ex.ª proposto que se levantasse esta
sessão em sinal de luto pela morte do grande português que era
também um dos raríssimos republicanos históricos que ainda
existem. Não vejo nesta Câmara um único republicano do seu
tempo! Tudo isto é novo! Pode ser que eu esteja enganado, mas
creio que não há aqui nenhum homem do seu tempo.
Uma voz: A principiar pelo Sr.
Presidente.
O Orador: O Sr. Presidente é
muitíssimo mais novo na política republicana, pois que apareceu
em 1890, ao passo que Basílio Teles trabalhava pelo ideal
republicano desde 1877, ou seja desde treze anos antes.
Por consequência, sendo um dos
republicanos mais velhos de Portugal, tendo prestado tantos
serviços à República, sendo um grande talento, a homenagem da
Câmara devia ir mais longe que os dois minutos de silêncio, e
esta sessão devia ser encerrada como manifestação de
sentimento.»
*
* *
A mais probante das intervenções
parlamentares de Homem Cristo, e que alcançou foros de
retumbante e verdadeiramente memorável, verificar-se-ia em 7 e 8
de Novembro de 1924, numa das mais tempestuosas sessões que em
qualquer época se registaram na Câmara
/ 47 / dos Deputados –
única, porventura, se considerarmos, que um orador, sem qualquer
grupo que lhe desse algum apoio efectivo e fiel e, na
circunstância, praticamente desacompanhado, encarou
intrepidamente, a manifesta e concertada hostilidade da enorme
maioria dos membros da Assembleia.
A questão que se levantara,
tempos antes, na Faculdade de Letras do Porto e que opusera
fundamentalmente Homem Cristo a Leonardo Coimbra, dera motivo a
uma das exacerbadas campanhas do temível fundibulário aveirense.
Leonardo Coimbra foi atacado com
a mais implacável e destemperada crueza, apodado com uma alcunha
desprimorosíssima que ganhou voga, numa escalpelizadora análise
da sua obra, sem continência nem o menor vislumbre de
contemplação, numa longa série ininterrupta de números de «O de
Aveiro». Confiado nas suas faculdades, tão evidenciadas e
aplaudidas, de orador, deputado que também era, levou o pleito,
imprudente e intempestivamente, para o Parlamento onde o
ambiente lhe era afecto.
Acusou o antagonista cerrada e
contundentemente, usando dos seus provados recursos tribunícios,
com os quais, antecipadamente, escolhendo a arma que manejava
com mestria e o campo para o duelo, que estimara como desigual,
julgou irremediavelmente aniquilar o adversário, menos dextro e
experiente nesse género de pugna a que o compelia.
A sensação generalizada no fim
do exprobatório e mordaz discurso do director da Faculdade de
Letras portuense, principal visado na campanha do panfletário,
era a de que este ficara insanavelmente esfrangalhado e
desmoralizado. Os membros da Câmara, sabendo embora que o
polemista destemido, como o felino que não é mortalmente
alvejado, reagiria com o mais imediato e intenso ímpeto, viram,
meio estupefactos, que Homem Cristo, após um ataque tão
eloquente e mordaz, lívido mas altivo, se levantou acto contínuo
para ripostar aos altissonantes reptos do acusador com um
insuspeitado e incontido denodo, e com uma imprevista e
inabalada força de ânimo;
«Senhor Presidente: Acabo de
assistir à sessão mais indigna de que há memória não só nos
anais parlamentares deste pais, mas nos de qualquer outro pais
do mundo civilizado. Se as palavras de infame insulto contra mim
fossem dirigidas a outro, V. Ex.ª chamaria à ordem, pela certa,
o orador: Mas como se tratava de um homem que tem as mãos
limpas, num pais de ladrões.»
Era o primeiro arremesso do
felino provocado – o «Leão de Arnelas» lhe chamavam, aludindo ao
reduto onde residia, e em tons pretensamente ridicularizantes,
os patrícios que lhe haviam sentido as garras sangrentas, na
pele frágil. Mas era inconforme com as normas, inaudito de
audácia e arreganho. De todos os sectores se elevaram clamorosos
protestos, de estranheza compreensível, e de táctica, para
abafar a voz incómoda.
O presidente, árbitro que não se
impusera a impedir as primeiras contravenções às regras do jogo,
intervém: – «Eu peço a V. Ex.ª que retire essa expressão.»
O orador, indomável, retira-a
evasivamente: – «Dizer um país de ladrões, não significa QUE
TODOS SEJAM LADRÕES. Sabe-o toda a gente, até aqueles que não
têm exame de instrução primária.
Os protestos repetem-se,
recrudescem, mas a minoria democrática, que, para significar a
sua sobranceira hostilidade abandonara a sala, não resiste à
curiosidade, e volta. E o inflamado orador, enfrentando a
malquerença da assembleia, exclama: «– É extraordinário que
um homem só, meta medo a tanta gente.»
As interrupções sucedem-se: –
«Não pode ser. Não consentimos...». Homem Cristo, sem ceder um
ápice, afronta a animadversão, eleva a voz acima do sussurro que
não abranda: – «Não pode ser o quê? Eu é que posso dizer isso
aos senhores! Eu é que estou aqui desempenhando uma missão de
moralidade e de justiça. Já se esqueceram das horas de agonia em
que, sob o látego do sidonismo, a minha voz era a única a
ouvir-se e me aplaudiam.»
Alguém interrompe de novo: – «A
única a ouvir-se?» – «Sim – retrucou o orador –, com altivez,
sem medo e constante, a única a ouvir-se.»
O rumoroso ambiente acentua-se.
O desforço, contudo não abranda de intensidade. A agitação, a
balbúrdia atinge o extremo, mas Homem Cristo não se intimida nem
acua. Alude ao facto de o seu acusador ter mostrado disposição
de o esbofetear e comenta: « – Pobre dele, que lhe fazia
saltar os miolos à primeira tentativa...»
E, como documenta o «Diário das
Sessões», logo se levanta uma voz atónita: «– Então V. Ex.ª vem
armado para aqui?»
O orador redargue:«Chegue-se
cá, atreva-se, e eu lhe direi se venho armado ou não. O primeiro
que avançar, queimo-lhe os miolos.»
À enorme agitação, já que nada
detinha o arrebatado e contumaz polemista, que na tribuna
afirmava a mesma descomedida violência que usava no jornal,
seguiu-se uma relativa e progressiva calmaria, expectante.
Alguns deputados não pertencentes à parcialidade mais numerosa,
rodeavam Homem Cristo, que, sem interrupções, encetou a sua
defesa, a desafronta máscula, atacando inclementemente,
analisando ponto por ponto cada uma das acusações e
voltando-lhes o gume acerado contra o querelador.
Fica nessa sessão com a palavra
reservada. Retoma-a no dia imediato e fala durante duas longas
horas e meia. Divaga, documenta e demonstra, floreteia,
/ 48 /
brande o cajado e descarrega a maça; ironiza, braveja e
vitupera; desvia-se porventura, da conexão e retoma o fio. Duas
longas horas e meia, com as galerias repletas, sem qualquer
mostra de arrefecimento, sem perder o domínio e antes vencendo o
malquistado auditório que já o escuta: «– Os senhores devem
estar um pouco admirados de me ouvir hoje falar com tanto
desembaraço. Julgavam-me um patrazana, não é verdade? A falar e
a escrever não sou pior, antes sou melhor, não digo do que o
génio da raça, que com esse ninguém se compara, mas do que
muitos outros que andam aí nas tubas da fama e nas asas da
glória. Que me falta, para ser também um dos queridos dos que
decretam as supremas honras do Capitólio?
Sabe o meu país
(com energia) o que me falta?
(com veemência) SER LADRÃO!»
No dia seguinte, um diário da
capital, que lhe não era afeiçoado, mas dos poucos que não
entraram na concertada barreira de silêncio com que se pretendeu
abafar o efeito do aspérrimo discurso, comentava-o, assinalando
que Homem Cristo «divagou em erudições que prenderam a atenção
geral e teve uma eloquência que, sem ser formoso nas suas
linhas, não deixou de ser solene na substância. Com todos os
seus defeitos, num ambiente intra-câmara absolutamente hostil,
conseguiu triunfantemente ser ouvido com interesse justificado.
O panfletário revelou-se um orador didáctico talvez prolixo mas
profundo».
Não é compatível com a natureza
deste bosquejo rememorativo, como já atrás observamos, a
transcrição de extensos trechos, mesmo os mais significativos,
desse longo discurso, aliás integralmente publicado em «O de
Aveiro» (7). Limitamo-nos a trasladar os períodos finais como
demos os do início, como simples documento e curiosidade. E pelo
contraste de bem humorada tranquilidade que estabelece em
relação à investi da inicial:
«Meu irmão tinha uma
pequeníssima fábrica de moagens em Aveiro; a que eu era alheio
inteiramente. Um dia viu-se em dificuldades, e foi-me procurar a
Coimbra, onde eu estava então, para me pedir um auxílio de dez
contos de reis, que era tudo quanto ele possuía. Com esses dez
contos de reis, ficando eu sócio da fábrica, e mais dois ou três
auxílios do mesmo valor, equilibrava os seus negócios, dizia, e
a fábrica andaria para diante. Dei-lhe o auxílio pedido e fiquei
sócio da fábrica, mas sem ter na administração ingerência
alguma. Durante uns poucos de anos, recebi desses dez contos,
sem mais lucro nenhum, apenas seis por cento. Mas veio a guerra,
constituíram-se empresas novas, e um dia apareceu alguém a
perguntar-me se eu queria vender a minha parte por 155 contos.
Julguei que era mangação. Quando vi que era a sério, não esperei
que mo perguntassem outra vez. E sem me lembrar de que tinha de
pedir licença ao sr. Leonardo, vendi.
Empreguei o dinheiro desta
forma. Mandei fazer uma casa, que é medida de prudência, dada a
enorme falta delas em todo o país. Mas para mim! Para eu viver!
Que para alugar não cairia em tal tolice.
Custou-me a casa 72 contos.
Comprei 30 contos de acções
da nova companhia.
Emprestei a meu filho 35
contos para o seu negócio. E o resto ficou de reserva, para
chegar ao menos até à fronteira, quando tenha de fugir deste
país!
Fora disso, vivo dos
interesses honestos do meu jornal, sem despesas de redacção, e
onde tudo o mais se faz com a máxima economia.
Meu filho ficou de me pagar
oito por cento, e tem pago. Não me deve coisa alguma. Mas paga
em livros, foi o contrato, o que diminui o juro, tendo ele, como
tem, uma livraria em Paris, e no preço da viagem do comboio,
quando lhe faço alguma visita. O comer paga-o ele. Sou seu
hóspede. E está dito tudo! E aqui tem o sr. Leonardo como eu vou
de graça ao estrangeiro. De graça, sr. Leonardo. Fique sabendo
que vou de graça ao estrangeiro (Risos).
Meu filho tem automóvel. Tem
muitos amigos que possuem automóvel, também, como ele. E eu
percorro a França, vou onde quero, estudando e divertindo-me. É
uma pândega rasgada,
(Risos) sem eu, todavia, meter para isso as mãos nos cofres
públicos, nem gastar as minhas economias.
O que peço a meu filho é que
me obrigue o menos possível a smokings e casacas, que não me dou
bem com isso (Risos).
E que me não ponha no meio de senhoras, o que para um velho é um
perigo. A gente, depois de velho, ouve pouco e vê pouco. É tudo
pouco. Dizemos sim quando devemos dizer não, e não quando
devemos dizer sim. E, não obstante eu saber falar francês, há
percalços como este: Estando em casa de uma dama muito ilustre,
agora condecorada com a Legião de Honra pelo governo francês,
Madame Rachilde, perguntou-me ela em certo momento: «Está muito
aborrecido, não é verdade, sr. Homem Cristo?» Ao que eu respondi
de pronto e tom firme para ser maior a delicadeza: «Oui, oui,
Madame» (Risos).
Sem isso, sr. Leonardo, tudo
me corre por lá às mil maravilhas.
Vou concluir, dizendo ao meu
país que ponha os olhos em mim. Diz-se aos rapazes novos a toda
a hora: Não te metas em nada, deixa lá, que daí não vem pão à
gente. Eu tenho-me metido em tudo. Eu tenho protestado contra
tudo. Eu tenho sempre reagido. Há quarenta e cinco anos que sou
uma voz constante de protesto
/ 49 / neste país. E
estou vivo! E estou são! E ainda não me faltou pão para comer!
É mentira que a felicidade
não acompanhe os que se batem pela verdade, e pela honra do seu
país!»
Não está, no propósito do
rabiscador e concatenador destas linhas relembrar em pormenor o
que de justo ou destemperado motivou e visou esse incidente
pessoal acendradíssimo, nem qualquer fim de recolha antológica
do jornalista famoso que acidentalmente foi deputado.
Este discurso, que teve resposta
franca, foi larga e vivamente comentado na altura. «Leonardo
Coimbra ficou a escorrer sangue» na expressão de um evocador do
memorável duelo parlamentar
(8). Não há dúvida que o «complot»
contra Homem Cristo resultou contraproducente. E Moreira de
Almeida, no dia seguinte ao último acto da renhida luta, escreve
em «O Dia»: «Ai, Sr. Leonardo Coimbra, mais lhe valia ter
quebrado uma perna do que subir àquela tribuna».
Registamos essa oração
reveladora de um fogoso e inflexível temperamento apenas como um
dos casos mais singulares da nossa vida parlamentar, a que raros
antecedentes congéneres se poderão apontar – como,
salvaguardadas as diferenças de estilo, das personalidades e das
circunstâncias, os de Garrett contra Rodrigo da Fonseca
Magalhães, de José Estêvão contra Costa Cabral e alguns mais. No
seu desmesurado e inultrapassado azedume e ímpeto, esse discurso
constituiu sem dúvida o ponto culminante e o canto de cisne de
Homem Cristo como deputado, e, dele, assim, damos duas passagens
mais reveladoras – no auge da procela e na calmaria em que, já
risonhos, alguns raios de luz rompem o cinzento das nuvens a
clarear.
Esta esquecida e eventual faceta
do jornalista eminente fica, assim, ainda que apressada e
toscamente, esboçada. Não pretendemos com estas páginas
desluzidas juntar novos louros à glória do grande e prestimoso
aveirense. Ficarão singelamente como uma achega para a biografia
de um homem individualizadíssimo, que foi medular e
sobressalientemente um jornalista, inconfrontável pela sua
singularidade temperamental e de processos, e um dos maiores que
a Imprensa portuguesa tem evidenciado.
EDUARDO CERQUEIRA
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(1) – «O de Aveiro», n.º 202, de
20-3-1921.
(2) –
Idem, idem.
(3) –
«Jornal de Notícias», de
5-4-1921.
(4) – O de Aveiro» – n.º 205,
cit.
(5) – O marechal francês Joffre, o generalíssimo italiano Diaz e o almirante inglês
Dorien, quando da tumulação dos dois soldados desconhecidos na
Batalha.
(6) – N.º 212, de 20-5-1921.
(7) – N.º 378 e 379, de 16 e 23
de Novembro de 1924.
(8) –Luís Barradas (Almedina) -
«Homem Cristo e Leonardo Coimbra no Parlamento» 2.ª ed., 16
págs., Lisboa, 1941.
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